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A singularidade do lockout político

Arthur Martinelli e Crislaine Menegat

Em sua dimensão de poder empresarial máximo, o Lockout entra em choque ainda com certos fundamentos da ordem econômica do país, primado da ordem social (art. 193, Constituição Federal).

segunda-feira, 11 de junho de 2018

Atualizado em 23 de setembro de 2019 18:10

Em 1992, João Ricardo W . Dornelles definiu crime como um comportamento anormal, que não se enquadra nas normas, seja jurídico ou morais. O crime pode ser visto como uma transgressão à lei, como uma manifestação de anormalidade do criminoso, ou como o produto de um funcionamento inadequado de algumas partes da sociedade. Pode ser visto ainda como um ato de resistência, ou como o resultado de uma correlação de forças em cada sociedade, que passa a definir o que é crime e selecionar a clientela do sistema penal de acordo com os interesses dos grupos detentores do poder e de seus interesses econômicos1.

Destaca-se esse crivo preliminar em torno da definição de crime, para adentrar na figura do "Lockout". Um instituto nunca antes tão comentado pela mídia e questionado pela população, com relação a sua prática e configuração, mas que já gerou prisão2, inúmeros inquéritos3, além de abalar, ainda que indiretamente, a estrutura política e econômica do país4. Mas afinal, o que é Lockout?

Nas palavras do atual Ministro do Supremo Tribunal Federal, Alexandre de Moraes, a greve dos empregadores é denominada de lock-out (locaute), e ocorre quando aqueles fecham as portas de seus estabelecimentos, impossibilitando a prestação de serviços pelos empregados, com a finalidade de pressionar os próprios trabalhadores ou setores do Poder Público, para que atendam suas reivindicações.5

A referida conduta é expressamente vedada pelo art. 17 da lei 7.783/896, a qual trata do exercício do direito de greve. Segundo previsto no referido dispositivo, o período de paralisação é considerado como interrupção do contrato de trabalho, de modo que são devidos os salários e o tempo de serviço computado.78

A tipicidade do Locaute envolve quatro elementos essenciais e combinados, quais sejam: paralisação empresarial; ato de vontade do empregador; tempo de paralisação e; objetivos visados.

Efetivamente, trata-se de uma paralisação das atividades empresarias, seja no âmbito de toda a empresa, no plano mais restrito de seus estabelecimentos ou, até mesmo, de uma simples divisão intraempresarial.

A paralisação envolvida há de resultar de decisão do próprio empresário, sob pena de escapar à tipicidade do Locaute, sendo este um grande desafio para as Autoridades.

Em análise à jurisprudência pátria, denota-se que se trata de prática raramente vista e de difícil comprobação. No endereço eletrônico do Supremo Tribunal Federal, em busca realizada em 30 de maio de 2018 com o termo "Lockout", só fora localizado uma decisão9, que, além de ser datada de 1988, foi declarada a inépcia da denúncia apresentada.

Já no Tribunal Superior do Trabalho, nos mesmos termos acima descritos (ementa), foram localizadas 28 (vinte e oito) entendimentos, sendo que destes, 9 (nove)10 expõem claramente a não configuração do delito, ao passo que os demais restringem-se a analisar os direitos pós paralisação na esfera trabalhista. Ou seja, complexa é a efetiva comprovação do delito.

Na maioria dos casos, a paralisação intentada tem o objetivo de produzir pressões sobre os trabalhadores. É que, sendo instrumento de pressão sobre os respectivos empregados, visando frustrar ou enfraquecer reivindicações coletivas, há de ter, em princípio, duração limitada no tempo.

No caso ora vivenciado, conhecido como "movimento dos caminhoneiros", houve a sustação temporária das atividades de estabelecimentos ou de empresas com fins de provocar pressão política. Havendo causas e objetivos antissociais, na visão doutrinária11, permite-se, por interpretação extensiva, enquadrar a conduta na figura do lockout. Todavia, importante analisar que a conduta de modo geral foi apreciada pelos empregados e por grande parte da sociedade brasileira, dificuldade a configuração do crime, posto que houve apoio por parte daqueles que teoricamente seriam prejudicados.

Neste ínterim, a prática recebe o mesmo tratamento conferido ao instituto original, regulado pela ordem constitucional e justrabalhista, o que faz com que o instituto tenda a ser genericamente proibido, mesmo em se tratando de ordens jurídicas democráticas. No entanto, os fatos ora vivenciados, destoam do objetivo cerne do texto legal.

Com foco na esfera trabalhista, Este mecanismo de autotutela empresarial é considerado uma maximização do poder, um instrumento desmensurado, desproporcional a uma razoável defesa dos interesses empresariais. Afinal, os empregadores já têm a seu favor, cotidianamente, inúmeras prerrogativas de caráter coletivo assegurados pela ordem jurídica (poder empregatício, poder resilitório contratual, etc.), o que os coloca, do ponto de vista de potência e pressão, em perspectiva de franca vantagem perante os empregados. Vantagem esta, não tão bem evidenciada, quando se tem o Governo Federal e a maior Estatal do País por trás de uma política de preços, desnivelando a figura de poderes e a forma de pleitos em torno de uma categoria.

Mesmo assim, Mauricio Godinho Delgado12 considera o Lockout como instrumento de autotutela de interesses empresariais, socialmente injusto e complementa:

"Não contradição na ordem jurídica ao acatar o instrumento de autotutela coletiva dos trabalhadores (a greve), negando validade a esse instrumento de autotutela coletiva dos empresários (o locaute). Conforme já exposto, há uma magnitude de instrumentos de pressão coletiva naturalmente já detidos pelos empregadores, muito além do locaute, em face da natureza coletiva dos seres empresariais. Em contraponto a isso, a greve é um dos poucos - e, sem dúvida, o principal - mecanismos de pressão e convencimento possuídos pelos obreiros, coletivamente considerados, em seu eventual enfrentamento à força empresarial, no contexto da negociação coletiva de trabalhista. Por tais razões, destituir os trabalhadores das potencialidades do instrumento paredista é tornar falacioso o princípio juscoletivo da equivalência entre os contratantes coletivos, ao passo que ofertar ao empregador o mecanismo do locaute será criar distanciamento de poder incompatível na ordem sociodemocrática contemporânea."

Ao acalentar a discussão de sua tipicidade diante de fatos jamais presenciados em nossa história, poderia se cogitar na peripécia da Magna Carta valorizar a livre-iniciativa (art.1º IV, in fine), colocando-a também como fundamento da ordem econômica (art. 170, caput), para justificar alguns atos. Além disso, conferir status de princípio à propriedade privada (art. 170, II), reconhecendo-a como direito subjetivo (art. 5º, XXII). Nesta linha, o Locaute seria simples exercício da livre iniciativa e das prerrogativas inerentes à propriedade privada.

Em sentido contrário, não se pode ignorar que o Lockout conspira contra o exercício dos direitos sociais, contra as noções de segurança, bem-estar, desenvolvimento, igualdade e justiça, eleitos como valores supremos da sociedade brasileira. Conspira contra a intenção normativa de se fazer em fraterna essa sociedade, fundada na harmonia social e comprometida com a solução pacífica das controvérsias. A ideia de segurança, a propósito, já enfatizada no preâmbulo, é retomada, logo a seguir, como direto inviolável, pela mesma Constituição (art. 5º, caput).

Ademais, referido crime, enquanto poder máximo do empregador conspira contra a dignidade da pessoa humana e o valor social do trabalho, ungidos pela Constituição como alguns dos fundamentos da República do Brasil (art. 1º, III e IV). Enquanto poder incontestável, conspira também contra os objetivos fundamentais da República, de construir uma sociedade livre, justa e solidária, garantir o desenvolvimento nacional, erradicar a pobreza e a marginalização, promover o bem de todos, sem discriminação (art. 3º I,II,III e IV, CF/88).

Em sua dimensão de poder empresarial máximo, o Lockout entra em choque ainda com certos fundamentos da ordem econômica do país, primado da ordem social (art. 193, Constituição Federal). Mesmo assim, diante da amplitude federalista que o movimento tomou e dos fatores trabalhistas e sociais que desencadearam tal paralisação, possíveis indícios de Locaute devem ser tratados de maneira impar, posto sua singularidade.

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1 DORNELLES, João Ricardo W.O que é Crime. 2º Ed. São Paulo: Editora Brasileira. 1992.

2 Disponível em < clique aqui >

3 Disponível em < clique aqui >

4 Disponível em < clique aqui >

5 MORAES, Alexandre. Direito Constitucional. 9º Ed. São Paulo: Atlas, 2001. Fls. 203.

6 Art. 17. Fica vedada a paralisação das atividades, por iniciativa do empregador, com o objetivo de frustrar negociação ou dificultar o atendimento de reivindicações dos respectivos empregados (lockout).
Parágrafo único. A prática referida no caput assegura aos trabalhadores o direito à percepção dos salários durante o período de paralisação.

7 GARCIA, Gustavo Filipe Barbosa Garcia. Curso de Direito do Trabalho. 2º Ed. São Paulo: Método, 2008. Fls. 1179

8 MARTINS, Sérgio Pinto. Direito do Trabalho. 24º Ed. São Paulo: Editora Atlas, 2008. Fls. 332.

9 RHC 66850, Relator(a): Min. FRANCISCO REZEK, Segunda Turma, julgado em 06/12/1988, DJ 03-03-1989 PP-02515 EMENT VOL-01532-02 PP-00375

10 RO - 1000871-12.2015.5.02.0000, Relatora Ministra: Kátia Magalhães Arruda, Data de Julgamento: 09/10/2017, Seção Especializada em Dissídios Coletivos, Data de Publicação: DEJT 18/10/2017);
RO - 316-67.2014.5.12.0000, Relatora Ministra: Kátia Magalhães Arruda, Data de Julgamento: 09/10/2017, Seção Especializada em Dissídios Coletivos, Data de Publicação: DEJT 18/10/2017);
RO - 10256-90.2013.5.12.0000, Relatora Ministra: Kátia Magalhães Arruda, Data de Julgamento: 13/04/2015, Seção Especializada em Dissídios Coletivos, Data de Publicação: DEJT 22/05/2015);
RO - 51548-68.2012.5.02.0000, Relatora Ministra: Kátia Magalhães Arruda, Data de Julgamento: 12/05/2014, Seção Especializada em Dissídios Coletivos, Data de Publicação: DEJT 16/05/2014);
RO - 495-69.2012.5.12.0000, Relatora Ministra: Maria de Assis Calsing, Data de Julgamento: 11/11/2013, Seção Especializada em Dissídios Coletivos, Data de Publicação: DEJT 18/11/2013);
RR - 202200-73.2009.5.02.0042, Relator Ministro: Márcio Eurico Vitral Amaro, Data de Julgamento: 06/11/2013, 8ª Turma, Data de Publicação: DEJT 08/11/2013);
RO - 2225-31.2011.5.02.0000, Relatora Ministra: Kátia Magalhães Arruda, Data de Julgamento: 13/08/2012, Seção Especializada em Dissídios Coletivos, Data de Publicação: DEJT 05/10/2012);
RO - 2000400-52.2010.5.02.0000, Relator Ministro: Walmir Oliveira da Costa, Data de Julgamento: 11/04/2011, Seção Especializada em Dissídios Coletivos, Data de Publicação: DEJT 17/06/2011);
RO - 2004600-39.2009.5.02.0000, Relatora Ministra: Dora Maria da Costa, Data de Julgamento: 18/10/2010, Seção Especializada em Dissídios Coletivos, Data de Publicação: DEJT 26/11/2010).

11 ELGADO, Mauricio Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 8º Ed. São Paulo: LT, 2009, Fls. 1291.

12 DELGADO, 2009. Fls. 1.293

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*Arthur Martinelli e Crislaine Menegat são advogados.

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