Enxergar a realidade e se adaptar
A Advocacia, com sensibilidade e criatividade, saberá se posicionar e se adaptar, e encontrar seu papel, que é e sempre foi relevante e decisivo.
segunda-feira, 16 de julho de 2018
Atualizado em 24 de setembro de 2019 18:22
Nosso país é essencialmente burocratizado. Os sistemas são amarrados, engessados, e geralmente as mudanças legislativas ficam ao redor do essencial. É difícil quebrar privilégios e implementar medidas desenvolvimentistas. Além disso, há verdadeira aversão à planejamentos estratégicos e à mudanças de longo prazo. E considerando o ponto a que chegamos, é mesmo impossível qualquer solução que seja pensada apenas para um curto prazo.
Não se sabe em que exata medida, mas é de conhecimento público que a burocracia e a manutenção de privilégios absurdos, aliados à intensa dificuldade em implementar mudanças positivas de efeito, causam sérios danos à nossa sociedade; ao nosso desenvolvimento político e econômico.
Sabemos que a advocacia é essencial à democracia, à defesa de direitos, e também à organização de uma sociedade justa e igualitária. Não devemos ter receito de mencionar, no entanto, que nossa advocacia, em diversas de suas áreas de atuação, está de certa forma atrelada a esse sistema burocrático e de privilégios que impede nosso avanço.
Anos atrás, quando vivia na Inglaterra, eu tinha um vizinho coreano. Um senhor alegre e aparentemente muito bem sucedido, mas de pouca conversa. Um dia, em uma das poucas conversas que tivemos, ele me disse com toda sua sinceridade cultural: "Já estive no Brasil algumas vezes, trabalhando e fazendo negócios. Infelizmente, seu país, na minha opinião, não tem muito futuro. Países que tem muitos advogados e contadores, em nível excessivo mesmo, raramente vencem suas dificuldades e se desenvolvem".
Confesso que fiquei bastante chateado com meu vizinho. Sofri um pouco da dor do patriota. Andei até planejando um "contra-ataque". Mas não podia fazer mesmo nada, era a simples expressão da sua opinião. E com o tempo aquilo foi sendo por mim digerido até o ponto em que acabei por dar razão, pelo menos em termos, ao que me foi dito.
Lembro-me bem que há quase trinta anos, quando ingressei na faculdade de economia, a Coréia do Sul era um país bastante comparado ao Brasil. Ambos eram repetidamente chamados de "países em desenvolvimento". Havia até um bloco fictício com tais países. A renda per capta da Coréia era pouco mais da metade da renda per capta do Brasil. Naquela ocasião, a Coréia implementou um plano estratégico de desenvolvimento centrado na educação de qualidade de seu povo. Após todos esses anos, a Coréia é hoje um país desenvolvido; e aqui no Brasil estamos na mesma, ou talvez tenhamos andado de ré.
Tudo isso para dizer que do jeito que estamos, com esta estrutura, não há conjuntura que resista, nem há crise que possa ser superada em definitivo. A solução é o planejamento de longo prazo, a desburocratização, a simplificação, a eliminação de amarras e privilégios, o vencimento de problemas como a intensa desigualdade, o investimento robusto e de longo prazo em educação de qualidade e no desenvolvimento social.
E é evidente que quando vierem mudanças produtivas com vistas ao futuro, que permitam a solução efetiva das nossas questões e liberem o nosso desenvolvimento, a estrutura jurídica também será alterada, e nós advogados teremos que nos adaptar à nova realidade.
Recorro-me então, a título de exemplo, a uma mudança recente trazida pela reforma trabalhista. Como sabemos, a quantidade de ações trabalhistas individuais no Brasil é mesmo assombrosa, especialmente singular, impossível de ser comparada aos níveis de qualquer outro país do mundo. É mesmo impossível de se entender o grau de litigiosidade trabalhista no Brasil, assim como parece surreal a quantidade de detalhes de nossa legislação, assim como a sufocante carga de tributos e encargos. Enfim, seria estrondosamente estranho, se não fosse absolutamente comum em nossa realidade.
Pois bem, a referida reforma trouxe algumas alterações legislativas que objetivaram justamente diminuir o número excessivo de ações, ao mesmo tempo que incentivaram a negociação coletiva e mesmo a resolução de conflitos de forma coletiva.
Penso que nisso andou bem, apesar de entender que alguns outros pontos ficaram mal resolvidos ou pela metade. Efetivamente, a necessidade de uma atitude responsável relativamente ao objeto de cada ação, foi aguçada pela possibilidade de condenação em honorários, e pelo maior rigor na análise dos requisitos para uma eventual concessão da gratuidade.
Segundo os índices que vem sendo divulgados, a interposição de ações trabalhistas vem sofrendo redução, assim como foram reduzidos, por exemplo, os pedidos de danos morais, sendo provável que tal movimento se consolide, parecendo pois que o objetivo da reforma nesse particular vem sendo atingido.
Pois bem, diante desse fato, não é estranho supor que sensível parcela dos advogados que atuam nessa esfera da justiça estejam preocupados. Entendo, porém, que há pleno espaço para adaptações e redirecionamentos da atuação, em escala inclusive que pode ser considerada profissionalmente mais produtiva e satisfatória.
Como já foi dito, a própria reforma trouxe mais espaço para os entendimentos coletivos. Essa área é ainda pouco explorada em nosso país. Acredito que o próprio excesso de litigiosidade atrapalhava os ajustes coletivos. E a aproximação entre trabalhadores e empresas apresenta ótimas oportunidades para ajustar regras específicas à forma de trabalho necessária, gerando ganhos de produtividade e incremento remuneratório.
Tendo de enfrentar menos demandas, as empresas podem voltar seu foco às próprias relações de trabalho e melhorar o seu ambiente. Há espaço para a reorganização e crescimento da atuação sindical, tanto no que se refere às negociações, quanto no que se refere à atividade jurisdicional coletiva, na atuação do sindicato como substituto processual.
Há espaço para os advogados na constituição, desenvolvimento e gerenciamento de departamentos de negociações coletivas em sindicatos e em empresas. A própria atuação nas ações individuais tende a ficar mais seletiva e ao mesmo tempo focar em problemas efetivos e substanciais.
Atuamos nas áreas do Direito do Trabalho e do Direito Sindical, entre outras, e temos enxergado várias novas oportunidades, inclusive com incremento do nível de satisfação profissional.
Da mesma forma, esperançosos de que novas mudanças virão, mudanças inclusive mais profundas, que possam nos direcionar positivamente a um futuro promissor, temos a certeza de que a advocacia, com sensibilidade e criatividade, saberá se posicionar e se adaptar, e encontrar seu papel, que é e sempre foi relevante e decisivo.
Não nos esqueçamos que todos nós somos eternos e humildes aprendizes.
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*Mauro Tavares Cerdeira é sócio do escritório Cerdeira Rocha Advogados e Consultores Legais.