Os meandros da carga rápida: bônus ou ônus?
Há tempos que a Seccional Paulista da Ordem dos Advogados do Brasil tenta obter, sem sucesso1, provimento jurisdicional que autorize o advogado e o estagiário regularmente inscrito em seus quadros a retirar, em carga rápida, os autos do cartório para a extração de cópias, ainda que durante a fluência do prazo comum para a manifestação das partes litigantes.
terça-feira, 1 de agosto de 2006
Atualizado em 31 de julho de 2006 11:56
Os meandros da carga rápida: bônus ou ônus?
Fábio Luiz Delgado*
Há tempos que a Seccional Paulista da Ordem dos Advogados do Brasil tenta obter, sem sucesso1, provimento jurisdicional que autorize o advogado e o estagiário regularmente inscrito em seus quadros a retirar, em carga rápida, os autos do cartório para a extração de cópias, ainda que durante a fluência do prazo comum para a manifestação das partes litigantes.
Sensível aos apelos do Presidente da OAB - Seccional São Paulo, o Juiz Auxiliar da Corregedoria do Tribunal de Justiça paulista, Nuncio Theophilo Neto, ressalvando inexistir a denominada carga rápida, admitiu ser possível o estabelecimento de rotina cartorária que permita, mediante controle eficiente de movimentação física, "vista dos autos em cartório, mas fora do balcão, por período determinado".
Diante disso, no mês de março p.p. foi publicado o Provimento CG nº 04/06, que introduziu os artigos 94-A, 94-A.1, 94-A.2 e 94-A.3 na Seção II do Capítulo II do Tomo I das Normas de Serviço da Corregedoria Geral do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, assim redigidos:
"94- A. Quando houver fluência de prazo comum às partes, será concedida, pelo Diretor de Serviço do Ofício de Justiça ou pelo Escrevente responsável pelo atendimento, vista de autos em cartório, fora do balcão, pelo período de 45 (quarenta e cinco) minutos, mediante controle de movimentação física, conforme formulário a ser preenchido e assinado por advogado ou estagiário de direito devidamente constituído no processo.
94- A.1. Os pedidos a que alude este item serão recepcionados e atendidos desde que formulados até às 18h.
94- A.2. O formulário de controle de movimentação física será inutilizado contra a devolução dos autos, nos quais se certificará o período da vista, ficando vedada a retenção de documento do advogado ou estagiário de direito na Serventia, para a finalidade de mencionado controle, nos termos da Lei nº 5.553/68 (clique aqui).
94- A.3. Na hipótese dos autos não serem restituídos no período fixado, competirá ao Diretor de Serviço do Ofício de Justiça representar imediatamente ao MM. Juiz de Direito Corregedor Permanente, inclusive para fins de providências competentes junto à Ordem dos Advogados do Brasil (EOAB, arts. 34, XXII, e 37, I)."
Se, por um lado, o esforço da OAB/SP é digno de aplausos, por outro lado, não soluciona, de forma definitiva, o problema enfrentado pela maioria dos advogados que, para obter cópia dos autos, necessita primeiro, despachar com o juiz.
De fato, o Provimento CG nº 04/06, aparentemente um bônus, poderá se tornar verdadeiro ônus profissional, pois:
I) O período de 45 (quarenta e cinco) minutos é demasiadamente exíguo, já que não raro o advogado e/ou estagiário de Direito enfrenta fila na própria sala da OAB para a extração de cópias dos autos;
II) Ainda que o advogado seja atendido de pronto (sem ter que enfrentar fila), há casos em que, devido ao volume dos autos, fatalmente o tempo para a obtenção de cópias (por vezes integral, v.g., para instrução do agravo de instrumento) excederá o limite previsto;
III) O Diretor de Serviço do Ofício de Justiça poderá se valer do novel art. 94- A.3 para punir o advogado com base nas disposições contidas no art. 34, inciso XXII, e no art. 37, inciso I, ambos do Estatuto da Advocacia e da Ordem dos Advogados do Brasil [Lei nº 8.906, de 4 de julho de 1994 - clique aqui], que, combinados, prevêem a aplicação da pena de suspensão, que acarreta ao infrator a interdição do exercício profissional, em todo o território nacional, pelo prazo de 30 (trinta) dias a 2 (dois) meses.
Para evitar a utilização das citadas regras de forma indevida e truculenta, deve a OAB/SP agir com rapidez, mediante o estabelecimento de "rotina administrativa" que possibilite ao advogado e/ou estagiário de Direito comprovar o horário de sua chegada na sala da OAB, aquele em que foi atendido pelo respectivo funcionário e a hora em que se encerrou o atendimento, com a entrega dos originais para fins de arquivo pessoal.
Essa medida é imprescindível porque a boa-fé, neste caso, é elemento que recorta o campo normativo da lei penal, para excluir a culpabilidade, na medida em que o infrator não quis produzir resultado com dolo e, ainda, tomou as devidas cautelas, que não se coadunam com a negligência, a imprudência e a imperícia.
Sobre o tema, Francesco Carnelutti2 diz que "age de boa-fé aquele que demonstra vontade conforme o direito". E, conforme afirmam Geraldo Ataliba e Aires Fernandino Barreto3, a boa-fé "é um dos mais relevantes princípios gerais de direito". Não é de hoje que a doutrina traz a boa-fé como elemento que exclui a culpabilidade.
A jurisprudência, por sua vez, vem aplicando o princípio da boa-fé para eximir o agente de qualquer responsabilidade. Nesse sentido, os seguintes julgados do Superior Tribunal de Justiça: RMS nº 407-MA (RSTJ 24/210) e AgRegAI nº 2001/0159922-8 (DJU 29.4.02). E, considerando ostensivamente a boa-fé como excludente da culpabilidade, o REsp nº 2001/0037971-0 (Primeira Turma).
A jurisprudência administrativa também já se pronunciou quanto à aplicação do princípio da boa-fé como fator de exclusão de penalidades. Nesse sentido, o Recurso nº 120.346, da 1ª Câmara do Terceiro Conselho de Contribuintes e o Recurso nº 15.318, da 6ª Câmara do Primeiro Conselho de Contribuintes. Há, ainda, o Recurso nº 88.246, da 2ª Câmara do Segundo Conselho de Contribuintes e o Recurso nº 116.952, da 3ª Câmara do Terceiro Conselho de Contribuintes.
Os julgados transcritos corroboram o entendimento de que a boa-fé é cláusula geral de exceção de dolo (exceptio doli generalis), que tem importante papel na interpretação e aplicação do direito, especialmente quando se trata de norma penal.
Ora, aquele que procura agir conforme o direito, não atua de forma culposa para legitimar a aplicação da norma penal que, neste caso, é aquela inserta no art. 94- A.3 do Provimento CG nº 04/2006.
Com isso, se o advogado tomou todas as cautelas que dele se esperava, demonstrando sua vontade de agir conforme o previsto no Provimento CG nº 04/06 (não permanecer com os autos por período superior a 45 minutos), tem direito a que lhe seja aplicada a cláusula da boa-fé, como forma de exclusão da culpabilidade.
Inexistindo culpa, impossível é a aplicação da penalidade retratada no art. 37, inciso I, da Lei nº 8.906, de 4 de julho de 1994 (Estatuto da Advocacia e da Ordem dos Advogados do Brasil), que, como visto, prevê a pena de suspensão, que acarreta ao infrator a interdição do exercício profissional, em todo o território nacional, pelo prazo de 30 (trinta) dias a 2 (dois) meses.
Sem embargo, enquanto a OAB/SP não adotar a idéia aqui proposta, deve o advogado e o estagiário de Direito, por medida de prudência, lançar à tinta, quando da assinatura do formulário anexo ao Provimento em comento, o motivo que ensejou a vista dos autos fora do cartório [no caso de o mesmo ser juntado nos autos]; se ocorrer apenas a certificação nos autos pelo cartorário, deve o advogado ou estagiário de direito, da mesma forma, lançar a tinta, logo abaixo da certificação, o motivo que ensejou a inobservância das noviças regras previstas no Provimento COGE nº 04/2006. Assim, uma vez ultrapassado o limite de 45 (quarenta e cinco) minutos, a ressalva, se feita de boa-fé [por isso a importância de documentação idônea que comprove o motivo do excesso], poderá recortar o campo da culpabilidade, restando impossível a aplicação da sanção resultante da combinação do art. 34, inciso XXII, com o art. 37, inciso I, ambos do EAOAB.
Adotadas as medidas propostas, tanto o advogado quanto o estagiário de Direito ficarão isentos da responsabilização, em face da aplicação da cláusula geral da boa-fé que, como ressaltamos, recorta o campo da culpabilidade.
1Vide os seguintes julgados: "MS nº 84.670-0/1, Rel. Des. Viseu Júnior, TJ/SP; MS nº 85.042-0/3-00, Rel. Des. José Cardinale, TJSP; MS nº 248849-5/1-00, Rel. Des. Torres de Carvalho, TJ/SP; ROMS nº 15.765-SP, Rel. Min. Franciulli Netto, STJ; ROMS nº 16.849-SP, Rel. Min. Peçanha Martins, STJ; MC 6800-SP, Rel. Min. Peçanha Martins, STJ".
2In Teoria Geral do Direito, 1. ed., trad. Antônio Carlos Ferreira, São Paulo, Lejus, 1999, p. 432
3"ICMS: Utilização de Crédito Transferido: Boa-fé do Favorecido", Revista de Direito Tributário nº 43, ano 12, São Paulo, RT, 1988, p. 124.
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*Advogado do escritório Camargo Silva, Dias de Souza Advogados
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