Fintechs regulamentadas: primeiras impressões
Segundo último levantamento realizado pelo Radar FintechLAb, o número de Fintechs que atuam no Brasil aumentou 36% em 2017. E o segmento que mais contribuiu para esse crescimento foi justamente o das plataformas de concessão e intermediação de crédito.
segunda-feira, 14 de maio de 2018
Atualizado às 11:40
1 - Introdução
Em setembro de 2016, ao divulgar o Relatório Semestral de Estabilidade Financeira1, o Banco Central do Brasil ("BACEN") dedicou parte de um capítulo às novas tecnologias financeiras, reconhecendo que "historicamente, inovações têm capacidade de alterar o estado de equilíbrio dos mercados".
Foi a primeira ocasião oficial em que o agente regulador do nosso sistema bancário considerou o papel exercido pelas Fintechs2 no mercado, definindo-as como "empresas intensivas em tecnologia que prestam serviços financeiros" e que "aplicam as mais recentes tecnologias na adaptação de produtos e de serviços oferecidos no mercado financeiro, no lançamento de novas soluções e na provisão de serviços de mitigação e de gerenciamento de riscos de compliance para as instituições reguladas".
Naquele relatório ficou clara a preocupação com a utilização das novas ferramentas tecnológicas e seus impactos no mercado financeiro, em especial as "inovações na oferta de crédito e em instrumentos de investimento por meio do uso de tecnologias modernas, como peer-to-peer lending e robo-advisor".
O BACEN se mostrou vigilante "em relação à introdução de inovações na medida em que elas possam ter consequências sobre a liquidez do sistema financeiro", declarando que "novas formas de prestação de serviços implicam a necessidade de métodos atualizados de acompanhamento de seu emprego e de um marco regulatório tempestivamente aprimorado, de forma a garantir o regular funcionamento do Sistema Financeiro Nacional (SFN) e das infraestruturas do mercado financeiro".
As observações contidas no relatório de 2016 já indicavam a intenção de regulação e supervisão das atividades desempenhadas pelas Fintechs. Meses antes (junho de 2016), o próprio Banco Central havia editado a portaria BCB 89.399, que estabeleceu o grupo de trabalho para realização de estudos sobre as inovações tecnológicas relacionadas às atividades desempenhadas no âmbito do Sistema Financeiro Nacional e do Sistema de Pagamentos Brasileiro.
A partir de então, foram intensas as atividades realizadas pelo BACEN para entender o funcionamento das novas tecnologias e o impacto da utilização dessas plataformas no nosso mercado financeiro. Nesse ponto, destaque para a consulta pública realizada entre agosto e novembro de 2017, por meio da qual foram colhidas opiniões sobre a regulamentação dessas atividades3.
Em 26/4/18, foi enfim editada a resolução 4.656/184, que regula as atividades das Fintechs de crédito, disciplinando basicamente os requisitos e procedimentos para autorização de funcionamento, formas de organização societária e transferência de controle.
Embora as atividades passem agora a ser reguladas, são evidentes os benefícios às Fintechs que (alçadas à condição de instituições financeiras) ganham maior autonomia, aumentando a concorrência. A expectativa é de que o fomento dessa atividade tenha impacto direto na redução do custo do crédito no Brasil.
As peculiaridades dos institutos agora inaugurados e as inevitáveis discussões pontuais a respeito do marco regulatório serão certamente objeto de futura abordagem específica. Contudo, as inovações implementadas por meio da resolução 4.656/18 merecem ao menos algumas breves considerações, objetivo deste estudo.
2 - Breves apontamentos sobre a regulação das Fintech de crédito: sociedade de crédito direto, sociedade de empréstimo entre pessoas e regras comuns
Exemplo claro da necessidade de regulamentação do setor está na Liquidação recentíssima do Banco Neon5, que deixou 600.000 (seiscentos mil) clientes digitais da Neon Pagamentos com as contas bloqueadas6. Há notícias de acordo com o Banco Votorantim, mas, ao menos até o momento da redação deste artigo, transferências, pagamentos, depósitos via boletos, recarga de celular e compras com cartão de crédito, ou compras virtuais estão, todas elas, indisponíveis. Para se ter uma ideia de comparação, há bancos com quantidade similar de cientes, por exemplo, o conglomerado BRB (Banco de Brasília S.A e BRB - Crédito, Financiamento e Investimento S.A) tem 840.863 clientes, e o Realize Créditos, Financiamento e Investimento S.A tem 757.535 clientes7.
A partir de agora, as Fintechs de crédito (devidamente autorizadas a funcionar) possuem natureza jurídica de instituição financeira, devendo, portanto, obedecer ao regramento específico do ambiente bancário regulado.
E para tanto, a exemplo do que já é exigido para todas as demais instituições financeiras as Fintechs de crédito "devem ser constituídas sob a forma de sociedade anônima"8, com todas as exigências da lei 6.404/76 e suas modificações posteriores.
Observada a obrigatoriedade de constituição como sociedade anônima, as plataformas poderão adotar, de acordo com sua finalidade e considerando a origem dos recursos disponibilizados no mercado, uma das seguintes formas:
a) Sociedade de Crédito Direito - SCD9 "que tem por objeto a realização de operações de empréstimo, de financiamento e de aquisição de direitos creditórios exclusivamente por meio de plataforma eletrônica, com utilização de recursos financeiros que tenham como única origem capital próprio"; ou
b) Sociedade de Empréstimo entre Pessoas - SEP10, destinada à "realização de operações de empréstimo e financiamento entre pessoas exclusivamente por meio de plataforma eletrônica".
Nos termos da regulamentação, a Sociedade de Crédito Direto ("SCD") opera somente com capital próprio (e não pode participar do capital de instituições financeiras), podendo prestar (exclusivamente por plataforma eletrônica) os seguintes serviços estabelecidos em rol taxativo: i) operações de empréstimo e financiamento; ii) aquisição de direitos creditórios; iii) análise de crédito para terceiros; iv) cobrança de crédito para terceiros; v) emissão de moeda eletrônica; e vi) representação de seguros quando relacionados com as operações de empréstimo e financiamento por meio de plataforma eletrônica.
É expressamente vedada a captação de recursos públicos pela SCD, autorizada somente a emissão de ações11 e a cessão de direitos creditórios12.
Já a Sociedade de Empréstimo entre Pessoas ("SEP")13, "tem por objeto a realização de operações de empréstimo e de financiamento entre pessoas exclusivamente por meio da plataforma eletrônica". Esse é o modelo correspondente às operações "Peer to Peer Lending" ou "P2P".
Trata-se de evidente serviço de intermediação financeira, sem qualquer assunção do risco do crédito pela intermediária, cuja atividade se limita à disponibilização de recursos pelos credores14 diretamente aos devedores15, exclusivamente por meio de ferramenta eletrônica, com expressa autorização legal para a cobrança de tarifas condizentes com a viabilidade econômica das operações.
A intermediação do empréstimo exige, além de uma série de procedimentos, a formalização de instrumento representativo de crédito (com os devedores da operação), vinculado a instrumento celebrado pela intermediária com os investidores, observados os limites impostos pelo artigo 16 aos investidores não qualificados, nos termos da regulamentação da Comissão de Valores Mobiliários - CVM16.
Os limites de valores impostos aos investidores não qualificados advêm da necessidade de garantia da diversificação dos investimentos do credor, tendo em vista que essa modalidade de operação se caracteriza como "investimento de risco", sem qualquer garantia prestada pelo Fundo Garantidor de Crédito - FGC.
Dentre as limitações impostas à Sociedade de Empréstimo entre Pessoas, destacamos a vedação à realização de operações com capital próprio ou de antecipação de valores para credores ou devedores17.
O BACEN conferiu também à SEP, autonomia para "estabelecer outros limites para os credores e para os devedores, referentes às operações de empréstimos e de financiamento".
Além das peculiaridades específicas de cada modalidade, algumas exigências são comuns a ambas (SCD ou SEP), como, por exemplo, o dever de manutenção permanente de limite mínimo de R$ 1.000.000,00 (um milhão de reais) em relação ao capital social integralizado e ao patrimônio líquido.
Além disso, como todas as demais instituições financeiras, as Fintechs de crédito possuem agora a necessidade de obtenção de autorização de funcionamento pelo Banco Central. Contudo, o procedimento criado para as Fintechs é menos rigoroso (e mais ágil) do que aquele adotado para as outras instituições, que devem obedecer às intrincadas regras estabelecidas pela resolução 4.122/12.
O "procedimento simplificado" de obtenção de autorização de funcionamento das Fintechs será realizado em etapa única (em contraposição ao modelo bifásico contido na resolução 4.122/12) e que exige "apenas": i) prévia constituição dos atos societários; ii) integralização do capital social; e iii) nomeação dos membros dos órgãos estatuários.
Ponto positivo para a dispensa de apresentação do plano de negócios, bastando apenas a indicação do modelo de instituição a ser adotado (SCD ou SEP) e a descrição dos serviços prestados.
A autorização para transferência do controle acionário também foi objeto de regramento simplificado como forma de viabilizar as atividades e atrair investidores. No caso de alteração do controle acionário, a única exigência é a comunicação formal dessa modificação.
Por fim, vale destacar que, a exemplo do que já ocorre em países como Estados Unidos e os do Reino Unido18 são agora admitida a participação dos fundos de investimento em grupos de controle, vedada apenas a composição exclusiva do grupo por esses fundos.
3 - Notas para reflexão: Fintechs em mercados regulados e a paixão pelo consumidor
O foco do BACEN ao regulamentar a atividade das Fintechs é um claro sinal de relevância da operação destas empresas de tecnologia financeira para o sistema financeiro e, igualmente, para o mercado consumidor. A regulação protege o sistema financeiro e os consumidores.
E vem em boa hora mesmo. É cada vez mais comum que as pessoas acessem aplicativos de Fintechs em seus celulares, fazendo operações financeiras no transporte público ou enquanto almoçam. As Fintechs deixaram de ser ideias visionárias para poucos e hoje fazem parte do cotidiano de milhões de consumidores.
Será muito interessante ver como essa obsessão pelo consumidor se comportará agora, em ambiente regulado. Ainda mais existindo inegável e constante tensão entre o cliente e a instituição financeira.
Situação como a vivida pela Neon Pagamentos pode causar impactos fortíssimos nesse novo ambiente ainda em formação. A experiência do consumidor sofreu abrupta ruptura. E, doravante, não apenas os braços financeiros das Fintechs estarão ao alcance do BACEN, mas elas próprias serão fiscalizadas.
Tomara a regulamentação sirva de baliza para dar segurança nas atividades das Fintechs e confiança nos consumidores para aumentarem a procura pelos serviços por elas oferecidos. Oxalá a relação entre ambos seja apaixonada. Imaginar as Fintechs como um renascimento da relação de crédito no Brasil pode ser exagerado, mas nada é impossível para os jovens empreendedores.
4 - Conclusão:
Segundo último levantamento realizado pelo Radar FintechLAb, o número de Fintechs que atuam no Brasil aumentou 36% em 201719. E o segmento que mais contribuiu para esse crescimento foi justamente o das plataformas de concessão e intermediação de crédito.
Para o mesmo período, o portal "conexão fintech" apontou o aporte de mais de 450 milhões de reais em startups do gênero20, evidenciando o interesse dos investidores nessa atividade. Com esses valores, o Brasil já ocupa a 8ª posição no ranking da "Global Fintech Hubs Federation", que considera os países que mais receberam investimentos nesse setor nos últimos anos.
Atento a esse movimento e considerando o espaço agora ocupado pelas empresas de tecnologia no setor financeiro, nosso Banco Central, exercendo sua clássica função fiscalizadora21 parece ter agido bem em regular as atividades de maneira menos complexa, conferindo maior segurança jurídica às operações financeiras de crédito realizadas por meio de plataformas eletrônicas, possibilitando o aumento da concorrência no setor financeiro, a exemplo do que já ocorre em países como China, Estados Unidos e do Reino Unido22.
Se por um lado as imposições regulatórias aumentam o custo das operações (sabemos, por exemplo, dos encargos exigidos para a manutenção de uma sociedade anônima), por outro, conferem maior autonomia às Fintechs (que agora passam a ser caracterizadas como instituições financeiras, sem a necessidade de sua "caracterização" como correspondente bancário), o que deve contribuir para o aumento da concorrência e consequente diminuição do custo do crédito no Brasil, impulsionando nossa economia, que tem apresentado importantes sinais de retomada.
Por isso, embora existam pontos que certamente serão objeto de debates futuros (como, por exemplo, a autorização de cobrança de taxas apenas pelas SPEs, sem a respectiva autorização para as SCDs) agrada-nos a iniciativa regulatória adotada pelo BACEN, que deve impactar positivamente o mercado financeiro.
Tratando-se de atividade absolutamente nova, destacamos apenas a necessidade de manutenção de constante monitoramento, possibilitando eventuais correções e/ou inovações legislativas.
__________
1 Volume 15, ano 2. Versão integral disponível na página do Banco Central na internet ou pelo link: Clique aqui.
2 Termo inglês que une as palavras "financial" (financeiro) com "technology" (tecnologia).
3 Edital de consulta pública 55/17 disponível em: Clique aqui.
4 A íntegra da Resolução 4.656/18 está no site do BACEN, acessível no link a seguir: Clique aqui.
5 Ato do Presidente do BACEN 1.336 4/5/18, sob o fundamento de "graves violações às normas legais e regulamentares que disciplinam a atividade da instituição financeira, bem como o comprometimento da situação econômico-financeira". Disponível em: Clique aqui. Acesso em: 4maio2018.
6 Disponível em: Clique aqui
7 Fonte: Clique aqui.
8 Art. 25, da resolução 4.656/18: A SCD e a SEP devem ser constituídas sob a forma de sociedade anônima
9 Art. 3º, da resolução 4.656, de 26/4/18.
10 Art. 7º, da resolução 4.656, de 26/4/18.
11 Nos termos do artigo 5º, I, da resolução 4.656/18, de 26/4/18.
12 Conforme artigo 6º, da resolução 4.656/18, de 26/4/18.
13 Art. 1º da resolução 4.656/18, de 26/4/18.
14 Art. 8º da resolução 4.656, de 26/4/18: As operações de empréstimo e de financiamento entre pessoas por meio de plataforma eletrônica são operações de intermediação financeira em que recursos financeiros coletados dos credores são direcionados aos devedores, após negociação em plataforma eletrônica, nos termos desta resolução.
§ 1º Os credores de que trata o caput podem ser:
I - Pessoas naturais;
II - Instituições financeiras;
III - fundos de investimento em direitos creditórios cujas cotas sejam destinadas exclusivamente a investidores qualificados, conforme definição da regulamentação da Comissão de Valores Mobiliários;
IV - companhias securitizadoras que distribuam os ativos securitizados exclusivamente a investidores qualificados, conforme definição da regulamentação da Comissão de Valores Mobiliários; ou
V - pessoas jurídicas não financeiras, exceto companhias securitizadoras que não se enquadrem na hipótese do inciso IV.
15 Art. 8º, § 2º, da resolução 4.656 de 26/4/18: Os devedores de que trata o caput podem ser pessoas naturais ou jurídicas, residentes e domiciliadas no Brasil.
16 Art. 16. O credor da operação de empréstimo e de financiamento de que trata o art. 8º não pode contratar com um mesmo devedor, na mesma SEP, operações cujo valor nominal ultrapasse o limite máximo de R$15.000,00 (quinze mil reais).
§ 1º Além do limite de que trata o caput, a SEP pode estabelecer outros limites para os credores e para os devedores, referentes às operações de empréstimo e de financiamento.
§ 2º O disposto neste artigo não se aplica aos credores que sejam investidores qualificados, conforme definição da regulamentação da Comissão de Valores Mobiliários.
17 Art. 14. É vedado à SEP:
I - realizar operações de empréstimo e de financiamento com recursos próprios;
II - participar do capital de instituições financeiras;
III - coobrigar-se ou prestar qualquer tipo de garantia nas operações de empréstimo e de financiamento, exceto na hipótese do art. 10, parágrafo único;
IV - remunerar ou utilizar em seu benefício os recursos relativos às operações de empréstimo e de financiamento;
V - transferir recursos aos devedores antes de sua disponibilização pelos credores;
VI - transferir recursos aos credores antes do pagamento pelos devedores;
VII - manter recursos dos credores e dos devedores em conta de sua titularidade não vinculados às operações de empréstimo e de financiamento de que trata o art. 8º; e
VIII - vincular o adimplemento da operação de crédito a esforço de terceiros ou do devedor, na qualidade de empreendedor.
18 Conforme informações disponíveis em: Clique aqui
19 Radar FintechLab. Disponível em: Clique aqui
20 Números Conexão Fintech: Clique aqui.
21 Sobre as funções clássicas dos Bancos Centrais, leciona Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa (In Bancos Centrais no Direito Comparado) que "a fiscalização permanente das instituições financeiras tem sido reconhecida como uma das funções essenciais dos bancos centrais para afastar as crises geradas pelos bancos e é preciso que tal dever seja efetivamente exercido de forma adequada e que a sociedade esteja a par da existência desses serviços".
22 Segundo Ranking da Global Fintech Hubs Federation, China, Estados Unidos e Reino Unido ocupam as três primeiras colocações entre os 10 países que mais receberam investimentos em Fintechs nos últimos anos.
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*Paulo Abe é coordenador jurídico. Membro da comissão de direito bancário da OAB/SP. LLM em Direito Empresarial pelo IBMEC. Extensão em Direito Penal econômico pela PUC/SP. MBA em Gestão Estratégica da advocacia pela EPD. Extensão em contratos bancários pela FGV e EPD.
*André Kauffman é advogado e professor. Mestre e Especialista em Direito Processual Civil pela PUC/SP. Membro do IBDP. Relator do XXIII TED da OAB/SP.