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"Ladrão e vacilão", Eudes Quintino

"Ladrão e vacilão"

De nada adianta brandir ao vento um arsenal de boas intenções, com medidas simplistas e paliativas, pois nossos jovens, ao se tornarem adultos, irão exibir as marcas que levaram na adolescência, muitas vezes permanentes.

domingo, 1 de abril de 2018

Atualizado em 29 de março de 2018 10:50

No mês de junho de 2017, um jovem com 17 anos de idade, sem permissão, ganhou o interior de uma pensão e se aproximou de uma bicicleta adaptada para deficiente. Um tatuador interpretou que se tratava de um furto e, com a ajuda de outra pessoa, abordou e o recolheu a um cômodo e, neste local, ambos, com a intenção de puni-lo, tatuaram em sua testa os dizeres: "sou ladrão e vacilão", além de exigirem dele uma confissão por vídeo que pretendia subtrair a bicicleta1.

O tatuador e o amigo foram processados pela prática dos crimes de lesão corporal gravíssima e constrangimento ilegal, sendo condenados a cumprir a pena de três anos e quatro meses e três anos e onze meses, respectivamente, sem o direito de recorrer em liberdade.

Agora, no mês de março de 2018, já com 18 anos de idade, o jovem tatuado foi preso em flagrante delito, no interior de um supermercado, quando furtava cinco frascos de desodorantes. Pagou a fiança de R$ 1mil e vai responder pelo crime em liberdade.

Os fatos trazem desdobramentos interessantes. No primeiro deles, que seria uma provável tentativa de furto, os agentes excederam e em muito no direito de legítima defesa do patrimônio de terceiro e roubaram a cena em que o furtador seria o personagem principal. Não se pode negar que muitas pessoas, as que exigem aplicação de penas mais rigorosas, aplaudiram a conduta dos agentes por entender que fizeram uma Justiça rápida, com as próprias mãos e, principalmente, por deixarem marcas indeléveis e identificadoras na testa do rapaz. Mas, sem qualquer dúvida, praticaram um crime mais grave do que aquele que estavam querendo evitar. Daí a correta reprimenda penal.

No segundo, o furtador, agora com 18 anos, foi pilhado em flagrante delito pela prática de furto e, em liberdade, permanecerá, embora tenha retornado à clínica em que se encontrava internado para tratamento de dependência química, em situação que já apresentava boas perspectivas de ressocialização.

Do relato feito, repetitivo até no cenário da delinquência do país, percebe-se que, desde jovem, em razão do uso de drogas, a pessoa reflete uma incontida vocação para o furto. Inicialmente, furto tentado, em razão até mesmo de sua inexperiência na vida marginal, muitas vezes considerado de pequeno valor pela legislação, circunstância que lhe traz enorme benefício processual e, após um breve noviciado com orientadores de longa marcha criminal, consegue um lugar de destaque na comunidade que frequenta e nesse caminhar vai progredindo na subtração com ou sem violência.

Após peregrinar um bom tempo pelas bandas do crime, principalmente quando não é descoberto, é muito difícil a pessoa se reprogramar para uma vida decente, candidatar-se a um emprego e se fixar em determinado local com a constituição de uma família. É muito mais fácil seguir no caminho da transgressão social, que lhe garante eventuais e razoáveis dividendos financeiros, do que enveredar-se nas regras da convivência social harmônica.

O cidadão comum, por sua vez, pensa que o furtador ou roubador é pessoa diferenciada das demais, que não tem convivência social, que vive escondido no seu reduto e se apresenta publicamente quando da realização da sua empreitada criminosa. Nada disso. Sem fazer qualquer apologia ao crime ou do criminoso, o assaltante é qualquer pessoa do povo, é aquele com quem você cruza pelas ruas, com quem você assiste a uma partida de futebol, que o atendeu em algum estabelecimento ou que, às vezes, prestou serviços em sua própria residência.

É frustrante ver a escalada estarrecedora de crimes de conteúdo explícito de violência continuar a crescer sem limites e a sociedade acuada, com o torniquete de sua liberdade apertado ao extremo, assimilando e ajustando-se a esse incômodo patamar.

Não se acredita que a Justiça, por si só, tenha condições de coibir a escalada da violência. O aparato legal não carrega instrumentos condizentes com a realidade social, daí o disparate de tatuar o jovem furtador, como se fosse uma resposta adequada. Parece que a única e a faltante alternativa, reside em reconstruir a educação a começar pelo lar e, sequencialmente, nas escolas com a finalidade de repassar às crianças e jovens preceitos básicos da ética da convivência e respeito mútuo, por meio de políticas públicas responsáveis e exequíveis, de acordo com a necessidade do país. De nada adianta brandir ao vento um arsenal de boas intenções, com medidas simplistas e paliativas, pois nossos jovens, ao se tornarem adultos, irão exibir as marcas que levaram na adolescência, muitas vezes permanentes.

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*Eudes Quintino de Oliveira Júnior é promotor de justiça aposentado/SP, mestre em Direito Público, pós-doutorado em ciências da saúde, advogado, reitor da Unorp e membro ad hoc da CONEP/CNS/MS.


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