Greve e serviços públicos essenciais
Seria fundamental um diagnóstico correto do processo de negociação (ou falta de) para aperfeiçoar o modelo e prevenir potenciais erros futuros. Não se trata de uma caça às bruxas, mas de aprendizado na crise.
terça-feira, 12 de junho de 2018
Atualizado às 12:49
No Direito Administrativo existe um princípio clássico, o da supremacia do interesse público sobre o privado. Apesar de muitos questionamentos, esse princípio ainda existe e deve ser prestigiado pelas autoridades públicas por meio do exercício do poder de polícia. Também no âmbito dos serviços de inteligência do Estado e de suas atividades investigatórias, o Poder Executivo deve perseguir o interesse público primário como um princípio estruturante nas democracias contemporâneas.
Há instituições que mesmo não integrando o Poder Executivo detêm atribuições investigatórias e praticam atos administrativos típicos, até com poder de polícia, como é o caso do Ministério Público.
Nesse contexto, as pessoas têm direito à prestação de serviços públicos ou essenciais adequados e contínuos (artigo 9.º, § 1.º, da Constituição Federal). A lei 7.783/89 (Lei de Greve) definiu os serviços e atividades essenciais, sem prejuízo de que outras normativas pudessem posteriormente incidir para novas inserções.
O legislador, ao regulamentar o direito de greve, tratou de enquadrar as necessidades inadiáveis da sociedade, tais como assistência médica e hospitalar, distribuição e comercialização de medicamentos e alimentos, transporte coletivo, tratamento e abastecimento de água, produção e distribuição de energia elétrica, gás, combustíveis, telecomunicações, processamento de dados ligados a serviços essenciais.
Existe uma cláusula geral para conceituar, no artigo 11, § único, da Lei de Greve, que são "necessidades inadiáveis da comunidade aquelas que, não atendidas, coloquem em perigo iminente a sobrevivência, a saúde, ou a segurança da população". O legislador valeu-se de uma técnica que remete a conceitos jurídicos indeterminados: "perigo iminente", "sobrevivência", "saúde", "segurança". Não pode haver paralisação total de serviços que adentrem essas zonas legais e cabe, num primeiro momento, ao Poder Executivo ou ao próprio Ministério Público realizar essa interpretação.
O que vimos recentemente no Brasil? Uma desorganização total em face do exercício do direito de greve por determinado segmento. O país mergulhou no caos. Importante, pois, buscar diagnósticos e análises acuradas.
Não há dúvida que o transporte de carga é um serviço essencial à sociedade brasileira, pois se trata do principal componente do sistema logístico das empresas que prestam os mais variados tipos de serviços e fornecem produtos, empresas que compõem a indústria nacional e os mais diversos segmentos.
No Brasil predomina a matriz do transporte rodoviário, embora a malha rodoviária seja de péssima qualidade (asfalto mal conservado ou até produto de superfaturamentos, falhas de construção, estradas e obras inacabadas, malha não pavimentada, pistas esburacadas).
No índice de eficiência logística do Banco Mundial, o Brasil aparece em patamar ruim. Em 2016 apareceu na 55.ª posição entre 160 países.
Pouco se falou, no entanto, sobre um detalhe, nesta greve: os transportadores rodoviários remunerados são obrigados por lei a se cadastrar no Registro Nacional de Transportadores Rodoviários de Cargas (RNTRC) e obter o respectivo registro. Há rigorosa lista de exigências para o desempenho dessa atividade econômica, o que parece contrastar com a realidade (condições de trabalho ruins, frota de caminhões talvez envelhecida). Em tese, os grevistas estavam todos devidamente identificados.
Esse mercado exigiria maior intervenção regulatória dos poderes públicos, é evidente. Há, por certo, omissão histórica no tratamento desse assunto. O transporte rodoviário tem sido abandonado, aparentemente, à sua própria sorte, assim como nossas rodovias.
A lei 11.442/17 disciplina o transporte rodoviário de cargas em vias públicas no Brasil e confere competências à Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) para cassar registros de motoristas e disciplinar com rigor o segmento. O transportador é responsável pelas ações ou omissões de seus empregados, agentes, prepostos ou terceiros contratados ou subcontratados para a execução dos serviços de transporte, como se essas ações ou omissões fossem próprias. Ministério Público do Trabalho poderia também intervir numa greve abusiva, se fosse o caso. Não se teve notícia pública de sua intervenção.
Quais são atualmente os transportadores, motoristas e veículos cadastrados no Brasil? Esse cadastro está completo ou pode ser aperfeiçoado em seu espectro regulatório? Há controles adequados? Qual a idade da frota? Como foi a atuação do Ministério Público do Trabalho nesse episódio da greve? E de cada uma das instituições competentes para resolver o problema? Era necessário chegar ao extremo da paralisação?
Ao que parece, representantes dos motoristas e transportadoras já haviam emitido sinais de insatisfação anteriormente, dadas as causas conhecidas da crise instalada. Desde quando foi detectado o movimento?
Seria fundamental um diagnóstico correto do processo de negociação (ou falta de) para aperfeiçoar o modelo e prevenir potenciais erros futuros. Não se trata de uma caça às bruxas, mas de aprendizado na crise.
A infraestrutura de transportes é essencial para o desenvolvimento de um país. A crise decorrente da greve escancarou muitas das fragilidades brasileiras, mas principalmente uma das razões por que somos menos competitivos no cenário internacional: a predominância do transporte rodoviário, com uma frota possivelmente antiga, estradas velhas e falta de controles dos poderes públicos.
Os custos logísticos na economia brasileira são altos e as condições de trabalho dos caminhoneiros, provavelmente, precárias. Esse debate carece de um aprofundamento em múltiplas direções. Há prejuízos bilionários suportados pela sociedade brasileira. Será que a negociação final resguardou o interesse público?
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*Fábio Medina Osório é sócio do escritório Medina Osório Advogados.