O despertar dos tribunais para a limitação das possibilidades de rompimento de compromissos de compra e venda de imóveis
Os Tribunais têm se fundado em interpretação distorcida da lei consumerista, como se esta determinasse a prevalência absoluta dos interesses particulares do consumidor em detrimento do cumprimento de um compromisso contratual.
quinta-feira, 19 de abril de 2018
Atualizado em 17 de abril de 2018 12:06
Com a crise econômica, as incorporadoras brasileiras têm passado por longos períodos de "venda negativa", quando o número de distratos supera o de novos negócios.
De acordo com artigo publicado na revista Infomoney1, 51% dos negócios de compra e venda de imóveis realizados entre agosto de 2016 e agosto de 2017 foram desfeitos e, no ano de 2016, foram negociados 44.233 distratos, o que implica a devolução do valor pago pelo comprador, acrescida de correção e juros, mais desembolso dos custos para a revenda do imóvel (publicidade, corretagem, etc.), invariavelmente feita com desconto, situação que já causou às incorporadoras prejuízos de mais de R$1,1 bilhão.
Trata-se de conjuntura insustentável, que contribui significativamente para a retração da indústria da Construção Civil e da economia de um modo geral.
A questão se torna ainda mais grave quando se apura que, conforme dados apresentados por Meyer Joseph Nigri, fundador e presidente do conselho da Tecnisa S.A., menos de 6% das pessoas distratam por real necessidade. Ou seja, quase que a totalidade das desistências é feita por mera conveniência do comprador.
Ainda que gere severos prejuízos às incorporadoras (com impactos evidentes na economia nacional) e ganhos indevidos ao desistente, tal conduta tem contado com pleno aval do Judiciário.
São prevalentes as decisões que permitem o rompimento imotivado do compromisso de compra e venda. Em muitos casos, determina-se a redução dos percentuais de retenção previstos contratualmente em favor da construtora/incorporadora e, até mesmo, a restituição integral dos valores pagos, com o acréscimo de juros de 1% ao mês desde a data da citação, criando situações absurdas nas quais o adquirente que se recusa a cumprir o pacto pode receber da construtora muito mais do que pagou.
Tais decisões, invariavelmente, invocam o CDC, ainda que o referido código não autorize ao consumidor o rompimento do vínculo contratual de forma irrestrita. Ou seja, os Tribunais têm se fundado em interpretação distorcida da lei consumerista, como se esta determinasse a prevalência absoluta dos interesses particulares do consumidor em detrimento do cumprimento de um compromisso contratual, além de ignorarem que compromissos de compra e venda são celebrados, via de regra, em caráter irrevogável e irretratável.
Também não é incomum a invocação da legislação consumerista quando sequer existe relação de consumo, como nos casos em que a aquisição do imóvel é feita para fins de investimento, situação em que o adquirente, por óbvio, não figura como destinatário final do bem (condição essencial para caracterizá-lo como consumidor).
A conivência do Judiciário com os pedidos imotivados de rompimento de pactos de compra e venda de imóveis revela negligência com a sua função de pacificação social e promoção da justiça. Afinal, além de privilegiar demasiadamente uma parte contratual em detrimento da outra, os enormes prejuízos decorrentes da situação colocam em risco a própria continuidade das Incorporadoras e dos empreendimentos de sua responsabilidade. Isso, por sua vez, gera prejuízos a todos os adquirentes dos empreendimentos impactados, que ficam submetidos a situação de atraso ou inconclusão das obras, ficando também afetados os trabalhadores da construção civil, que perdem seus empregos, a indústria produtora dos insumos da construção e os fornecedores de materiais e serviços para a atividade.
A situação, como se vê, tem enorme alcance, tornando-se nociva à própria economia nacional, havendo de ser lembrado que a Construção Civil, além de fomentar setores importantes da indústria, comércio e prestação de serviços, é uma das poucas atividades capazes de absorver mão de obra desqualificada, gerando empregos de forma ampla.
Tudo isso, para privilegiar o interesse individual do adquirente desistente (muitas vezes, inadimplente) que, por conta da aplicação de juros aos valores a ele restituídos, recebe muito mais do que pagou à incorporadora/construtora.
Trata-se de uma inversão de valores que transforma o descumprimento contratual em um ótimo negócio, colocando em risco um dos pilares de desenvolvimento das sociedades, que é a preservação dos vínculos contratuais e obrigacionais.
Como aponta Meyer Joseph Nigri, em artigo publicado em um portal de notícias, "em resumo, o comprador, ao comprar um imóvel na planta, tem em suas mãos uma opção de graça, pois se o preço da unidade subir, ele adquire definitivamente o imóvel e caso o preço venha a cair ele pode desistir da compra e receber todo seu dinheiro de volta, com um rendimento melhor que qualquer aplicação financeira. Isto além de criar uma crise de liquidez nas incorporadoras, forçam as mesmas a vender as unidades abaixo do custo, gerando um prejuízo real e contábil muito grande, uma vez que os resultados destas vendas já haviam sido contabilizados e agora terão que ser revertidos"2.
Finalmente, e após reiteradas discussões judiciais sobre o assunto, os Tribunais parecem começar a demonstrar alguma sensibilidade ao problema.
É o caso do TJ/RJ que, ao julgar a AC 0066013-17.2016.8.19.0001, reformou sentença do juiz de primeiro grau que, mesmo diante do inadimplemento do comprador, deferiu o pedido de desfazimento do contrato de compra e venda e determinou a devolução de 90% dos valores pagos, com correção monetária e juros de 1% ao mês. Veja os acertados fundamentos do TJ/RJ para revogar a decisão de primeira instância:
"À toda evidência, se o promitente vendedor não pode desistir da compra e venda porque, por exemplo, não mais subsiste seu interesse econômico, tampouco poderá o promitente comprador fazê-lo. Entender de maneira diversa consagraria uma manifesta desproporção entre os poderes das partes do contrato: o promitente comprador poderá desistir a seu talante, mas, se a contraparte assim o desejasse, ficaria sujeita à adjudicação compulsória do imóvel.
(...)
Do que se vem de expor, não havendo inadimplência do vendedor, conclui-se que era de julgar improcedente o pedido de rescisão contratual e devolução dos valores pagos".
Ao apreciar as apelações 1116739-14.2016.8.26.0100 e 1003676-90.2015.8.26.0590, o TJ/SP igualmente reformou sentença do juiz de primeiro grau, permitindo o desfazimento do vínculo contratual (pedido com o qual, no caso, as construtoras concordaram), desde que houvesse a aplicação do percentual de restituição de valores previsto nos contratos (70%), e não aquele pretendido pelos adquirentes desistentes e deferido pelo juiz (90%).
O TJ/SP, ao apreciar as apelações 1021894-87.2015.8.26.0002 e 1110740-43.2016.8.26.0100, também cuidou de afastar, de forma acertada, a condição de consumidor daqueles que adquirirem unidades imobiliárias como investimento, reformando a sentença de primeiro grau para, respectivamente: i) decretar a impossibilidade de desfazimento do negócio jurídico à mera conveniência do investidor, que alega não ter obtido o retorno esperado; e ii) possibilitar a dissolução do pacto, pela impossibilidade do adquirente de levar o negócio adiante, mas aplicando-se o percentual de restituição previsto no contrato, mantendo as retenções de valores em benefício da construtora.
No TJ/MG, já há algum tempo é possível encontrar decisões de mesmo teor (ainda que permaneça muito presente, no mesmo Tribunal, a tendência de conceder "carta branca" ao adquirente desistente, e de atribuir a qualidade de consumidor àquele que jamais foi). É o caso do julgado abaixo:
"De início, é de se afastar a aplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor ao caso. O autor nem de longe é consumidor. Aliás, nas suas alegações iniciais é interessante observar que ora se põe como um investidor voraz, que pretende o retorno do capital investido, ora se põe como um pobre coitado consumidor, sem amparo e sem dinheiro.
Ora, o caso em exame é obviamente de relação entre investidores. Não há nada que possa lembrar relação de consumo. O autor não está consumindo nada. Investes em empreendimento objetivando lucro apenas. Consumidor de hotel é quem se hospeda no hotel. Quem participa do empreendimento comprando um quarto para alugar ao administrador, que gerenciará o hotel, não é consumidor, é investidor.
E nessa perspectiva, não há nada que invalide o negócio jurídico celebrado entre as partes.
(...)
O que se vê dos autos é que o autor comprou a unidade imobiliária em um empreendimento seduzido pela possibilidade do lucro. Se houvesse lucro na operação, nenhuma nulidade. Como não teve o retorno esperado de seu investimento, quer rescindir o contrato de compra e venda do imóvel. Venda o imóvel.
Ora, não há no ordenamento jurídico pátrio fundamento capaz de invalidar o negócio nessas bases. Não se afirmou na inicial ou na apelação nenhum argumento com base nas normas vigentes capaz de levar o negócio à rescisão.
Por fim, atente-se para as funestas consequências de se dar abrigo à pretensão do autor. Qualquer negócio entre sócios, entre investidores, seria possível de desfazimento ao menor sinal de prejuízo. O mundo dos negócios viveria apenas de empreendimentos válidos se fossem lucrativos. E terminaria toda a segurança dos contratos, daqueles que trabalham no hotel, dos fornecedores, etc. É óbvio que a função primeira do Direito, e do Judiciário nesses casos, é de dar segurança ao mundo dos negócios. Acolher a pretensão do autor nas bases em que foram postas não é só destituído de fundamento jurídico, mas contrário ao Direito". (TJ/MG. AC 1.0188.08.068143-3/001. Relator: desembargador Batista de Abreu - 16ª Câmara Cível - Publicado em 5/2/2010).
Os Tribunais, portanto, parecem ter finalmente percebido que o exercício do direito de arrependimento não pode ocorrer afrontando a lei civil e consumerista, nem pode resultar no enriquecimento sem causa do desistente, em detrimento de todo um setor da indústria e da sociedade em geral.
Para que tal tendência efetivamente se solidifique, é essencial que o setor imobiliário se organize para propor uma melhor regulação do tema, e promova e divulgue à sociedade discussões sobre a questão.
É essencial, ainda, que as incorporadoras invistam em uma boa defesa processual, para que todas as questões aqui colocadas possam efetivamente ser levadas ao julgador, o que não acontece rotineiramente, sendo muito comum que, negligenciado ao debate, as defesas das construtoras sejam feitas de forma genérica, desconectada do caso concreto e sem abordar, nem remotamente, as questões colocadas neste artigo.
Por fim, é preciso esclarecer que não se está aqui a defender o posicionamento oposto, ou seja, que o desfazimento dos compromissos de compra e venda seja impossível ao adquirente. Se este, por justa causa bem demonstrada no processo, não é mais capaz de manter o negócio, não pode, de fato, ficar a ele vinculado. Porém, como já demonstrado, a grande maioria das desistências é completamente imotivada, feita por simples conveniência do adquirente.
O que se defende, portanto, é que os Tribunais façam uma análise criteriosa de cada caso, ao invés de aplicarem autorizações irrestritas que beneficiem, indevidamente e exclusivamente, um ou outro lado. Para tanto, como já apontado, é essencial a contribuição, para o debate, dos advogados atuantes no ramo imobiliário e dos representantes da construção civil.
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2 "Injusto, distrato é o maior problema do mercado imobiliário".
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*Carolina Castanheira é advogada no escritório Pinheiro, Mourão, Raso e Araújo Filho Advogados, tem especialização em Direito Empresarial pela FGV, é formada em letras (Grego e Latim) e é Mestre em Estudos Literários (Latim). Suas áreas de atuação são Contencioso cível, administrativo e comercial, incluindo falências, recuperação judicial e extrajudicial, execuções, cobranças, responsabilidade civil, família e sucessões.