Aos menores de 50
Inadvertidamente, parte da geração que tem menos de 50 anos, nos momentos de desalentos com os rumos que o País vem tomando ou com a falta de rumo, vive a verberar por intervenção militar, pela instituição de um governo forte capaz de resolver todas as nossas mazelas.
terça-feira, 19 de junho de 2018
Atualizado em 24 de setembro de 2019 14:52
No vídeo, em que o presidente Michel Temer, na sua corrida matinal, era aclamado, por alguns transeuntes, de golpista, ladrão, bandido, seria razoável imaginar que o presidente não reagiu por conta de suas inabaláveis convicções democráticas, Ele até pode ser cultor desses valores, mas ele não reagiu, porque não pode. Não reagiu, porque as regras da democracia, insertas na Constituição Federal, não lhe permitem que o faça. Teve que engolir a seco as ofensas para curvar-se ao exercício do direito à liberdade de expressão que a Constituição assegura a todos, como um dos mais sagrados princípios basilares da democracia.
No entanto, inadvertidamente, parte da geração que tem menos de 50 anos, nos momentos de desalentos com os rumos que o país vem tomando ou com a falta de rumo, vive a verberar por intervenção militar, pela instituição de um governo forte capaz de resolver todas as nossas mazelas. Isso é preocupante. O ministro Ayres Britto repete com frequência; "cuidado com o que você pede a Deus, porque ele pode atender".
Pois bem, vamos admitir que Deus tenha resolvido atender aos reclamos daqueles que nunca experimentaram um regime autoritário e mande, para nós, um presidente forte para nos tirar de todo esse imbróglio em que estamos metidos. Imaginemos que teríamos um presidente tido como Meurei. Isso mesmo, presidente Meurei. Ele está vindo, a mando de Deus, para nos salvar.
No começo, seria uma festa, afinal o presidente Meurei limitou os poderes do Congresso Nacional e do Judiciário, amplamente respaldado pela opinião publica, porque, com base nessas medidas "saneadoras", mandou prender todos os políticos identificados como corruptos. A população e a mídia, em êxtase, aplaudem o novo mandatário. Tamanha é a adoração, que o presidente mal consegue caminhar pelas manhãs, nas imediações da sua residência oficial. Há sempre, em volta, uma pequena multidão a lhe transmitir apoio e carinho, entoando o refrão; "ei, ei, ei, o presidente é o nosso rei ei, ei, ei o presidente é nosso Rei....."
Com o tempo, entretanto, certos parlamentares, que não concordam com algumas medidas adotadas pelo novo governante, começam a lhe tecer críticas. Setores da sociedade também o fazem e a quase unanimidade de apoio, que antes dispunha, começa a minguar. Por fim, os passeios matinais já não são cheios de gente a aplaudi-lo. Aqui, acolá, ouve-se, não se sabe vindo de onde, um certo sussurro discreto diante da sua presença, "uuuuuuuuuuuu". O presidente segue tolerando, até o dia em que as primeiras vaias mais explícitas começam a incomodá-lo e aos seus áulicos que o acompanham nas caminhadas matinais e eventos públicos.
O novo presidente, que foi ungido com o firme propósito de fazer uma faxina ética no país, prometendo que entregaria o cargo na eleição seguinte, começa a mudar de ideia, seja porque tomou gosto pelo assento, - afinal, ninguém é de ferro - seja porque se acha tremendamente injustiçado com tudo aquilo. O fato é que o presidente Meurei decide que deve adiar as eleições e permanecer mais um tempinho para completar a "limpeza" moral que país necessita, alguns ratos conseguiram escapar da faxina grossa, em que pese todos os cuidados que adotou logo que assumiu.
Com a popularidade em declínio, o presidente, em uma andança matinal, foi brutalmente vaiado, chamado de traidor, golpista e outros adjetivos. Os seguranças que o acompanhavam já começam a perder a serenidade e usar da força para impedir os apupos. Os manifestantes passam a ser acusados de baderneiros e a manifestação é reprimida com "afagos" de cassetete, bombas de efeito moral e outros artefatos tecnológicos modernos, resultando em pequenos cortes nos supercílios de alguns, pernas e costelas quebradas em outros, "coisa boba", evidentemente, diante da "ignomínia" que é ofender o presidente redentor.
Todos esses fatos são amplamente divulgados pela imprensa e redes sociais. Daí que o presidente percebe que é preciso retomar as rédeas da situação, já que o país está sendo convulsionado e a baderna pode se agravar. Para preservar a autoridade presidencial, é baixado um decreto determinando que as notícias, antes de serem publicadas, passem por um filtro. Para isso, é criando um órgão de segurança com o objetivo de controlar os exageros, assegurando a estabilidade e a paz no seio da família brasileira. Fica estabelecido então que a liberdade de expressão é mantida, mas, por não se tratar de um direito absoluto, deve ser flexibilizada para preservar valores mais caros que interessam a todos, diz o governo.
Por conta dessas incompreensões, dessa má vontade da população para com o novo governante, a eleição direta para presidente que havia sido adiada, por motivo de segurança nacional, fica suspensa "temporariamente". Afinal, as coisas estão indo tão bem, na visão do governo, que não há necessidade delas. Com isso, o estamento governamental precisa formalizar o modelo de governo que pretende adotar. Pode ser a continuidade do presidente Meurei ou um modelo totalmente diferente, onde os presidentes possam ser trocados periodicamente, uma espécie de rodízio de ditador. Por que não?
Estabelecido um novo modelo, totalmente revolucionário, dinâmico, na visão do governo, em que a Constituição é rebaixada na hierarquia das leis, a flexibilização da liberdade de imprensa passa a ser estendida também para a autonomia do Ministério Público, da Polícia Federal e independência do Judiciário. O presidente Meurei, ou quem lhe tenha sucedido, não pode mais sair às ruas, por conta das vaias, vaias e mais vaias. Só não é chamado de corrupto e ladrão, porque a imprensa está proibida de exercer o jornalismo investigativo e os malfeitos não chegam ao conhecimento de ninguém. O Ministério Público e a Polícia Federal terão sido direcionados para investigar e propor punição aos inimigos do regime, considerados todos traidores da pátria. Ao Judiciário, só resta decidir sobre brigas de marido e mulher, vizinhos, pequenos furtos, essas bobagens, que passam a ser relevantes. Os delitos de lavagem de dinheiro, evasão de divisas, organização criminosa, peculato, corrupção ativa e passiva e outros de cunho financeiro podem até continuar no Código Penal e leis esparsas, mas apenas hibernando, para que a sociedade possa desfrutar da paz social.
Não há dúvida que os mais jovens, sobretudo os adolescentes e universitários desenvolverão novas habilidades, dentre elas, a de encapar livros e ler, através de movimentos corporais, o caráter dos amigos. No ambiente universitário, todos desconfiarão de todos. Haverá até espaço para se cultivar um certo talento sherlockiano, com o objetivo de descobrir se há algum agente infiltrado pelos asseclas do sistema do governo consolidado. Com certeza, haverá quem goste de desenvolver esse tipo de expertise. Livros como "O Capital", de Thomas Piketty, nem pensar em portá-lo, sem que estejam devidamente encapados. No exemplo, expressão "o capital" remete a um determinado autor proscrito do século XIX, extremamente perigoso. Trocas de livros, só com os amigos de extrema confiança e olhe lá.
O governo, cuidadoso como é na preservação da segurança nacional e nos valores morais dos jovens, passa a monitorar também os textos das peças de teatro, cinema, música e novelas de TV. Expressões "que porra é essa" e "barril dobrado", como se ouve não novela "Segundo Sol", da rede Globo, seriam vetadas. A primeira, porque atenta contra a pureza estética do linguajar da juventude e a segunda porque a palavra "barril", que no dicionário baianês, significa, também, coisa complicada, difícil, pode sugerir uma mensagem subliminar de atentado terrorista, afinal "barril" serve para conter pólvora, pólvora pode ser usada para fabricar explosivo e explosivo pode ser utilizado para implodir algum prócer do governo. Parece fantasia, mas não é. É assim que as coisas funcionam nas ditaduras, quaisquer que sejam elas, de direita ou de esquerda.
Nos anos 60, em Salvador, um grupo de estudantes do curso médio do Colégio Estadual da Bahia tentou exibir uma peça, escrita por Carlos Sarno, também estudante à época, A peça era uma sátira divertida contra o sistema de ensino público. O diretor do colégio proibiu a exibição, alegando que, em um dos diálogos, havia a expressão "bunda", que ele reputava como atentatória ao pudor. Os estudantes transgrediram e foram exibir a peça no restaurante universitário. A Polícia invadiu o restaurante, utilizando bombas de gás lacrimogênio e, em sua coreografia alucinante, tocava a "fanta" em toda a garotada, a maioria adolescente.
Em 1976, a peça "Romeu e Julieta", encenada pelo Balé Bolshoi, que seria transmitida pela TV Globo, teve sua exibição proibida pelo Ministro da Justiça, por entender, Sua Excelência, que uma companhia russa poderia apresentar uma leitura comunista da tragédia shakespeariana. O mesmo aconteceu com a primeira versão da Novela Roque Santeiro, que foi impedida de ser exibida pela Rede Globo, em 1975, apenas por se tratar de um texto teatral adaptado por Dias Gomes, anteriormente vetado, "O Berço do Heroi"
Hoje, com as redes sociais e as comunicações via aplicativos, como WhatsApp, no qual a criptografia não pode tecnicamente ser quebrada, por certo o ditador de plantão, se não optar pelo bloqueio total da plataforma, por conta da repercussão negativa no plano internacional, poderá realizar inúmeras blitz surpresa, instando os usuários de celulares a abrirem os seus smartphones para verificar se estão se comunicando através dessa modalidade virtual. Tudo em nome da segurança indispensável ao desenvolvimento do país e à preservação de valores que o governo entende como supremos. A Nação terá mudado, no dizer do Ministro Ayres Britto, "da idade da mídia para a idade média".
Todas essas medidas farão com que tenhamos um sistema muito mais eficiente de "fazer justiça". Os que incomodarem, os que reclamarem, os que discordarem dele, os que se organizarem em grupos considerados ilegais, de uma hora para outra, como num passe de mágica, serão misteriosamente abduzidos, sem que se saiba por quem nem para onde tenham sido levados. Serão retirados de circulação para não perturbarem a ordem e não atentarem contra os novos princípios do Estado. Volta e meia, haverá notícia vazada de que alguns desses ausentes terão sido suicidados numa delegacia ou em algum departamento de segurança.
Como tudo na vida, um dia tudo isso vai acabar. Retornaremos ao futuro, à idade da mídia, mas demora. A última vez que isso aconteceu, durou 21 anos. Fiquem ligados.
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*Ricardo César Mandarino Barretto é sócio do escritório Ayres Britto Consultoria Jurídica e Advocacia, juiz federal emérito e ex-integrante do CNMP.