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Descumprimento das medidas protetivas previstas na Lei Maria da Penha, Eudes Quintino e Antonelli Secanho

Descumprimento das medidas protetivas previstas na Lei Maria da Penha

A lei, quando editada, não é perfeita. E nem pode ser, apesar de todo o esforço para ajustá-la de forma adequada para atingir seus objetivos.

domingo, 22 de abril de 2018

Atualizado em 20 de abril de 2018 10:19

A lei, quando editada, não é perfeita. E nem pode ser, apesar de todo o esforço para ajustá-la de forma adequada para atingir seus objetivos. Daí que, com sua utilização reiterada e a própria dinâmica social, novos fatos, não alcançados até então, afloram e exigem uma postura de coerência do legislador, que deverá, por meio de uma nova lei, complementar sua abrangência. Desta forma, não se olvidando também da hermenêutica como fonte de interpretação, a lei vai, paulatinamente, construindo seu caminho para cumprir sua finalidade de harmonização social.

Uma das normas que constantemente vem apresentando alterações é a Lei Maria da Penha, que incorpora várias outras condutas ao seu corpo, porém mantendo o núcleo duro que a norteou. Referida lei atendeu a determinação contida no § 8º do artigo 226 da Constituição Federal, criando toda uma estrutura para um combate eficiente à violência familiar, com sanções mais rigorosas e com o mínimo de benefícios processuais, além de estabelecer medidas de assistência e proteção às mulheres vítimas.

Assim, neste ciclo de atualização, foi publicada a lei 13.641, de 3 de abril de 2018, que alterou a Lei Maria da Penha, para incluir o artigo 24-A, tipificando o crime de descumprimento de medidas protetivas de urgência, nos seguintes termos:

"Descumprir decisão judicial que defere medidas protetivas de urgência previstas nesta Lei: Pena - detenção, de 3 (três) meses a 2 (dois) anos.

§ 1o A configuração do crime independe da competência civil ou criminal do juiz que deferiu as medidas.

§ 2o Na hipótese de prisão em flagrante, apenas a autoridade judicial poderá conceder fiança.

§ 3o O disposto neste artigo não exclui a aplicação de outras sanções cabíveis"1.

Esta relevante inovação legal, verdadeira novatio legis incriminadora, acaba por encerrar uma notável batalha nos tribunais de nosso país: apesar dos respeitáveis entendimentos contrários, o STJ havia firmado entendimento no sentido de que o descumprimento das medidas protetivas de urgência não caracterizava o crime de desobediência2.

Deste modo, a partir da data de publicação da lei 13.641/18, não há mais o que discutir a respeito: caso o agente venha a descumprir quaisquer das medidas protetivas de urgência, a ele impostas, fatalmente incorrerá nas penas do novo artigo 24-A da Lei Maria da Penha. Trata-se, pois, de um tipo penal autônomo, com destinatário certo.

Mas o que se entende por medidas protetivas de urgência?

Estas medidas nada mais são do que ordens judiciais3 que visam garantir a integridade física e moral da mulher4, vítima de violência de gênero, no âmbito doméstico e que, portanto, está em situação de risco.

Ademais, as medidas protetivas de urgência encontram-se previstas nos artigos 22 a 24, da Lei Maria da Penha (cujo rol, exemplificativo5, é bastante longo, o que impede a transcrição no presente texto), e destinam-se tanto ao agressor (p. ex., a proibição de manter qualquer tipo de contato com a mulher, filhos e testemunhas, inclusive por WhatsApp) quanto à vítima e seus filhos (p. ex., o encaminhamento para abrigos e/ou programas de proteção).

Posto isto, percebe-se que o artigo 24-A da novatio legis refere-se ao agente que descumprir as medidas protetivas a ele impostas, isto é, ao agressor6. E, em sendo assim, parece clara a intenção de tipificar uma conduta exclusivamente dolosa, pois o agente precisa, necessariamente, saber que existe uma decisão concessiva de medida protetiva e, livre e conscientemente, descumpri-la.

Além do mais, o crime sub studio consuma-se quando (i) o agente pratica o comportamento vedado pela decisão concessiva da medida (ultrapassa o limite de quinhentos metros de distância, por exemplo) ou (ii) o agente não faz o que deveria fazer (devendo deixar a residência da vítima após vinte e quatro horas e ali permanece, "desobedecendo" o disposto na medida protetiva).

Por conseguinte, o concurso de pessoas é possível e o partícipe incorreria nas penas do artigo 24-A quando, por exemplo, sabedor da decisão concessiva da medida protetiva de urgência, que proíbe qualquer contato entre o agressor e a ofendida, enviasse uma carta (ou mensagem eletrônica) do agente para a vítima.

Embora de ocorrência mais dificultada, a tentativa é, em tese, possível, podendo ocorrer quando, no exemplo acima, uma terceira pessoa interceptar a carta ou ler a mensagem e, após, acionar a polícia.

Em apertada síntese, é o que pode se extrair do caput da inovação legal em estudo.

Não obstante, há que se destacar, ainda, a impossibilidade de aplicação dos benefícios da lei 9.099/95 a este crime, em que pese tratar-se de infração de menor potencial ofensivo, pois, conforme cediço entendimento doutrinário e jurisprudencial, institutos despenalizadores são absolutamente incompatíveis com a Lei Maria da Penha (p. ex., súmula 536 do STJ).

O parágrafo primeiro, por seu turno, traz uma previsão interessante, embora já constatada na prática forense: a integração das áreas do direito, a fim de que conferir total eficácia à Lei Maria da Penha, uma vez que a medida protetiva pode ter sido concedida por um juiz cível ou criminal (a competência deste juízo é irrelevante para a caracterização do crime do artigo 24-A).

Já o segundo parágrafo traz uma importante exceção à regra da fiança fixada pelo delegado de polícia, que pode conceder a fiança para crimes cuja pena máxima cominada em abstrato seja de até quatro anos, salvo o do artigo 24-A da Lei Maria da Penha, hipótese em que apenas o magistrado poderá fazê-lo.

O último parágrafo impactará, claramente, na atuação do Ministério Público, pois, ainda que o agente pratique o crime tipificado no artigo 24-A, outras sanções podem ser aplicáveis ao agente, como, por exemplo, a decretação da prisão preventiva nos autos em que se apura a violência doméstica.

Tem-se assim, um panorama geral sobre a novidade no ordenamento jurídico-penal, uma vez que, em nenhum momento, buscou-se o esgotamento do tema, mas sim o debate sobre uma postura que tem se mostrado contumaz, porém de incerteza prática e até mesmo científica: será que a mera criminalização de condutas é suficiente para que sejam cumpridas as disposições constitucionais e legais já existentes? Ou cabe ao Estado uma atuação conjunta e eficaz na repressão a violações destas normas presentes? Essa resposta é, certamente, perseguida por todos os operadores do direito e, ao que parece, ainda está longe de nosso alcance.

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1 Sancionada lei que torna crime descumprimento de medidas protetivas de urgência.

2 STJ - HC: 394567 SC 2017/0073916-2, Relator: Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, Data de Julgamento: 9/5/2017, T6 - SEXTA TURMA, Data de Publicação: DJe 15/5/2017

3 Trata-se de matéria com reserva de jurisdição: apenas o juiz de direito, ou Tribunal, pode impor as medidas protetivas de urgência.

4 Em que pese não ser o centro do presente estudo, destaca-se que há forte corrente doutrinária e jurisprudencial que amplia a aplicação da Lei da Maria da Penha, sobretudo quanto à aplicação de medidas protetivas de urgência às crianças, adolescentes, idosos e até mesmo homens, desde que vítimas de violência doméstica.

5 O rol de medidas protetivas de urgência é exemplificativo. Todavia, em virtude do disposto no caput do artigo24-A ("...previstas nesta Lei"), parece evidente que, caso o agente descumpra uma medida protetiva que não conste no rol dos artigos 22 a 24 da Lei Maria da Penha, não há que se falar em crime, sob pena de violação do princípio da reserva legal.

6 O agressor não precisa, necessariamente, ser homem (p. ex. agressão de filha à mãe).

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*Eudes Quintino de Oliveira Júnior é promotor de Justiça aposentado, mestre em Direito Público, pós-doutorado em Ciências da Saúde. Advogado e reitor da Unorp.








*Antonelli Antonio Moreira Secanho
é assistente jurídico no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, bacharel em Direito pela PUC/Campinas e pós-graduação "lato sensu" em Direito Penal e Processual Penal pela PUC/SP.



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