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O papel do Poder Judiciário no processo penal

Rogério Neres

"Corrupção é crime e é papel do Poder Judiciário combater o crime".

sexta-feira, 13 de abril de 2018

Atualizado em 10 de abril de 2018 14:20

Parte 1. O fator "Carmen Lúcia"

"Corrupção é crime e é papel do Poder Judiciário combater o crime".

A frase acima é de autoria da presidente do Supremo Tribunal Federal, Ministra Carmen Lúcia, e foi proferida durante entrevista concedida ao jornalista Heraldo Pereira, do Jornal das Dez da GloboNews, em 19 de março de 2018. [1]

Inicialmente a ideia contida na frase parece sedutora e satisfatória, mas, de verdade, esconde um grande risco ao Estado Democrático de Direito. Isso porque, é sabido que, não à toa, a Carta Republicana consagra a divisão de funções no âmbito do sistema de justiça criminal.

Nesse sentido, José Frederico Marques ensinou que "o juiz, que tem notícia da prática de um delito de ação pública, deve levar o fato ao conhecimento dos órgãos estatais a quem cabe a persecução penal." [2]

Por persecução penal, entenda-se a prática de combater crime, pois é este o sentido do termo, isto é, o ato de perseguição; ação de perseguir; de correr; de ir atrás de alguém ou de alguma coisa.

José Frederico Marques segue esclarecendo que, "uma pessoa que tenha documentos em mãos, que demonstrem a prática de infração penal por determinado indivíduo, pode remetê-los ao Ministério Público e dar causa, assim, a que este ingresse com a ação penal." [3]

Essas são lições básicas que indicam o alcance e o limite da função jurisdicional, sendo que a frase dita pela ministra atribuindo ao Poder Judiciário a atividade de "combatedor" de crime acaba promovendo uma grande confusão nos papéis que devem ser desempenhados pelos "personagens" do processo penal, conduzindo o julgador a uma posição ocupada originalmente pela polícia e pelo Ministério Público.

Essa confusão não significa qualquer coisa, uma vez que a independência e a imparcialidade do juiz ficam prejudicadas, pelo que, advertiu Calamandrei que "Sem independência dos juízes não é possível justiça." [4]

A explicação é simples. A independência da atuação jurisdicional posiciona o juiz para fora da linha de confronto de interesses que conecta as partes - Ministério Público e réu. O juiz, na ponta da pirâmide que simboliza a relação processual desempenha função descompromissada em relação aos interesses diretos das partes no processo penal, mas compromissada com o dever de um pronunciamento jurisdicional que é pautado pela constituição, pelas leis e pelas provas produzidas por elas (as partes).

Aceitar como correta a frase da ministra significa concordar com a ideia de que o juiz pode abandonar sua independência para atuar segundo os interesses da Polícia e do Ministério Público, sendo que, o grande problema está no fato de que estes órgãos partem da premissa de que tal sujeito investigado é culpado.

Ora, é possível imaginar que, ao menos em tese, um juiz que parta do princípio que tal sujeito é culpado, deve adotar postura que leve à demonstração de seu "palpite". Isso significa que, ao longo do jogo processual, as medidas jurídicas tomadas por ele serão dirigidas à comprovação da sua tese, sendo que, quem deve ter tese são partes e, em primeiro lugar, o Ministério Público porque é quem inicialmente faz alegação, a de culpa.

Um juiz combatedor de crime não se conduz pelo princípio da presunção de inocência que, embora desgastado em nosso país, tem seu espaço na história das grandes conquistas da humanidade.

Um juiz que encarne o papel de combatedor de crime fará perguntas capciosas ao réu, tentando incriminá-lo para então confirmar seu palpite. Um juiz combatedor de crime, em tese, não verá pertinência na versão do réu e na formulação de seus requerimentos probatórios, afinal de contas para ele o réu é, de "cara", culpado!

"Logo, destrói-se a estrutura dialética do processo penal, o contraditório, a igualdade de tratamento e oportunidades e, por derradeiro, a imparcialidade - o princípio supremo do processo penal." [5]

A esse respeito, Eros Grau salientou que "O acusado já então não se verá face a um juiz independente e imparcial. Terá diante de si uma parte acusadora, um inquisidor a dizer-lhe algo como já o investiguei, colhi as provas, já me convenci de sua culpa, não lhe dou crédito algum, mas estou a sua disposição para que me prove que estou errado! E isso sem sequer permitir que o acusado arrisque a sorte em ordálias". [6]

Eros Grau diz mais: "Sob o título combate à criminalidade no Estado Democrático de Direito - que em nenhuma sociedade na qual a desordem tenha sido superada admite-se que todos cumpram as mesmas funções. O combate à criminalidade é missão típica e privativa da Administração (não do Judiciário), seja através da polícia, como se lê nos incisos do artigo 144 da Constituição, quanto do Ministério Público, a quem compete, privativamente, promover a ação penal pública (artigo 129, I)". [7]

Como explica Alexandre Morais da Rosa, "somente pode ser imparcial - com muito esforço retórico, por básico - aquele que não é acusador, reiterando a necessidade da separação da acusação e julgador para, somente assim, ser o 'garantidor dos Direitos Fundamentais'. É inimaginável que o juiz em qualquer disputa, por exemplo, boxe, futebol ou MMA, o juiz desfira qualquer golpe nos contendentes, sob pena de fraudar a disputa e deixar evidenciada sua preferência de vitória." [8]

Gustavo Henrique Badaró delimita o que se tenta demonstrar com o presente texto ao dizer que: "Segundo a teoria da aparência geral de imparcialidade, para que a função jurisdicional seja legitimamente exercida, não basta que o magistrado seja subjetivamente imparcial, mas é necessário também que a sociedade acredite que o julgamento se deu perante um juiz imparcial. Um julgamento que toda a sociedade acredite ter sido realizado por um juiz parcial será tão pernicioso e ilegítimo quanto um julgamento realizado perante um juiz intimamente comprometido com uma das partes. Consequentemente, tão importante quanto o juiz ser imparcial, é o juiz parecer imparcial. Se a sociedade não acredita que a justiça foi feita, porque ao acusado não foi assegurado um julgamento imparcial, o resultado de tal processo será ilegítimo e prejudicial ao Poder Judiciário". [9]

Respeitosamente, o que se tem é um grande equívoco da ministra, uma vez que somente a leitura constitucional da função do Poder Judiciário, no âmbito do processo penal, pode salvaguardar o Estado Democrático de Direito e, assim, legitimar um julgamento.

É preciso lembrar, que o Código de Processo Penal é da década de 1940, período em que o Brasil estava sob a vara da ditadura Vargas, circunstância que fez forjar um código autoritário e, portanto, incompatível com o espírito libertário da Constituição Federal de 1988.

Desse modo, se a posição da ministra repousa nos aspectos arcaicos e autoritários do Código de Processo Penal, é porque ela faz uma leitura individual do Código, divorciada da Constituição Federal, sendo certo que os comandos contidos nos artigos 5º (juiz requisitando instauração de inquérito sobre caso que ele mesmo vai julgar); 127 (determinar sequestro de ofício); 156 (produzir prova de ofício); 209 (ouvir testemunhas de ofício); 242 (busca e apreensão de ofício); 310 e 311 (prisão preventiva de ofício) e 385 (condenação do réu, sem que o ministério público tenha requerido) não se coadunam com o sistema acusatório insculpido da Carta Magna.

Parte 2. O fator "O mecanismo"

Recentemente a Netflix lançou a série "O mecanismo", com direção assinada por José Padilha, um importante cineasta brasileiro. A série é inspirada na operação lava-jato e, apesar de não assumir maior compromisso com a cronologia e veracidade dos fatos, narra o que seriam os bastidores da operação.

Acontece que, assim como a ministra Carmen Lúcia, a série promove confusão em relação ao papel do Poder Judiciário no âmbito do processo penal. Isso porque, durante os episódios, chama atenção, entre outras coisas, algumas reuniões realizadas com os personagens dos procuradores do Ministério Público Federal, da Polícia Federal e do Juiz Federal, tudo às portas fechadas.

Nessas reuniões os personagens, inclusive do Juiz Federal, criam estratégias para promover a persecução penal de doleiros, pessoas ligadas à companhia brasileira de petróleo, empreiteiros e políticos.

Não é possível afirmar no presente texto que, na vida real, o Juiz Federal Sergio Moro tenha participado de reuniões como essa ou mesmo que elas tenham acontecido, no entanto, seria ingênuo pensar que tal circunstância não possa existir.

Com efeito, o juiz que participa ao lado de agentes da administração, arquitetando atos de investigação policial que basearão futura ação penal cujo julgamento ele próprio fará, perde em imparcialidade e contribui para suplantar o sistema acusatório.

Conforme "denuncia" Aury Lopes Junior, nessas condições os juízes deixam de atuar como garantidores do sistema, transformando-se em "juízes-instrutores-inquisidores", produzindo a prova que bem entender, para depois, no processo, decidir a partir de seus próprios atos. Decide primeiro, a partir da prova que ele constrói e, depois, no golpe de cena que se transforma o processo, formaliza essa decisão". [10]

Eros Grau, citando Ferrajoli vai dizer que "Juízes que se pretendem versados na teoria e prática do combate ao crime, juízes que arrogam a si a responsabilidade por operações policiais transformam a constituição em um punhado de palavras bonitas rabiscadas em pedaço de papel sem utilidade prática". [11]

A confusão aqui retratada tem sido capaz de contaminar parte da sociedade, fazendo com que muitos cidadãos acreditem na existência de uma relação juiz vs. réu, sendo que o primeiro deve sair vencedor, "obviamente"!?

Contudo, se ignoram os males históricos dessa lógica de funcionamento, repelidos desde os movimentos iluministas que influenciaram o processo penal, no final do século XVIII, ocasião em que o juiz foi conduzido para uma posição neutra, imparcial e independente, como única forma de se fazer justiça.

Apesar disso tudo, salvo exceções de destaque[12] a doutrina segue calada presenciando o sepultamento do processo penal constitucional.

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1. https://www.youtube.com/watch?v=CZ1IW48XtCg.

2. Elementos de processo penal, v. 1, 1ª edição revisitada e atualizada, 1977, Bookseller. 1997, p. 137.

3. Idem. p. 143.

4. Governo e Magistratura. Opere Giuridice. Napoli: Morano, 1966. V. 2. P. 198., citado por Gustavo Henrique Badaró em Processo Penal, p. 143.

5. Direito processual penal. 10ª Edição. Saraiva: São Paulo, 2013. p. 178.

6. Retirado do voto proferido pelo Ministro Eros Grau no julgamento do HC 95009, p. 36.

7. Idem, p. 36.

8. Processo penal. 3ª edição, RT: São Paulo, 2015, p. 43.

9. ttps://www.conjur.com.br/2016-nov-11/limite-penal-quem-juiz-processo-nao-autoritario, acessado em 03/04/2018, 14hs.

10. Op. cit. 179.

11. Retirado do voto proferido pelo Ministro Eros Grau no HC 95009, p. 36.

12. Luís Carlos Valóis, Rômulo Andrade Moreira, Rubens Casara, Geraldo Prado, Salo de Carvalho, António Pedro Melchior, Edson Luis Baldan, Gustavo Henrique Badaró, Pierpaolo Cruz Bottini, Lenio Streck, Aury Lopes Junior, Alexandre Morais da Rosa, Jacinto Coutinho, Juarez Cirino, Nereu Giacomoli, dentre outros (mas não muito mais).

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*Rogério Neres é advogado criminal.

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