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Deixando a hipocrisia de lado: sobre a prisão após julgamento em segunda instância

Além da discussão de índole constitucional, fato é que o tema ascende na atualidade pelos mais diversos interesses puramente políticos e, por que não dizer, por um oportunismo político que, ao longo de 20 anos curiosamente não se fazia presente.

quinta-feira, 23 de agosto de 2018

Atualizado em 26 de setembro de 2019 17:45

1. Introdução à temática

Atualmente se tornou um mantra tanto do politicamente correto como do que podemos chamar analogamente como do "juridicamente correto" sustentar a inconstitucionalidade da prisão após a condenação criminal em segunda instância, na condição de execução provisória da condenação penal.

O tema ganha relevo atualmente pelo revestimento político que vem sendo dado à discussão, em virtude de as ações judiciais decorrentes da assim chamada "operação lava jato" atingirem, atualmente, o ex-presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva, condenado pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região a pena de 12 anos e 1 mês de reclusão por crimes contra a administração pública e de lavagem de dinheiro, bem como boa parte da sua cúpula de governo durante os dois mandatos que exercera.

Muito tem se debatido sobre a admissibilidade constitucional da chamada "prisão após a condenação em segunda instância". O debate, por vezes inflamado em razão do contexto político vivido no Brasil revela diversas situações curiosas, inclusive do ponto de vista cultural, que serão mencionadas ao longo do presente artigo.

A admissibilidade, pela Constituição Federal de 1988, da prisão em segunda instância deve ser examinada não apenas analisando-se o óbvio, isto é, a letra fria de seu artigo 5º, inciso LVII, que consagra o princípio da presunção de inocência. Deve, ao contrário, levar em consideração o todo que compreende a Constituição e, a partir daí, buscar a definição hermenêutica do limite e alcance de referido direito fundamental.

Não ignoramos que existam fortes argumentos dos dois lados. Não é a toa que, por exemplo, há parecer da lavra do eminente professor José Afonso da Silva, manifestando-se contrário à possibilidade de execução da pena após tão somente o julgamento em segunda instância1.

Valendo-me da máxima de que "mais vale a autoridade do argumento do que o argumento de autoridade" ouso discordar do grande mestre José Afonso da Silva, bem como de tantos outros acadêmicos de profunda envergadura que acompanham referido entendimento.

É que, para nós, ao contrário, parece bastante óbvio que a Constituição não só permite, como exige que após a condenação em segunda instância seja dado início à execução da pena, o que será exposto em linhas gerais neste artigo.

Além da discussão de índole constitucional, fato é que o tema ascende na atualidade pelos mais diversos interesses puramente políticos e, por que não dizer, por um oportunismo político que, ao longo de 20 anos curiosamente não se fazia presente. Digo isto, pois, de 1989 a 2009 - durante 20 anos de vigência da Constituição de 1988 - o entendimento predominante no âmbito do Supremo Tribunal Federal era, justamente, o que ora tanto se combate, ou seja, o de que exaurida a jurisdição criminal de segunda instância, inicia-se o cumprimento de pena, em nada maculando referido fato o direito fundamental à presunção de inocência2.

Buscaremos, então, de forma breve, examinar o direito fundamental à presunção de inocência, aliando-o ao todo constitucional, como forma de traçar os seus limites e alcances.

2. Da presunção de inocência enquanto direito fundamental

A Constituição Federal de 1988 erige no inciso LVII de seu art. 5º que "ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória", consagrando aí o princípio constitucional da presunção de inocência.

Ao contrário do que muitos pensam, referido direito fundamental não constitui uma garantia à ineficácia da sentença penal condenatória até que haja o trânsito em julgado, considerado este último como o exaurimento de qualquer possibilidade recursal, ainda que em abstrato, no âmbito não apenas de Tribunais Superiores, mas como da própria Corte Constitucional. Ora, este entendimento, além de representar uma total desarmonia quanto ao modelo de organização judiciária prevista na Constituição, levaria a cabo a conclusão de que toda e qualquer sentença penal condenatória prolatada em cada Comarca do território nacional não terá sua eficácia produzida senão antes do exame de possíveis embargos de declaração do Recurso Extraordinário a ser apreciado pelo STF.

A presunção de inocência impõe coisa bastante diversa e, deve ser examinada em consonância com o restante do texto constitucional e seu sistema.

O direito fundamental de ser presumidamente inocente impõe que todo sujeito seja tratado como inocente até que seja julgado e condenado pelo Estado. Significa que o ônus de provar a prática de um fato delituoso cabe sempre ao órgão de persecução penal, não cabendo jamais ao acusado a prova de sua inocência. Descabe, de igual modo, qualquer prejuízo ao acusado por este se recusar a colaborar com a investigação criminal, por manter-se em silêncio, etc., não podendo tais condutas serem interpretadas em prejuízo da defesa.

Em suma, a presunção de inocência assegura que todo cidadão, ao sofrer uma acusação em processo penal, seja tratado como inocente até que definida sua culpa em sentença penal. Não se pode, portanto, exigir do acusado a prova de sua inocência, mas sim do órgão acusador a prova da culpa.

Havendo julgamento que observe rigorosamente os ditames do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa, bem como observando-se o onus probandi que cabe integralmente à acusação, estará respeitado o direito fundamental à presunção de inocência.

Percebo na organização dos argumentos contrários à execução de pena após a confirmação de condenação em segunda instância, em síntese, um único argumento de índole jurídica, qual seja: a interpretação absoluta do inciso LVII do art. 5º da Constituição, por meio do que se entende que, ao se presumir alguém inocente até o trânsito em julgado, tem-se como limite inarredável para início da execução da pena o seu trânsito em julgado na Corte Constitucional.

O parecer do eminente professor José Afonso da Silva, inclusive, ao elencar todos os fundamentos nos quais se assentam a decisão proferida nos autos do HC 126.292/SP, julgado em 2016 e que retornou à antiga jurisprudência pretoriana, admitindo a prisão após exaurimento da jurisdição penal em segunda instância, os rebate, integralmente, com a fórmula do absolutismo do inciso LVII do art. 5º da Constituição, o que data maxima venia, ousamos discordar.

Neste sentido é que, por exemplo, consta do parecer, por exemplo, em seu item 12 que: "é preciso que se reconheça que a Constituição estabeleceu um limite expresso para o princípio da presunção de inocência que é o trânsito em julgado da sentença condenatória. Isso supera qualquer argumento fundado no efeito não suspensivo dos recursos cabíveis. Supera também os argumentos das Súmulas 716 e 717 sobre a progressão de pena, que, além de ser outro tema, não se impõem à norma do inc. LVII do art. 5º da CF".

Adiante, no item 15 do mesmo parecer, consta: "Diz o acórdão que 'não se pode dar a essa regra constitucional caráter absoluto'. Mas ela é de caráter absoluto, sim, no sentido de que existe não conforme os cria ou regula a lei, mas a despeito das leis que pretendam modificar ou conceituar, conforme diz Pontes de Miranda. Portanto, a regra do inc. LVII do art. 5º é, sim, absoluta, no sentido de que vale por si, não conforme a lei".

Como podemos ver, o cerne da contrariedade ao cumprimento de pena após a confirmação de condenação em segunda instância reside no caráter absoluto que se atribui ao direito fundamental à presunção de inocência.

Se faz parecer, com a interpretação absoluta de referido dispositivo, que estamos diante de um direito que opera na lógica do "tudo ou nada". Ou se inviabiliza o cumprimento de pena até que sejam julgados os embargos dos embargos dos embargos do Recurso Extraordinário, ou se está destruindo a dignidade da pessoa humana do condenado. Com a devida vênia, mas tal argumentação reveste-se de falacioso conteúdo político que não pode ser ignorado. Isto porque tenta-se atribuir viés humanitário a interpretação que, na essência, busca tão somente beneficiar certas pessoas.

Como já dito, a presunção de inocência imporá ao órgão acusador a comprovação acima de uma dúvida razoável, da culpabilidade penal do acusado. Para tanto, deverá respeitar os direitos ao contraditório, à ampla defesa, e todas as demais garantias de índole processual, fundando, ao final, a condenação em provas robustas e lícitas. Deste modo é que a presunção de inocência se faz respeitada, não havendo que se falar num suposto "direito fundamental de acesso aos Tribunais Superiores ou ao próprio STF" pela via recursal que, como sabemos é absolutamente excepcional.

Assim, nos parece evidente que o direito fundamental a presunção de inocência não se reveste do caráter absoluto que muitos buscam dar - ainda que por fortes e respeitáveis argumentos - devendo, ao contrário, levar em consideração a integralidade da Constituição na qual está inserto.

2.1. Do sentido e alcance da presunção de inocência na Constituição de 1988

Um dos básicos princípios da hermenêutica constitucional é o da unidade da Constituição. Isto é, o texto constitucional é considerado um todo harmônico e coeso. Diante de aparentes antinomias ou contradições ínsitas à própria Constituição, cabe ao intérprete harmonizá-las a fim de aferir o sentido de cada norma constitucional no todo em que se dá sua existência.

Por tal princípio, por exemplo, é que se rejeita a teoria da "inconstitucionalidade de normas constitucionais originárias", uma vez que entre elas não há qualquer relação hierárquica, devendo todas serem harmonizadas no exercício da interpretação normativa. As normas constitucionais derivadas sim estão sujeitas ao controle de constitucionalidade sob o parâmetro das cláusulas pétreas (art. 60, §4º da CF) e tão somente.

No caso, temos como norma constitucional originária o art. 5º, inciso LVII que, como visto, consagra o direito fundamental à presunção de inocência. Vejamos o contexto, no entanto, em que tal princípio está integrado.

Já que boa parte da controvérsia situa-se no campo da extensão processual da presunção de inocência, é crucial que examinemos, então, o sistema judicial idealizado pelo constituinte, no qual se materializará tal direito fundamental.

Basta analisarmos, por exemplo, a feição que se dá ao próprio STF a partir do art. 102 da Constituição. Nele fica bastante claro o papel de Corte Constitucional que lhe é atribuído. Não é por outro motivo que o art. 102 dispõe que "compete precipuamente ao STF a guarda da Constituição", após isto elencando um largo rol de competências que lhe são atribuídas.

A função de uma Corte Constitucional não é, jamais, a de servir de instância revisora de todo e qualquer processo em território nacional. Cabe a uma Suprema Corte decidir casos paradigmáticos, os chamados leading cases. O papel crucial de uma Corte Constitucional é, então, uniformizar a interpretação da Constituição e, tal tarefa é feita nos casos paradigmáticos de elevada repercussão.

O constituinte originário, é certo, previu a presunção de inocência, mas a previu num sistema jurisdicional em que o acesso a Tribunais Superiores e ao próprio STF não é a regra, mas sim a absoluta exceção, o que por óbvio é um dado relevante quando se busca a o alcance da presunção de inocência.

Ora, não é por outro motivo, por exemplo, que a própria competência recursal do Supremo Tribunal Federal, longe de ser ampla como a dos tribunais de segunda instância, é sobremaneira restrita às hipóteses previstas no inciso III, do art. 102 da Constituição. Isto é, não é toda e qualquer questão que merece recurso ao Supremo, mas tão somente aquelas enumeradas no rol taxativo em questão, evidenciando-se aí já a própria excepcionalidade do exercício da competência recursal pelo Supremo.

Não fosse o bastante, após a emenda constitucional nº 45 de 2010, a competência recursal do Supremo passou a ser regulamentada ainda pelo instituto da repercussão geral. Isto é, ainda que se esteja diante de uma das hipóteses do inciso III do art. 102 da Constituição, fato é que somente caberá ao Supremo apreciar algum recurso caso na matéria versada haja alguma questão relevante do ponto de vista jurídico, social, econômico ou político que faça com que o interesse na causa transcenda àqueles meramente subjetivos das partes do processo.

Mais uma vez, o que se evidencia pela repercussão geral é que o acesso a Corte Constitucional, longe de ser regra, é a exceção, em que pese muitos queiram encará-la como regra.

O mesmo se pode dizer dos demais Tribunais Superiores, inclusive o STJ, no qual o cabimento de recurso especial para si também tem hipóteses restritas, previstas no inciso III, do art. 105 da Constituição, mais uma vez evidenciando-se a excepcionalidade do acesso a tais órgãos. Não por outro motivo, de igual modo, que o papel crucial do Superior Tribunal de Justiça será o de uniformizar a interpretação da Lei Federal. Atuará, portanto, também em casos paradigmáticos cuja interpretação da norma necessite de uniformização por si.

Não por outro motivo que os Tribunais Superiores e o próprio Supremo, em matéria de jurisdição recursal penal exercem o que se pode chamar de cognição restrita, isto é, podem conhecer somente das matérias de direito. As matérias fáticas, isto é, todas as particularidades do caso objeto do processo, onde se exerce cognição plena sobre tais matérias têm sua apreciação limitada ao órgão jurisdicional de segundo grau.

Tudo isso evidencia o óbvio, isto é, o constituinte previu sim a presunção de inocência como um direito fundamental, contudo, tal direito fundamental fora previsto num cenário constitucional de absoluta excepcionalidade de acesso a Tribunais Superiores e à própria Corte Constitucional. Banalizar o acesso a tais tribunais - como se faz hodiernamente - é banalizar o próprio texto constitucional e, assim, lograr argumentos para defender o absolutismo de um direito que longe se encontra de sê-lo.

Ainda, cabe lembrarmos do direito ao duplo grau de jurisdição. Referido direito, como se sabe, não encontra previsão expressa no texto constitucional. Extrai-se o duplo grau de jurisdição, tão somente, como um direito de índole infraconstitucional, vez que incorporado ao direito brasileiro pela subscrição do Pacto de São José da Costa Rica, mais especificamente no item 2, "h", de seu artigo 8, consubstanciado no direito de todo acusado recorrer da sentença para juiz ou tribunal de hierarquia superior.

O Supremo, por reiteradas vezes, ao se deparar com o direito ao duplo grau de jurisdição face aos acusados em instância única em virtude do foro por prerrogativa de função, sempre compreendeu sua índole infraconstitucional e, ademais, que não se tratava de um direito de caráter absoluto. Vejamos o delineamento que foi dado a tal direito:

"Duplo grau de jurisdição no Direito brasileiro, à luz da Constituição e da Convenção Americana de Direitos Humanos. Para corresponder à eficácia instrumental que lhe costuma ser atribuída, o duplo grau de jurisdição há de ser concebido, à moda clássica, com seus dois caracteres específicos: a possibilidade de um reexame integral da sentença de primeiro grau e que esse reexame seja confiado a órgão diverso do que a proferiu e de hierarquia superior na ordem judiciária. Com esse sentido próprio - sem concessões que o desnaturem - não é possível, sob as sucessivas Constituições da República, erigir o duplo grau em princípio e garantia constitucional, tantas são as previsões, na própria Lei Fundamental, do julgamento de única instância ordinária, já na área cível, já, particularmente, na área penal. A situação não se alterou, com a incorporação ao Direito brasileiro da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José), na qual, efetivamente, o art. 8º, 2, h, consagrou, como garantia, ao menos na esfera processual penal, o duplo grau de jurisdição, em sua acepção mais própria: o direito de 'toda pessoa acusada de delito', durante o processo, 'de recorrer da sentença para juiz ou tribunal superior'. Prevalência da Constituição, no direito brasileiro, sobre quaisquer convenções internacionais, incluídas as de proteção aos direitos humanos, que impede, no caso, a pretendida aplicação da norma do Pacto de São José: motivação. (...) Competência originária dos tribunais e duplo grau de jurisdição. Toda vez que a Constituição prescreveu para determinada causa a competência originária de um tribunal, de duas uma: ou também previu recurso ordinário de sua decisão (CF, arts. 102, II, a; 105, II, a e b; 121, § 4º, III, IV e V) ou, não o tendo estabelecido, é que o proibiu. Em tais hipóteses, o recurso ordinário contra decisões de tribunal, que ela mesma não criou, a Constituição não admite que o institua o direito infraconstitucional, seja lei ordinária seja convenção internacional: é que, afora os casos da Justiça do Trabalho - que não estão em causa - e da Justiça Militar - na qual o STM não se superpõe a outros tribunais -, assim como as do Supremo Tribunal, com relação a todos os demais tribunais e juízos do País, também as competências recursais dos outros tribunais superiores - o STJ e o TSE - estão enumeradas taxativamente na Constituição, e só a emenda constitucional poderia ampliar. À falta de órgãos jurisdicionais ad qua, no sistema constitucional, indispensáveis a viabilizar a aplicação do princípio do duplo grau de jurisdição aos processos de competência originária dos Tribunais, segue-se a incompatibilidade com a Constituição da aplicação no caso da norma internacional de outorga da garantia invocada." (RHC 79.785, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, julgamento em 29-3-2000, Plenário, DJ de 22-11-2002.) No mesmo sentido: AI 601.832-AgR, Rel. Min. Joaquim Barbosa, julgamento em 17-3-2009, Segunda Turma, DJE de 3-4-2009.

Ainda que se discuta, doutrinariamente, a possível natureza de fundamentalidade do direito ao duplo grau de jurisdição, por força da cláusula de abertura constante do parágrafo 2º, do art. 5º da Constituição, extraindo-o da ampla defesa (inciso LV, do art. 5º), fato é que o nome bem diz, se trata de um direito ao duplo grau de jurisdição e, não de triplo ou quádruplo grau. Aferir as Cortes Superiores como uma terceira ou quarta instância se tornou uma excrescência brasileira.

O duplo grau de jurisdição impõe que o acusado tenha direito ao reexame, por um órgão judiciário hierarquicamente superior, de toda matéria envolvendo a sua acusação, tanto fática quanto jurídica. Por tal motivo, por exemplo, é que para se recorrer de uma condenação criminal de primeiro grau, num recurso de apelação, não se exige qualquer demonstração de repercussão geral ou se limita a matéria que pode ser discutida3. O recurso a um órgão jurisdicional de segunda instância contra uma condenação exarada em primeiro grau restituirá ao órgão hierarquicamente superior a apreciação de toda a matéria objeto do processo, seja ela fática, probatória ou jurídica, satisfazendo plenamente o duplo grau de jurisdição.

A presunção de inocência, portanto, há de prevalecer enquanto se discutir subjetivamente a causa, isto é, enquanto prevalecer a análise fática, probatória e jurídica, independentemente de qualquer repercussão geral da causa. Tal discussão se dá até o limite dos órgãos jurisdicionais de segunda instância. Após este momento processual, o acesso recursal já não é mais regra, mas sim exceção e, portanto, descabe prevalecimento de uma presunção que já se encontra maculada pela confirmação de uma condenação pelo último órgão jurisdicional apto a analisar os fatos praticados e provas que embasaram a condenação.

Não custa repetir: afirmar que presunção de inocência impede a efetividade da condenação penal após exaurimento da jurisdição de segundo grau significa encarar o excepcional - acesso recursal aos Tribunais Superiores - como se regra fosse, numa absoluta e teratológica subversão do sistema constitucional que, como visto, modelara o STF e Tribunais Superiores não como mera instância revisora, mas sim como instância destinada à uniformização normativa, ou seja, à apreciação de leading cases, que por sua própria natureza transcendam aos interesses da parte do processo. Nos Tribunais Superiores, em matéria recursal, o que importa é a questão atinente ao direito objetivo e não aos interesses subjetivos das partes.

Com a devida vênia, mas quando da presunção de inocência se busca extrair a impossibilidade de início da execução penal já confirmada em segunda instância, não se está prestigiando o direito fundamental, mas sim banalizando-se a jurisdição penal e, em última instância, o próprio papel resguardado pelo constituinte ao STF e demais Tribunais Superiores. Se desprestigia, assim, a própria Constituição, ignorando o todo no qual a presunção de inocência está inserto e, lendo-o como letra apartada do resto.
Assim, para nós é evidente que o direito fundamental a presunção de inocência possui peso suficiente para impedir a execução penal enquanto a culpabilidade é discutida em plenitude, isto é, até o juízo de segundo grau. Passado isso, a culpabilidade está formada, devendo ceder a presunção de inocência, face a excepcionalidade de qualquer recurso posterior, que discutirá somente matérias de direito.

2.2. A cultura dos tribunais superiores

No Brasil vemos, infelizmente, uma vasta cultura de se "recorrer a qualquer custo". A partir de tal visão deturpada, passa-se a encarar a exceção como se regra fosse.

O acesso recursal aos Tribunais Superiores, como se disse, é uma possibilidade excepcional, daí afigurando-se que os direitos fundamentais também são interpretados tendo este parâmetro em consideração, face ao princípio da unidade da Constituição.

Nos parece, um uso meramente retórico de temos como "direitos fundamentais" e dos próprios "direitos humanos", as correntes afirmações que sustentam que a restrição da presunção de inocência aos julgados em segundo grau configura "grave violação aos direitos humanos", etc., como se por tal fato, por si só, estivéssemos diante de arbitrariedades.

A condenação, observando todos os parâmetros do contraditório, da ampla defesa, da licitude das provas, da necessária fundamentação e todas as demais garantias, tendo-se oportunizado a plenitude do exercício do direito de defesa, tanto em primeiro quanto em segundo graus de jurisdição, mostra-se longe de ser uma arbitrariedade.

O que precisamos, no Brasil, é modificar a cultura dos Tribunais Superiores. Estes não podem ser encarados como terceira ou quarta instância, ou como instância na qual toda e qualquer decisão prolatada em território nacional possa ser reexaminada. Se trata, em sentido oposto, de acesso excepcional, cujo fundamento será o sentido objetivo da decisão e, não o interesse meramente subjetivo das partes, quando estivermos tratando de competência recursal.

Deve-se, portanto, pôr fim à banalização dos recursos que a própria teoria do processo classifica como "extraordinários", justamente pela excepcionalidade de seu cabimento, tratando-se justamente dos recursos destinados aos Tribunais Superiores, cuja cognição é estrita.

3. Das falácias políticas por trás da discussão e as falsas "razões humanitárias"

Razões supostamente humanitárias e relacionadas aos direitos humanos são frequentemente levantadas por muitos que sustentam a inconstitucionalidade da execução da pena após a condenação em segunda instância. Em especial, podemos visualizar um grande estardalhaço produzido por setores da esquerda política, que querem fazer crer que a prisão de um sujeito condenado em segunda instância configura uma "gravíssima violação aos direitos humanos".

Com a devida vênia, mas não passa de uma falácia retórica e um evidente oportunismo político que não pode ser ignorado.

Isto porque as correntes da esquerda constroem a sua força discursiva correntemente sob o fundamento da proteção aos excluídos socialmente, dos desamparados pelo Estado, etc., querendo fazer crer que o discurso contra prisão em segunda instância se destina a proteger tais pessoas.

Curioso, no mínimo, que durante os 20 anos em que prevaleceu o entendimento de que a prisão após condenação em segunda instância não fere a presunção de inocência, não tenham as mesmas correntes políticas da esquerda se manifestado em qualquer proporção sequer próxima dos ruídos atuais.

Possivelmente, durante estes 20 anos ainda imperava no Brasil a figura da prisão somente para os mais necessitados, etc., ou seja, justamente para aqueles que a esquerda supostamente visa proteger. Enquanto a prisão era só para estes, as forças políticas se mantinham inertes, sem interesse de atuação.

Bastou, no entanto, que políticos e executivos passassem a ser atingidos pela prisão, que aí sim se levantam contra a prisão em segunda instância. Nada mais do que uma falácia política, por meio da qual se busca fazer crer que o discurso é de proteção aos direitos humanos, quando na verdade o discurso é para proteger pessoas bem específicas, isto é, políticos e executivos corruptos.

Bom seria se as mesmas forças políticas se movimentassem, com tamanho empenho, por exemplo, contra a banalização da prisão preventiva no Brasil, esta sim que já ocorre há bastante tempo. Não obstante, antes da prisão preventiva passar a atingir políticos investigados e denunciados em processos criminais, raramente se ouvia, fora dos meios acadêmicos, alguma crítica ao uso excessivo da prisão preventiva.

Politicamente, o interesse surgiu pelas forças políticas de esquerda, não quando a prisão preventiva atingia somente as classes desfavorecidas, mas sim quando passou a atingir elites políticas e econômicas.

Bom seria, também, que os mesmos que organizaram livros, artigos, eventos, etc., para tratar do "processo Lula" denunciassem, também, com tamanha ênfase, os desrespeitos a direitos fundamentais que ocorrem hodiernamente no processo penal brasileiro, em especial, contra acusados de classes desfavorecidas. Curioso, no mínimo, que a força política que, justamente afirme a proteção de tais classes tenha se movimentado somente para proteger elites políticas e econômicas responsáveis pelo caos econômico e social vivido no Brasil. Tudo isto a evidenciar a descarada hipocrisia de muitos que, politicamente, se posicionam contra a execução de prisão após a segunda instância.

Outro fato que deve ser mencionado, é que a prisão após julgamento em segunda instância é assunto de interesse das próprias elites econômicas e políticas que ora se levantam. As classes mais desfavorecidas desde sempre vêm sendo atingidas pela banalizada prisão preventiva, de tal sorte que quando seus processos chegam à segunda instância, na maioria das vezes já estão presas há considerável período. Daí porque também se trata de mais uma falácia a tamanha ênfase com se voltam contra a execução de prisão após segunda instância com fundamento no argumento pró direitos humanos.

Vê-se que os movimentos políticos ora atuantes, a bem da verdade não estão preocupados com direitos humanos ou com a proteção dos menos favorecidos. Assim não fosse, certamente teriam se movimentado com força similar durante os 20 anos em que prevaleceu o entendimento de cabimento da prisão após segunda instância, ou então durante todos estes anos de banalização da prisão preventiva no Brasil. A preocupação destes movimentos, ao contrário, é em assegurar privilégios a elites políticas e econômicas, na absoluta contramão do pregado discursivamente.

Não nos enganemos, então, ao acreditar que o motivo que está por trás de tamanho levante contra a prisão em segunda instância seja qualquer intento de proteção a direitos fundamentais e humanos. Esta é somente a aparência do discurso. Contudo, não podemos esquecer que, por vezes, entre aparência e essência há uma distância gritante.

4. Conclusão

Por todo o exposto, é que nos parece que, ressalvadas todas as vênias aos entendimentos contrários, que a Constituição Federal de 1988 não apenas permite, mas impõe a execução da pena após confirmação da condenação em segunda instância.

Por fim, de se ressaltar que a mácula política que atualmente se põe sobre o tema é muito mais fruto de hipocrisia e falácia política do que se genuíno interesse na proteção ou efetivação de direitos fundamentais.

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1 - Parecer juntado pela defesa do ex-presidente Lula nos autos do Habeas Corpus nº 152.752 do STF, e que pode ser acessado publicamente através do seguinte link: clique aqui.

2 - Entendimento este que só fora modificado quando do julgamento do Habeas Corpus nº 84078/MG, pelo Supremo Tribunal Federal, tendo como relator a época o Ministro Eros Grau. Posteriormente, em 2016, o antigo entendimento predominara novamente, por ocasião do julgamento do Habeas Corpus nº 126.292/SP, da relatoria do Ministro Teori Zavascki.

3 - Exceção feita pelo Código de Processo Penal às decisões emanadas do Tribunal do Júri, vez que a apelação contra esta tem seus fundamentos materiais bastante restringidos pelo art. 593, III do Código de Processo Penal. Tal restrição encontra guarida na Constituição, contudo, por força do princípio da soberania das decisões do Tribunal do Júri, conforme art. 5º, XXXVIII, "c" da Constituição Federal.

__________

*Roberto Beijato Junior é mestre e doutorando em Filosofia do Direito. Professor titular da EPD - Escola Paulista de Direito, onde ministra as seguintes disciplinas: Filosofia; Ética geral e profissional; Teoria da Constituição e jurisdição constitucional. Na mesma faculdade exerce o cargo de coordenador do curso de graduação em Direito. Advogado sócio do escritório Azevedo Gonzaga & Beijato Advogados, especializado na atuação no campo da ética profissional de advogados.

 

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