Apontamentos críticos ao peculiar sistema de padronização decisória instituído pelo novo CPC
O presente trabalho visa compreender melhor a gênese do sistema de padronização decisória implantado pelo novo CPC, apontando as principais críticas e falhas que já podem ser perquiridas com relação ao que parte da doutrina processualista tem chamado de "Sistema de Precedentes à Brasileira".
segunda-feira, 28 de maio de 2018
Atualizado em 25 de maio de 2018 10:01
1. Introdução
O novo CPC trouxe como uma de suas novidades a estruturação de um sistema de padronização decisória, fulcrado na exigência de que os tribunais estabilizem sua jurisprudência e a mantenham íntegra e coerente, nos termos determinados pelo art. 926 do NCPC.
Para tanto, o novo Código lançou mão de instrumentos de enfrentamento da litigiosidade repetitiva, conferindo aos julgados proferidos em tais expedientes - com o fito de obter a estabilização da jurisprudência - uma espécie de efeito vinculante instantâneo a ser respeitado pelos Órgãos Jurisdicionais inferiores, conforme disciplinado pelo art. 927 do NCPC.
Tais disposições, obviamente, causaram alvoroço na doutrina.
Parte dos processualistas passou a considerar que o novo CPC teria instituído um verdadeiro sistema de precedentes no Brasil, enquanto outra parte defende a inconsistência das novas disposições, que além de não instituírem um sistema de precedentes, implicariam em aumento perigoso do poder dos Tribunais, bem como em risco à qualidade da prestação jurisdicional e à própria evolução do Direito.
Alguns, inclusive, defendem a própria inconstitucionalidade do art. 927 do novo CPC, sob o argumento de que, ao atribuir poderes aos Tribunais para firmarem enunciados e precedentes vinculantes, o novo CPC estaria redistribuindo competências entre os poderes da República, e concedendo ao Judiciário o poder de legislar pela transversa via dos precedentes de observância obrigatória.
Nesse contexto de incerteza, o presente trabalho visa compreender melhor a gênese do sistema de padronização decisória implantado pelo novo CPC, apontando as principais críticas e falhas que já podem ser perquiridas com relação ao que parte da doutrina processualista tem chamado de "Sistema de Precedentes à Brasileira".
E, evidenciados os pontos cruciais nos quais a novel legislação implica em risco à sociedade e ao Direito pátrio, almeja-se concluir o trabalho apontando alternativas para que o fim colimado pelo legislador, que é o de obter a estabilização da jurisprudência dos tribunais de forma íntegra, coerente e democrática, seja atingido por meio de prestação jurisdicional da melhor qualidade possível.
2. A necessidade dos mecanismos de padronização decisória para a efetivação da justiça pelo estado e a tentativa do NCPC em dar solução ao problema no âmbito do processo civil pátrio
"Nada nega tanto a igualdade quanto dar a quem já teve um direito violado ou sofre iminente ameaça de tê-lo, uma decisão em desacordo com o padrão de racionalidade já definido pelo Poder Judiciário em querelas verdadeiramente idênticas" (GAIO JR., 2015).
Com essa precisa reflexão, GAIO JR. define um dos mais inquietantes problemas do Direito Processual Civil atual, consistente na falta de integridade e de coerência das decisões judiciais.
Se essa temática já causa inquietação em países com baixa litigiosidade e menor fragmentação do Poder Judiciário, obviamente representa um problema ainda maior no Brasil, onde o número de processos judiciais ativos atinge números inimagináveis, distribuídos por milhares de comarcas e dezenas de Tribunais espalhados pelos mais longínquos rincões do país.
BARROSO e MELLO (2016), ao tratarem do tema, afirmam que "no Brasil pós-1988, o maior prestígio e visibilidade do Poder Judiciário foi potencializado por uma constituição abrangente e detalhada, que em medida significativa estimulou a judicialização da vida", e que "uma das consequências do fenômeno aqui descrito foi a multiplicação de órgãos judiciais, espalhados capilarmente por todo o país".
Nesse contexto, o Poder Judiciário brasileiro tornou-se uma verdadeira "Torre de Babel", na qual as soluções dadas por órgãos judiciais distintos a casos idênticos, na grande maioria dos casos, não guardam qualquer pertinência entre si. E, isso, sobretudo porque "os juízes que estão na base da pirâmide hierárquica do Judiciário não se importam em ignorar as decisões proferidas por órgãos mais elevados se houver uma norma legal que lhes possibilite entender de forma diversa" (THEODORO JR. et al, 2015, p. 336).
Para tentar superar esse problema, o novo CPC (Lei 13.105 de 16 de Março de 2015) "contemplou importantes mecanismos referentes ao sistema de precedentes judiciais e, consequentemente, de uniformização e estabilização da jurisprudência pátria" (DONIZETTI, 2016, p. 1311).
Tais mecanismos, concentrados primordialmente nos artigos 926 e 927 da nova legislação, vieram para hierarquizar as decisões judiciais e, para parte da doutrina, verdadeiramente tornar vinculantes para todos os Juízes e Tribunais os julgados proferidos nas hipóteses enumeradas nos incisos do art. 927 (AMARAL, 2015, 948).
Eis o que dizem os citados dispositivos:
Art. 926. Os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente.
§ 1º Na forma estabelecida e segundo os pressupostos fixados no regimento interno, os tribunais editarão enunciados de súmula correspondentes a sua jurisprudência dominante.
§ 2º Ao editar enunciados de súmula, os tribunais devem ater-se às circunstâncias fáticas dos precedentes que motivaram sua criação. (BRASIL, 2015)
Art. 927. Os juízes e os tribunais observarão:
I - as decisões do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de constitucionalidade;
II - os enunciados de súmula vinculante;
III - os acórdãos em incidente de assunção de competência ou de resolução de demandas repetitivas e em julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos;
IV - os enunciados das súmulas do Supremo Tribunal Federal em matéria constitucional e do Superior Tribunal de Justiça em matéria infraconstitucional;
V - a orientação do plenário ou do órgão especial aos quais estiverem vinculados.
§ 1º Os juízes e os tribunais observarão o disposto no art. 10 e no art. 489, § 1o, quando decidirem com fundamento neste artigo.
§ 2º A alteração de tese jurídica adotada em enunciado de súmula ou em julgamento de casos repetitivos poderá ser precedida de audiências públicas e da participação de pessoas, órgãos ou entidades que possam contribuir para a rediscussão da tese.
§ 3º Na hipótese de alteração de jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal e dos tribunais superiores ou daquela oriunda de julgamento de casos repetitivos, pode haver modulação dos efeitos da alteração no interesse social e no da segurança jurídica.
§ 4º A modificação de enunciado de súmula, de jurisprudência pacificada ou de tese adotada em julgamento de casos repetitivos observará a necessidade de fundamentação adequada e específica, considerando os princípios da segurança jurídica, da proteção da confiança e da isonomia.
§ 5º Os tribunais darão publicidade a seus precedentes, organizando-os por questão jurídica decidida e divulgando-os, preferencialmente, na rede mundial de computadores. (BRASIL, 2015)
Perceba-se que a nova legislação processual instituiu um dever aos tribunais no que diz respeito à uniformização de sua jurisprudência, bem como deu a entender, ao utilizar a expressão "observarão", que também é impositiva - e, portanto, vinculante - a aplicação dos julgados exarados pelos Tribunais nas hipóteses colimadas pelos incisos do art. 927 do novo CPC.
Por isso é que, para alguns doutrinadores, dentre os quais NOGUEIRA (2015), o novo CPC veio para instituir oficialmente um sistema de precedentes no Direito Brasileiro, ao elaborar regras destinadas a fixar o modo de aplicação e as consequências jurídicas impostas aos partícipes do processo no que tange ao atendimento da orientação advinda dos precedentes judiciais.
Tal sistema, inclusive, atenderia à expectativa de todo e qualquer jurisdicionado, "de ter a decisão da sua causa em sintonia com aquilo que é o entendimento majoritário do juízo ao qual se recorre e, por decorrência, ver assegurada a justiça pelo tratamento semelhante de demandas semelhantes" (NOGUEIRA, 2015).
Ora, como ensina AMARAL (2015, p. 946), a unidade do Direito decorrente da uniformização de jurisprudência visa conferir ao sistema a segurança jurídica, por meio da maior previsibilidade das decisões, da estabilidade do direito, da confiança legítima no Judiciário, da isonomia entre os jurisdicionados, da coerência da ordem jurídica, da imparcialidade, dentre outros valores.
Em um primeiro olhar, pode parecer adequado, portanto, o trato dado pelo novo CPC à questão da integridade e coerência da jurisprudência, ao instituir um suposto sistema de precedentes que suprimiria da prática forense os julgamentos desconexos com a orientação consolidada pelos Tribunais Superiores a respeito das questões jurídicas debatidas, eis que estas passariam a ser dotadas de uma espécie de efeito vinculante.
Não é isto, porém, o que se obtém de uma análise mais densa e crítica desse novo sistema.
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*Fernando Gualberto Scalioni é advogado no escritório Valladão Sociedade de Advogados.
*Luiz Fernando Valladão Nogueira fundador do escritório Valladão Sociedade de Advogados.