O STF, a ADIn 1802 e a ausência de poder da Receita Federal de suspender imunidades de entidades assistenciais
A partir da decisão da ADIn 1.802, a Receita Federal, até que uma lei complementar seja promulgada dispondo sobre o tema, não poderá afastar a imunidade imposta às instituições de educação e de assistência social sem finalidade lucrativa por meio de procedimento próprio, sob pena de infringir o entendimento da Suprema Corte.
terça-feira, 21 de agosto de 2018
Atualizado em 26 de setembro de 2019 17:21
Por unanimidade de votos, o STF, em decisão de mérito, confirmou medida cautelar anteriormente deferida e julgou parcialmente procedente a Ação Direta de Inconstitucionalidade 1802, declarando o parágrafo 1º, a alínea "f" do parágrafo 2º do artigo 12; o artigo 13, caput; e o artigo 14 da lei 9532/97 como inconstitucionais por desrespeito ao princípio da reserva legal de lei Complementar, previsto no inciso II, do artigo 146, da Constituição Federal de 1988.
O referido normativo determinava que para efeitos do disposto no art. 150, inciso VI, alínea "c" da Constituição, ou seja, imunidade de impostos sobre patrimônio, renda ou serviços das instituições de educação e de assistência social sem fins lucrativos, não estariam abrangidos os rendimento e ganhos de capital auferidos em aplicações financeiras de renda fixa ou variável1 e, ademais, estariam as entidades obrigadas a recolher os tributos retidos sobre os rendimentos por elas pagos ou creditados e a contribuição para a seguridade social relativa aos empregados.2
A Suprema Corte encerrou por definitivo um antigo pleito das instituições sem finalidade lucrativa reafirmando entendimento majoritário em abarcar pelo direito imunizatório os acrescimentos patrimoniais oriundos de aplicações financeiras.
Seguindo a própria linha da Súmula Vinculante 52 (antiga súmula 754) que pacificou o entendimento no sentido de ainda quando alugado a terceiros, permanece imune ao IPTU o imóvel pertencente a qualquer das entidades referidas pelo art. 150, VI, "c", da Constituição Federal, desde que o valor dos aluguéis seja aplicado nas atividades para as quais tais entidades foram constituídas, os eventuais superávits das entidades, seja por qualquer meio, atividade fim ou não, desde que revertidos para as finalidades institucionais, não ensejaria no descumprimento dos requisitos previstos no art. 14 do Código Tributário Nacional que determina o cumprimento para a fruição da imunidade de impostos.
Nesse sentido, coloca-se uma pá de cal no tema, uma vez que o art. 12, §1º foi considerado material e formalmente inconstitucional pelos ministros do STF, e finalmente as entidades sem fins lucrativos detêm maior segurança jurídica para investirem seu patrimônio e gerarem riquezas.
Além disso, a decisão na ação declaratória de inconstitucionalidade descartou a possibilidade, pela Secretaria da Receita Federal do Brasil, de suspender o gozo da imunidade relativamente aos anos-calendários em que a pessoa jurídica houver praticado ou, por qualquer forma, contribuído para a prática de ato que constitua infração a dispositivo da legislação tributária, por meio do procedimento do art. 32 da lei 9.430/96, a lei do procedimento administrativo fiscal.3
Sobre este último aspecto é que este artigo irá se debruçar, uma vez que, a priori, são nulos de plenos diretos todos os lançamentos realizados contra as entidades imunes aos impostos que sofreram a pena de suspensão de imunidade, e os créditos cobrados pela Fazenda Pública com base na suspensão da imunidade são inexigíveis, não podendo a Secretaria da Receita Federal afastar a imunidade das instituições até a promulgação de uma lei complementar dispondo sobre o tema.
Explica-se.
Preliminarmente insta destacar que a ação direta de inconstitucionalidade visa expurgar do ordenamento jurídico normas que atentem contra a constituição federal. Nesse sentido, a ideia de controle de constitucionalidade das leis e atos normativos está ligada basicamente a dois aspectos: a supremacia e a higidez da Constituição.
Trata-se de importante instrumento jurídico para que leis não venham a ferir princípios normativos basilares.
Em regra, os efeitos da decisão são retroativos (ex tunc), gerais (erga omnes), repristinatórios e vinculantes, uma vez que, afinal, se uma lei é incompatível com a constituição, não pode produzir efeitos regulares e válidos. Por isso, a decisão que reconhece a inconstitucionalidade tem caráter declaratório.
In caso, com a declaração de inconstitucionalidade do procedimento previsto no nos art. 13 e 14 da lei 9.537/97, qual seja, de suspensão da imunidade pela Receita Federal, justamente por ferir o princípio da reserva de lei complementar previsto no art. 146 da CF/88, tornou-se de clareza solar que todos os lançamentos e procedimentos realizados com fundamento nesses dispositivos são absolutamente nulos, tais quais eventuais lançamentos baseados no deferimento da suspensão, são igualmente inválidos.
Nos dizeres do art. 142 do Código Tributário Nacional, o lançamento consiste em um procedimento administrativo tendente a verificar a ocorrência do fato gerador da obrigação correspondente, determinar a matéria tributável, calcular o montante do tributo devido, identificar o sujeito passivo e, sendo caso, propor a aplicação da penalidade cabível.
A doutrina se divide acerca da natureza jurídica do lançamento. Para alguns, como o Professor Paulo de Barros4, seria um ato jurídico, enquanto para outros seria um procedimento, uma vez que afeta o direito dos contribuintes e uma vez que possuir determinadas formalidades para ser válido5.
O STF vem há tempos se posicionando classificando o lançamento como uma espécie de ato administrativo6 e, portanto, sujeito as regras específicas ao tema.
Segundo Hely Lopes Meirelles7, o exame do ato administrativo revela nitidamente a existência de cinco requisitos necessários à formação, a saber: competência, finalidade, forma, motivo e objeto. Tais componentes, pode-se dizer, constituem a infraestrutura do ato administrativo, seja ele vinculado ou discricionário, simples ou complexo, de império ou de gestão.
Por sua vez, os requisitos do ato administrativo podem ser definidos, fundamentados no ensinamento do mesmo emérito professor, de forma resumida, como:
a) Competência administrativa é o poder atribuído ao agente da Administração Pública para o desempenho de suas funções;
b) Finalidade é o objetivo de interesse público a atingir;
c) Forma é o revestimento exteriorizador do ato administrativo, constituindo requisito vinculado e imprescindível a sua perfeição;
d) Motivo é a situação de direito ou de fato que determina ou autoriza a realização do ato administrativo; e
e) Objeto é o conteúdo do ato, através da qual a Administração Pública manifesta o seu poder, a sua vontade, ou simplesmente atesta situações já existentes.
Assim, necessariamente todos os atos administrativos devem estar revestidos desses cinco requisitos para que não seja considerada a sua invalidade/nulidade/anulabilidade.
No âmbito da Secretaria da Receita Federal, e relativamente à matéria tributária, há no Código Tributário Nacional várias outras hipóteses de nulidade, tais quais:
-art.142: nulidade do lançamento por erro na identificação do sujeito passivo, ilegitimidade passiva;
-art.150, §4º e 173, inciso I: ocorrida a decadência há autorização para declarar a nulidade do lançamento; e
-art.173: na expedição de ato administrativo sem observação de todas as formalidades essenciais, ou mesmo o ato expedido sem a forma legal, desatenção à solenidade exigida em lei, haverá vício formal.
O decreto 70.235/72 que dispõe sobre o processo administrativo fiscal também determina.
Art. 10. O auto de infração será lavrado por servidor competente, no local da verificação da falta, e conterá obrigatoriamente:
I - a qualificação do autuado;
II - o local, a data e a hora da lavratura;
III - a descrição do fato;
IV - a disposição legal infringida e a penalidade aplicável;
V - a determinação da exigência e a intimação para cumpri-la ou impugná-la no prazo de trinta dias;
VI - a assinatura do autuante e a indicação de seu cargo ou função e o número de matrícula.
Art. 11. A notificação de lançamento será expedida pelo órgão que administra o tributo e conterá obrigatoriamente:
I - a qualificação do notificado;
II - o valor do crédito tributário e o prazo para recolhimento ou impugnação;
III - a disposição legal infringida, se for o caso;
Assim, certo que a suspensão da imunidade realizada pela Receita Federal é inconstitucional, passou a inexistir fundamento para os atos administrativos e lançamentos realizados pelo fisco, e até pelo princípio do estrito cumprimento legal da Administração Pública, são absolutamente nulos.
Nota-se que, a decisão do STF determina, por força legal o seu cumprimento pela Receita Federal do Brasil e pela Procuradoria da Fazenda Nacional uma vez que não devem discordar dos entendimentos pacíficos dos Tribunais Superiores8, sejam os julgados pela sistemática da Repercussão Geral e do Recurso Repetitivo ou, seja as decisões de controle concentrado na forma do art. 535 do CPC III e §5º e 8º9.
Antes mesmo da promulgação do novo CPC os auditores da Receita Federal já estavam obrigados a adotar os entendimentos proferidos em ações diretas de inconstitucionalidade (ADIns) ou súmulas vinculantes do Supremo, bem como o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF), em seus julgamentos, conforme entendimento do CARF.10 , mas com o advento da nova lei processual, não resta mais dúvidas.
Somado a isso, será possível aos processos em fase de execução apresentar exceção de pré-executividade, ou ainda, nos processos findos, ação rescisória para desconstituir a coisa julgada, nos termos da lei processual.
Por fim, a partir da decisão da ADIn 1.802, a Receita Federal, até que uma lei complementar seja promulgada dispondo sobre o tema, não poderá afastar a imunidade imposta às instituições de educação e de assistência social sem finalidade lucrativa por meio de procedimento próprio, sob pena de infringir o entendimento da Suprema Corte.
Nesse cenário, em tese não há legislação que permita a RFB aplicar a pena de suspensão da imunidade, não tendo o órgão de fiscalização fundamento legal para lançar créditos abrangidos pelas imunidades atinentes as entidades de educação sem fins lucrativos e de assistência social, esse é um cenário que nos coloca certa curiosidade como vai proceder a Receita Federal nas próximas fiscalizações e certamente criará outra zona de litígios judiciais.
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1 Art. 12, § 1º da lei 9.532/97
2 Art. 12, § 2º, alínea"f" da lei 9.532/97
3 Arts. 13 e 14 da lei 9.532/97
4 Carvalho, Paulo de Barros, 2007, Curso de Direito Tributário, São Paulo, Saraiva pág. 423
5 MACHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário, 31ª Ed., Malheiros, São Paulo: 2010, pag. 182
6 REsp. 48.516-SP, 2ª Turma. ReI. Min. Ari Pargendler, Julgado em 23.09.97, DJ 13.10.97
7 MEIRELLES, 1991, p.183-184
8 Artigo 1.036 e seguintes do Código de Processo Civil
9 Art. 535. A Fazenda Pública será intimada na pessoa de seu representante judicial, por carga, remessa ou meio eletrônico, para, querendo, no prazo de 30 (trinta) dias e nos próprios autos, impugnar a execução, podendo arguir:
III - inexequibilidade do título ou inexigibilidade da obrigação;
§ 5o Para efeito do disposto no inciso III do caput deste artigo, considera-se também inexigível a obrigação reconhecida em título executivo judicial fundado em lei ou ato normativo considerado inconstitucional pelo STF, ou fundado em aplicação ou interpretação da lei ou do ato normativo tido pelo STF como incompatível com a Constituição Federal, em controle de constitucionalidade concentrado ou difuso.
§ 8o Se a decisão referida no § 5o for proferida após o trânsito em julgado da decisão exequenda, caberá ação rescisória, cujo prazo será contado do trânsito em julgado da decisão proferida pelo STF.
10"PIS. Restituição. Decadência. Uniformização de jurisprudência. Tribunais Superiores. (art. 543-B e 543-C do CPC/1973). Necessidade de reprodução das decisões pelo CARF (art. 62-A do RICARF). Restituição. Compensação. Prazo prescricional. Irretroatividade da LC 118/2005. Pedido formulado antes de 09.06.2005. Vigência da tese dos 10 anos. Aplicação do entendimento externado no RE 566.621. Correção monetária. Restituição e compensação de indébito tributário. Princípio da moralidade. Constituição federal, art. 37. Expurgos inflacionários. STJ. 1990. IPC. Precedentes. Na vigência de sistemática legal geral de correção monetária, a correção de indébito tributário há de ser plena, mediante a aplicação dos índices representativos da real perda de valor da moeda, não se admitindo a adoção de índices inferiores expurgados, sob pena de afronta ao princípio da moralidade administrativa e de se permitir enriquecimento ilícito do estado. Recursos especiais do procurador negado e do contribuinte provido" (Câmara Superior de Recursos Fiscais, 3.ª T., Recurso Especial do Contribuinte 9303-001.832, Processo 10875.001055/00-84, rel. Maria Teresa Martinez Lopez, Sessão em 01.02.2012).
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*Kildare Meira é advogado do escritório Covac - Sociedade de Advogados.
*José Roberto Covac Júnior é advogado do escritório Covac - Sociedade de Advogados.
*Augusto Paludo é advogado do escritório Covac - Sociedade de Advogados.
*Leonardo Caetano Vilela é advogado do escritório Covac - Sociedade de Advogados.