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A policial e os limites da legítima defesa, Eudes Quintino

A policial e os limites da legítima defesa

É frustrante ver a escalada estarrecedora de crimes de conteúdo explícito de violência continuar a crescer sem limites e a sociedade acuada, com o torniquete de sua liberdade apertado ao extremo.

domingo, 20 de maio de 2018

Atualizado em 17 de maio de 2018 13:28

Chamou atenção a conduta da policial militar que acompanhava a filha de sete anos à escola, local onde se encontravam outras mães e filhos, justamente para comemorar o Dia das Mães, quando reagiu a um assalto praticado à porta do estabelecimento de ensino. Segundo as imagens do vídeo, o assaltante, em passos rápidos e em direção ao grupo, empunhando uma arma de fogo voltada para as pessoas, bradou em alta voz que se tratava de um assalto. A policial, que se encontrava a pequena distância dele, com muita agilidade, retirou sua arma e desfechou três tiros certeiros, que atingiram o roubador, imobilizando-o para, em seguida, encaminhá-lo ao atendimento médico.

O fato ganhou muita repercussão e gerou comentários de todas as ordens. A maioria no sentido de que a policial teve uma presença de espírito fora do usual porque conseguiu, em frações de segundos, avaliar o quadro e tomar a atitude defensiva necessária, com precisão cirúrgica. Uma pequena minoria entende que a reação mais comum e ponderada seria a da entrega dos bens exigidos, pois eventual resistência poderia provocar até a morte de pessoas inocentes e, como é sabido, em muitos casos, o assaltante se dá por satisfeito em tirar a vida, sem subtrair qualquer bem. Só pelo fato de ter sua ordem contrariada.

Percebe-se, claramente, que a violência e o crime ocorrem em qualquer lugar. Não tangenciam somente a vida do cidadão e sim fazem parte do seu cotidiano. É frustrante ver a escalada estarrecedora de crimes de conteúdo explícito de violência continuar a crescer sem limites e a sociedade acuada, com o torniquete de sua liberdade apertado ao extremo. E o círculo do inconformismo vai por aí afora assistindo a um verdadeiro concubinato entre a sociedade civilizada e a criminalidade.

É claro que o fato será investigado e em seguida encaminhado à Justiça para colher a manifestação do Ministério Público e posteriormente a decisão judicial, a respeito da provável legítima defesa. Mas, algumas ilações podem ser extraídas do material apresentado para perscrutar sua ocorrência.

A legítima defesa, no Código Penal tratada como causa de exclusão de ilicitude, quer dizer, embora a conduta revele a prática de um crime, na realidade trata-se de uma ação lícita e plenamente justificada, pois vem acompanhada de comportamento adequado e de requisitos indispensáveis, conforme se observa do artigo 25: "Entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem". Tão pouco dito para tamanha justificativa. E é até proposital. O legislador inseriu tópicos para que fossem interpretados de acordo com cada caso, possibilitando, desta forma, uma interpretação mais ampla e condizente com a realidade social. Não se trata de uma questão matemática e sim interpretativa.

No caso em tela ficou demonstrado a contento que a agressão foi atual, injusta e atingia não a uma só pessoa e sim a todo um grupo que se fazia presente no local. Vários direitos legalmente protegidos foram violados com uma só conduta. Assim, a policial, seguindo rigorosamente a exigência legal, não estava defendendo direito exclusivo seu ou de sua filha e sim de todos, agindo, portanto, com uma legitimidade difusa. E usou moderadamente dos meios defensivos, pois há relato de que o assaltante havia efetuado dois disparos com a arma de fogo, circunstância que possibilitou a ela repelir a agressão quando o atingiu com três projéteis de sua arma.

É até diminuto o tempo para que a ação seja calibrada dentro da esfera da defesa legítima. A policial temperou sua ação com equilíbrio e bom senso, assumindo a polarização correta, escudada pela exigência legal. Há estreita correlação entre a ação e a reação. Nessa, o foco é único, é o agressor e nele deve ser concentrado todo o esforço de contenção e defesa, uma vez que perdeu a proteção que o Direito lhe assegurava, enquanto que na ação, o agente, sem qualquer compromisso sobre seus atos, pode dirigir seu ataque para qualquer outra pessoa.

Também milita em favor da policial sua condição de agente de segurança, apesar de que, se fosse qualquer outro do povo em seu lugar e tivesse tido a mesma conduta, a avaliação penal seria a mesma, pois estaria defendendo não só a própria vida, como as das demais pessoas. Nasce para ela, de forma incontestável, o direito de se defender e a própria lei traça a forma pela qual será exercido o direito da repulsa defensiva. Obedecidos os requisitos e parâmetros exigidos, nenhuma dúvida paira a respeito da licitude do ato, em razão da norma penal permissiva justificante.

Enquanto que penalmente há uma perfeita adequação da conduta da policial em razão da presença da excludente, fazendo com que o Direito se realize em toda sua plenitude secundum ius, não há nenhum motivo para comemoração social ou até mesmo um alardeamento exagerado do fato, pois a sociedade ainda permanece refém de uma violência desmedida e sem controle.

É ainda para lamentar que as crianças presenciaram toda trágica cena envolvendo os adultos e as lembranças que se instalaram com o medo não desaparecerão tão cedo.

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*Eudes Quintino de Oliveira Júnior é promotor de justiça aposentado/SP, mestre em direito público, pós-doutorado em ciências da saúde, reitor da Unorp, advogado.

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