As dificuldades práticas da denúncia genérica - Júri do Carandiru
A denúncia genérica em nada se confunde com a autoria incerta, até porque a primeira é de cunho estritamente processual.
domingo, 29 de julho de 2018
Atualizado em 25 de setembro de 2019 17:29
No dia 02 de outubro de 1992, a Polícia Militar do Estado de São Paulo foi acionada para conter uma rebelião que ocorria no interior da Casa de Detenção, apelidada de Carandiru (por situar-se neste conhecido bairro). Era o início de um dos casos mais estudados, discutidos e conhecidos do país: o "Massacre do Carandiru", que deixou um rastro de 111 detentos mortos.
Respeitando-se a seriedade das consequências advindas desta truculenta ação policial, há que se destacar importantes considerações acerca do Direito Penal brasileiro aplicável ao caso. Todavia, não é objeto do presente estudo a análise do mérito da questão, pois os policiais militares se depararam com uma grave situação de quebra da lei e da ordem e agiram sob o comando de um Coronel, devidamente autorizado pelo Estado (por meio da Secretaria de Segurança Pública) a atuar para reestabelecer a normalidade.
Além do mais, relembrando que os policiais militares possuem o especial dever de agir (artigo 13, § 2º, do Código Penal) indaga-se como responsabilizá-los pelas mais de cem mortes, sendo que foram os próprios detentos que criaram a situação de risco e de desordem, mediante uma rebelião de enormes proporções?
Ou é possível constatar um exagero nas medidas de contenção e, então, imputar a ocorrência do resultado morte aos policiais? E mais: Como identificar e destacar a conduta de cada policial (abordagem individual), para responsabilizá-lo pelo(s) crime(s) de homicídio eventualmente cometido(s)?
Como se vê, revela-se bastante evidente a necessidade de um contato íntimo com os autos, para que se possa aferir, tanto quanto possível, a eventual prática criminosa por parte dos envolvidos. Ademais, não se pode perder de vista que o mérito é resolvido pelo E. Tribunal do Júri, soberano em suas decisões.
De qualquer modo, a questão ainda assombra nossos tribunais, haja vista a complexidade fática, probatória e jurídica que lhe é peculiar, o que faz com que o objetivo da presente abordagem seja discutir dois institutos que, frequentemente, são trazidos à tona quando o assunto é o "Massacre do Carandiru": a autoria incerta e a denúncia genérica.
Entende-se por autoria incerta, salienta Masson, a hipótese em que mais de uma pessoa é indicada como autora do crime, mas não se apura com precisão qual foi a conduta que efetivamente produziu o resultado. (...) Suponha-se que "A" e "B" com armas de fogo e munições idênticas escondam-se atrás de árvores para eliminar a vida de "C". Quando este passa pelo local, contra ele atiram, e "C" morre. O exame pericial aponta ferimentos produzidos por um único disparo de arma de fogo como causa mortis. Os demais tiros não atingiram a vítima e o laudo não afirma categoricamente quem foi o autor do disparo fatal1.
Neste caso, é importante reforçar, não há vínculo subjetivo entre "A" e "B", ou seja, eles não estão acertados para o cometimento do crime, pois, caso contrário, haveria o concurso de pessoas.
Então, neste exemplo citado pelo ilustre professor, indaga-se: qual a responsabilidade penal de "A" e de "B"?
Ora, sabe-se que "A" e "B" praticaram os atos executórios (efetuaram os disparos de arma de fogo), mas somente um deles efetivamente matou a vítima (o "autor incerto"). Então, levando-se em conta o basilar princípio in dubio pro reo, não há como imputar a prática de homicídio consumado para ambos: a dúvida quanto à produção do resultado obriga que ambos respondam por tentativa de homicídio (grande curiosidade na doutrina, pois a vítima vem, de fato, a falecer, mas os autores do crime respondem pelo crime tentado).
Bittencourt explica, com sua costumeira maestria: A autoria incerta, que pode decorrer da autoria colateral, ficou sem solução. No exemplo supracitado, punir ambos por homicídio é impossível, porque um deles ficou apenas na tentativa; absolvê-los também é inadmissível, porque ambos participaram de um crime de autoria conhecida. A solução seria condená-los por tentativa de homicídio, abstraindo-se o resultado, cuja autoria é desconhecida2.
E a curiosidade não para por aqui: imagine-se, no mesmo exemplo, que dois projéteis de arma de fogo tenham acertado a vítima, mas a perícia conclui apenas que o primeiro deles foi a causa da morte instantânea, sem poder apontar, com certeza, de qual arma de fogo o disparo foi efetuado: neste caso, temos a prática de um crime de homicídio (primeiro projétil) e a ocorrência de um crime impossível (o segundo projétil acertou a vítima quando ela já estava morta. Impropriedade do objeto: não há como matar alguém que já morreu). Em nome do mesmo princípio in dubio pro reo, ambos os autores devem ser absolvidos. A vítima vem a falecer, os dois autores confessam a prática do crime, mas, como não é possível saber quem "praticou" o crime impossível - que implica a absolvição por atipicidade da conduta (artigo 17 do Código Penal) -, a absolvição de ambos é a medida de rigor.
Por outro lado, a denúncia genérica em nada se confunde com a autoria incerta, até porque a primeira é de cunho estritamente processual. Com efeito, o artigo 41 do Código de Processo Penal determina que: A denúncia ou queixa conterá a exposição do fato criminoso, com todas as suas circunstâncias, a qualificação do acusado ou esclarecimentos pelos quais se possa identificá-lo, a classificação do crime e, quando necessário, o rol das testemunhas.
Como é sabido, o réu se defende dos fatos descritos na denúncia e não da imputação nela estabelecida. Em outras palavras, o réu se defende dos fatos narrados e a ele atribuídos, mas nunca da classificação do crime feita pelo Parquet (se o Ministério Público narra a prática de um crime de furto, mas o classifica como roubo, o réu deve se defender do crime de furto, pois foi o fato narrado na denúncia). Mas, em alguns casos, diante da notória complexidade fática, a dificuldade em delimitar as condutas praticadas pelos réus, com a precisão exigida pela lei, faz com que o promotor de justiça apresente uma denúncia mais ampla e geral.
Neste ponto, nossos tribunais superiores enfrentam o tema com bastante tranquilidade, sempre destacando que ao membro do Ministério Público cabe descrever a conduta do réu e correlacioná-la com os fatos narrados na exordial acusatória, não sendo suficiente o mero apontamento do cargo ostentado pelo réu (sócio, diretor etc). Veja-se:
"(...) Em sua decisão, o ministro Reynaldo Soares da Fonseca explicou que a denúncia genérica não é aceita, mas é possível a denúncia geral. Nesse caso, explica o ministro, apesar de não detalhar minudentemente as ações imputadas aos denunciados, demonstra, ainda que de maneira sutil, a ligação entre sua conduta e o fato delitivo.
No caso dos autos, segundo o ministro, houve a denúncia genérica, sendo os recorrentes denunciados apenas por serem sócios ou advogados das empresas investigadas, sem descrever a ligação entre a conduta destes e o delito.
A mera atribuição de uma qualidade não é forma adequada para se conferir determinada prática delitiva a quem quer que seja. Caso contrário, abre-se margem para formulação de denúncia genérica e, por via de consequência, para reprovável responsabilidade penal objetiva", complementou3.
No mesmo sentido é o entendimento do STF: A peça acusatória deve conter a exposição do fato delituoso em toda a sua essência e com todas as suas circunstâncias. Essa narração, ainda que sucinta, impõe-se ao acusador como exigência derivada do postulado constitucional que assegura ao réu o pleno exercício do direito de defesa. Denúncia que não descreve adequadamente o fato criminoso é denúncia inepta (...).4
Então, como se viu, o Ministério Público precisa descrever, ao menos minimamente, a ação de cada réu, cuja responsabilidade penal se pretende buscar, sob pena de violação do disposto no ordenamento jurídico. Além do mais, se o réu se defende dos fatos narrados na denúncia e a exordial acusatória é genérica, como exercer o direito à ampla defesa?
Sendo assim, levando-se em conta os conceitos da denúncia genérica e da autoria incerta, diante de um grande número de réus, pluralidade de condutas e de vítimas, como adequar a teoria ao caso do Carandiru que conta com 74 policiais no polo passivo da relação processual penal?
É importante destacar que, ao menos em tese, os policiais agiram com plena ciência da ação dos demais colegas, o que identifica, por si só, o vínculo subjetivo entre todos e afasta, portanto, a aplicação da teoria da autoria incerta. Não obstante, como já destacado, é preciso que se extraia da narração dos fatos descritos na denúncia, a colaboração de cada réu com o desdobramento fático que implicou a morte dos detentos, sob pena de uma eventual condenação criminal violar o princípio da ampla defesa e, ainda, do contraditório.
Daí forçoso reconhecer que a complexidade de um caso concreto pode implicar um tortuoso caminho a ser percorrido pela persecução penal. Mas, de qualquer modo, é preciso que se identifique um mínimo de elementos probatórios que conectem a imputação do resultado à prática do ato no mundo fático, para que então se possa atingir a legitimação do direito penal, com a consequente resposta desejada por toda a sociedade brasileira.
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1 - Masson, Cleber. Direito Penal, vol. 01, Parte Geral. Ed. Método, página 528.
2 - Bitencourt, Cezar Roberto. Tratado de direito penal. São Paulo: Editora Saraiva, 2000, p. 394,
3 - Por denúncia genérica, ministro tranca ação contra sócios e advogados.
4 - HC 73271 / SP.
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*Eudes Quintino de Oliveira Júnior é promotor de Justiça aposentado, mestre em Direito Público, pós-doutorado em Ciências da Saúde. Advogado e reitor da Unorp.
*Antonelli Antonio Moreira Secanho é assistente jurídico no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, bacharel em Direito pela PUC/Campinas e pós-graduação "lato sensu" em Direito Penal e Processual Penal pela PUC/SP.