Breves reflexões sobre a contagem de prazos no âmbito da lei de recuperações e falências, em razão da vigência do novo CPC
Antes da vigência do atual Código de Processo Civil, tanto os prazos previstos em normas de direito processual como em normas de direito material, em regra, eram contados em dias corridos. Por isso, apesar de sempre terem sido utilizados prazos de direito material e direito processual na prática das recuperações judiciais, não havia qualquer discussão sobre o tema.
sexta-feira, 11 de maio de 2018
Atualizado às 08:08
Recentemente, a 4ª Turma do STJ negou provimento ao REsp 1.699.528/MG, de relatoria do ministro Luis Felipe Salomão1. Segundo notícia veiculada no site do próprio STJ, em tal julgamento foi fixado o entendimento de que a "contagem de prazos na recuperação judicial deve ser feita em dias corridos"2.
Mais especificamente, referido REsp teve origem em julgado proferido pelo TJ/MG, em que se entendeu que, no âmbito da recuperação judicial, os prazos de suspensão das ações e execuções (stay period - LRF, art. 6º, § 4º) e de apresentação do plano de recuperação judicial (LRF, art. 53) deveriam ser contados em dias corridos.
Antes do julgamento pelo STJ, o TJ/MG havia argumentado que "não se verifica que a natureza dos [mencionados] prazos é de cunho processual, a ensejar a aplicação do CPC/15". Assim, reforçou-se o entendimento de que "a recuperação judicial é regulamentada por lei específica, que não prevê a contagem de prazo em dias úteis e, por se tratar de lei especial, a lei 11.101/05 se sobrepõe ao diploma processual civil"3.
Diante desse entendimento do TJ/MG, a empresa em recuperação judicial naqueles autos interpôs o aludido recurso especial, com fundamento no artigo 105, inciso III, alíneas a e c, da Constituição Federal, a fim de que o STJ reformasse o aludido acórdão "para determinar a contagem dos prazos previstos na lei 11.101/05 em dias úteis", tendo, por consequência, a aplicação de entendimento divergente do TJ/SP (em específico, da 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial)4.
Como dito, a 4ª Turma do STJ negou provimento ao recurso especial. O relator, ministro Luis Felipe Salomão, ainda não disponibilizou a íntegra do acórdão.
A grande expectativa pelos militantes da área é verificar se o teor do acórdão abrangerá apenas os prazos do stay period e da apresentação do plano de recuperação judicial (prazos reconhecidamente de direito material) ou alcançará também os demais prazos, tais como, por exemplo, divergência, impugnação e habilitação de crédito (prazos reconhecidamente de direito processual).
A princípio, a disponibilização de referido acórdão não geraria tanta expectativa e discussão, pois, em decorrência do objeto do REsp julgado pelo STJ, a decisão seria limitada aos prazos de stay period e da apresentação do plano de recuperação judicial.
Contudo, o anseio por tal disponibilização decorreu das seguintes afirmações, genéricas e ambíguas, contidas na notícia veiculada no site do STJ a respeito do resultado de tal julgamento:
"O microssistema recuperacional e falimentar foi pensado em espectro lógico e sistemático peculiar, com previsão de uma sucessão de atos, em que a celeridade e efetividade se impõem, com prazos próprios e específicos que, via de regra, devem ser breves, peremptórios, inadiáveis e, por conseguinte, contínuos, sob pena de vulnerar a racionalidade e unidade do sistema, engendrado para ser solucionado, em regra, em 180 dias depois do deferimento de seu processamento", explicou o ministro.
Para Salomão, o advento do CPC/15 não alterou a forma de computar os prazos processuais no âmbito da recuperação judicial, prevalecendo a incidência da forma de contagem definida pelo microssistema da lei 11.101/05. (...)
Segundo o relator, há um intenso debate doutrinário e jurisprudencial a respeito da extensão da aplicação do CPC/15 na contagem de prazos. Porém, afirmou, o CPC diz categoricamente que permanecem em vigor as disposições especiais dos procedimentos regulados em outras leis, e o critério de contagem em dias úteis é voltado exclusivamente aos prazos processuais.
Salomão lembrou que os institutos da recuperação judicial e da falência são extremamente complexos, e mesmo a lei de falência e recuperação prevendo a incidência supletiva do CPC, isso não tornou a contagem em dias úteis compatível com o microssistema da lei 11.101/05, uma vez que a subsidiariedade não pode conflitar com sua sistemática.
'A contagem em dias úteis poderá colapsar o sistema da recuperação quando se pensar na velocidade exigida para a prática de alguns atos e, por outro lado, na morosidade de outros, inclusive colocando em xeque a isonomia dos seus participantes, haja vista que incorreria numa dualidade de tratamento', explicou Salomão.
Para o ministro, a aplicação do CPC/15 no âmbito do microssistema recuperacional e falimentar 'deve ter cunho eminentemente excepcional, incidindo tão somente de forma subsidiária e supletiva, desde que se constate evidente compatibilidade à natureza e ao espírito do procedimento especial, dando-se sempre prevalência às regras e princípios específicos da lei de recuperação e com vistas a atender o desígnio de sua norma-princípio disposta no artigo 47', disse. (Grifo nosso).
Por mais que as afirmações constantes de referida notícia não sejam muito claras, não nos parece que há motivos para a comunidade jurídica esperar por surpresas nos termos do referido acórdão.
Em primeiro lugar, porque o STJ dificilmente fugirá do objeto do REsp que foi julgado. Apesar de acontecer em algumas oportunidades, não é tão comum julgamentos flagrantemente ultra petita por parte do STJ. Ou seja, referida decisão dificilmente abarcará, por exemplo, os prazos de divergência, impugnação e habilitação de crédito.
Em segundo lugar, porque, como é cediço, todo operador do Direito aprende desde a graduação que há diferenças entre os prazos previstos em normas de direito processual e em normas de direito material. E é nessa simples diferença que se resume o assunto de contagem de prazos na recuperação judicial. Vejamos.
Antes da vigência do atual Código de Processo Civil, tanto os prazos previstos em normas de direito processual como em normas de direito material, em regra, eram contados em dias corridos. Por isso, apesar de sempre terem sido utilizados prazos de direito material e direito processual na prática das recuperações judiciais, não havia qualquer discussão sobre o tema. Apesar de a lei 11.101, de 9 de fevereiro de 2005 ("Lei de Recuperações e Falências" ou "LFR"), ser silente com relação à contagem dos prazos a serem aplicados ao processo em si, invocava-se o artigo 189 da LFR em conjunto com o 178 do então vigente CPC/73.5
A discussão teórica, em específico na recuperação judicial, somente se iniciou com a vigência do Código de Processo Civil de 2015. Isso porque o seu artigo 219, caput, parágrafo único, alterou a redação do aludido artigo 178 do CPC/73, para que os prazos processuais passassem a ser contados em dias úteis e não mais em dias corridos.6
Adianta-se que, na visão dos autores deste artigo, não há muitas dúvidas de que os prazos do stay period e de apresentação do plano de recuperação (discutidos no referido REsp julgado pelo STJ) são de natureza material, devendo ser contados em dias corridos. Portanto, a alteração da legislação processual não os afeta. Com efeito, como já afirmou o Professor e Desembargador Fabio Tabosa, membro da 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial do TJ/SP, "não há como escapar à constatação de que se trate de prazo material. Por um lado, a suspensão do curso dos prazos prescricionais, prevista no art. 6º, caput, atinge um instituto, a prescrição, inserido inequivocamente no direito material; de outra parte, a suspensão de toda e qualquer ação e execução já em curso contra a devedora é efeito que não se restringe ao processo de que emanado, incidindo como limitador do exercício de direitos pelos credores fora daquele, daí não se podendo falar em eficácia meramente processual ou interna ao próprio processo de recuperação. Por decorrência, o prazo máximo de cento e oitenta dias em relação a que tolerada a produção desses efeitos materiais também é material, não tipicamente processual. Sendo assim, resguardada a ratio legis do art. 219 do CPC, inevitável concluir que sigam devendo ser contados tanto o prazo do stay como outros de natureza material previstos no procedimento da recuperação judicial em dias corridos".7
Importante considerar que há uma vertente que defende que os prazos do stay period e de apresentação de plano de recuperação judicial são de natureza mista (processual e material). Assim, segundo esse entendimento divergente, deveriam ser contados conforme previsto no art. 219, caput, do CPC/15. Como já observado acima, esse entendimento divergente, aplicado pela 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial do TJ/SP, foi utilizado pela empresa recuperanda que interpôs o referido REsp julgado pelo STJ. Contudo, ao que se extrai da notícia acima mencionada, a tese não vingou no STJ.
Como é sabido, com o advento de novas leis, a crise interpretativa dos tribunais se potencializa. Não é um exagero afirmar que, diante da falta de entendimento consolidado nos tribunais, é natural que as partes sempre divergirão sobre a aplicação da nova norma (seja de natureza processual ou material), a fim de que a nova jurisprudência seja fixada a seu favor. É natural que as partes provoquem, de forma proposital e conforme os próprios interesses, confusão entre prazos de direito material e processual com o advento do CPC/15.
Como se nota do acima exposto, há séria divergência de interpretação da nova lei processual na jurisprudência das próprias 1ª e 2ª Câmaras Reservadas de Direito Empresarial do TJ/SP. Porém, ao que parece, esse conflito de entendimento pode ter sido solucionada no acórdão a ser disponibilizado no STJ.
Relevante considerar que já era esperado que, com a vigência do CPC/15, de um lado, o devedor tentaria ampliar o prazo do stay period (no qual se inclui o de apresentação do plano de recuperação), no intuito de se proteger de execuções e excussões extrajudiciais e, paralelamente, negociar com os seus principais credores. Com isso, assim como ocorreu no caso concreto julgado pelo STJ (referido neste artigo), o devedor (a recuperanda) sempre tentará argumentar que o referido prazo do stay period deverá ser contado em dias úteis.
De outro lado, os credores tentarão agilizar o trâmite processual, a fim de que haja a renegociação legal da dívida o mais breve possível, mitigando o cenário da incerteza. Assim, tentarão afastar a aplicação do art. 219 do CPC/15 para o stay period, afirmando que ele deve ser contado em dias corridos.
Como dito, ao que parece foi esse segundo entendimento foi privilegiado pelo STJ no acórdão que ainda será disponibilizado, colocando-se uma pá-de-cal sobre o assunto, ainda que o REsp não tenha sido julgado pelo rito dos repetitivos.
Por fim, importante registrar que o que se tem questionado também é se na prática do microssistema recuperacional: (i) a contagem de prazos ficaria confusa por haver prazos em dias corridos (de natureza material) e prazos em dias úteis (de natureza processual); e (ii) a contagem de todos os prazos (de direito processual e material) em dias úteis traria benefícios práticos por prolongar os prazos de direito material que correm contra o devedor.
No que se refere à primeira hipótese, não há que se falar em confusão se houver uma jurisprudência estabilizada. Torce-se para que o STJ a tenha definido de forma adequada, a fim de que haja uma uniformização de entendimento nas próximas decisões proferidas por cortes inferiores.
No que diz respeito à segunda hipótese, é forçoso concluir que não haverá prejuízo na sistemática do processo recuperacional, pelos seguintes motivos:
I) é usual o devedor alterar os termos de seu plano de recuperação judicial no curso do processo, seja antes ou durante a Assembleia Geral de Credores, sempre votando-se suspensões e mais suspensões até que haja uma definição; e
II) nos casos em que o prazo de 180 (cento e oitenta) dias do stay period esteja perto de seu encerramento, possivelmente será aplicado o entendimento pacificado do STJ referente à extensão do mencionado prazo por igual período. Aliás, em estatística realizada pelos autores perante as varas especializadas na matéria da Comarca de São Paulo, isso ocorre em aproximadamente 90% (noventa por cento) das vezes.
Portanto, caso o acórdão a ser proferido mantenha o entendimento do TJ/MG (e da 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial do TJ/SP), além de uniformizar a aplicação do direito, em termos práticos não deverá ocorrer mudanças temporais no andamento do complexo processo de recuperação judicial.
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1 Processo de origem: 1.0000.16.072480-3/001, 6ª Câmara Cível do TJ/MG. A recuperanda (e recorrente no referido REsp) é Martplast Comércio de Embalagens Ltda. - Em Recuperação Judicial.
2 Clique aqui. Acesso em 2 de maio de 2018.
3 "AGRAVO DE INSTRUMENTO - AÇÃO DE RECUPERAÇÃO JUDICIAL - TUTELA DE URGÊNCIA - CONTAGEM DE PRAZOS EM DIAS ÚTEIS - IMPEDIMENTO DE RETIRADA DE BENS DA EMPRESA - INTELIGÊNCIA DO ART. 49, PARÁGRAFO 3º, DA LEI 11.101/05 - EXPEDIÇÃO DE OFÍCIO AO BANCO CENTRAL E LIBERAÇÃO DE 100% DAS TRAVAS BANCÁRIAS - MANUTENÇÃO PARCIAL DA DECISÃO. - A tutela de urgência poderá ser antecipada, desde que estejam presentes elementos que evidenciem a probabilidade do direito e o perigo de dano ou o risco ao resultado útil do processo, conforme disposição do artigo 300 do CPC/15. Se da leitura dos art. 6º, parágrafo 4º e no art. 53, ambos da LRF não se verifica que a natureza dos prazos é de cunho processual, a ensejar a aplicação do CPC/15, porquanto não dizem respeito a incidentes processuais, a recursos ou à prestação jurisdicional, forçoso reconhecer que a natureza do prazo é de cunho material, pois diz respeito à relação obrigacional e ao modo de exercitar os direitos e, portanto, deve ser observado o disposto na lei especial da recuperação judicial - lei 11.101/05. Ademais, a recuperação judicial é regulamentada por lei específica, que não prevê a contagem de prazo em dias úteis e, por se tratar de lei especial a lei 11.101/05, se sobrepõe ao diploma processual civil. Logo, não há que se falar em desacerto da decisão que indeferiu o pleito de contagem dos prazos na forma do CPC/15, ou seja, em dias úteis e, portanto deve ser mantida a contagem de prazos nos termos previstos na lei 11.101/05, de forma contínua, em dias corridos. O parágrafo 3º do art. 49 da lei 11.101/2005 estabelece que não é permitida, durante o prazo de suspensão a que se refere o § 4º do art. 6º do mesmo diploma normativo, a venda ou a retirada do estabelecimento do devedor dos bens de capital essenciais à sua atividade empresarial. Se os bloqueios de numerários são feitos através do sistema BACENJUD, incumbindo ao juiz de cada processo efetivar o bloqueio por meio do referido sistema conveniado, afigura-se desnecessário a expedição de ofício ao Banco Central. Ao limitar as retenções denominadas "travas bancárias" em 10% dos valores oriundos do faturamento da empresa, o julgador monocrático foi condizente com a necessidade de manutenção das atividades empresarias da recuperanda quanto ao cumprimento de suas obrigações, observando ao princípio da preservação da empresa e, ao mesmo tempo, do exercício dos direitos das instituições financeiras. Demonstrado o risco de dano à empresa, tão somente, com relação ao indeferimento do pedido de impedimento de retirada de bens da recuperanda, deve ser parcialmente reformada a decisão, para deferir tal pleito no sentido de determinar o impedimento da retirada de bens da empresa agravante, nos termos da parte final do §3º, art. 49, da lei 11.101/05".
4 TJ/SP, 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, AI 2254818-25.2016.8.26.0000, rel. Des. Fortes Barbosa, j. em 25.4.2017.
5 LRF: "Art. 189. Aplica-se a lei no 5.869, de 11 de janeiro de 1973 Código de Processo Civil, no que couber, aos procedimentos previstos nesta Lei."
CPC/73: "Art. 178. O prazo, estabelecido pela lei ou pelo juiz, é contínuo, não se interrompendo nos feriados."
6 CPC/15: "Art. 219. Na contagem de prazo em dias, estabelecido por lei ou pelo juiz, computar-se-ão somente os dias úteis. Parágrafo único. O disposto neste artigo aplica-se somente aos prazos processuais".
7 TJ/SP, 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, AI 2200368-35.2016.8.26.0000, rel. Des. Fábio Tabosa, j. 27/3/17.
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*Danthe Navarro é advogado e membro da Comissão de Direito Falimentar e Recuperacional do Instituto dos Advogados de São Paulo (IASP).
*Daniel Battaglia De Nuevo Campos é advogado e mestre em Direito Processual pela Universidade de São Paulo.