O elixir da juventude
O sangue humano, numa visão leiga, despojada de qualquer conteúdo científico, sempre representou a magia da energia e vitalidade renováveis.
domingo, 25 de março de 2018
Atualizado em 23 de março de 2018 13:26
Machado de Assis, com sua sensibilidade descritiva aguçada, mestre da observação psicológica, romântico e parnasiano-realista, querendo satisfazer uma curiosidade a respeito da influência do sangue no ser humano, fez uma incursão na área do xenotransplante, retratada no Conto Alexandrino. Pela experiência narrada, Stroibus e Pítias, dois amigos filósofos e cientistas, descobriram que se a pessoa ingerisse o sangue do rato iria tornar-se ratoneiro; da coruja, sábia; da aranha, arquiteta; da cegonha, viajante; da rola, fidelidade conjugal; do pavão, vaidade. Ingeriram o sangue de rato. Foram presos na corte de Ptolomeu e condenados à morte por seguidos furtos de raras obras literárias da biblioteca de Alexandria.1
Entre os anos de 1960 e 1970, um antropólogo e um geneticista americanos da Universidade do Estado de Pensilvânia colheram amostras de sangue dos índios da etnia Yanomami, no Brasil, sem autorização das lideranças, para fins de pesquisa. Ao tomarem conhecimento posterior da destinação das amostras retiradas, os índios, imbuídos de muita persistência ao longo de 45 anos, conseguiram repatriar o material. Para tanto, organizaram uma cerimônia para enterrar o sangue, vez que faz parte do corpo humano e por isso quando o Yanomami morre, é cremado.
O sangue humano, numa visão leiga, despojada de qualquer conteúdo científico, sempre representou a magia da energia e vitalidade renováveis. Assim, quanto mais jovem, maior o dinamismo, mais saúde, mais vida. Tamanha sua utilidade e importância que os bancos de sangue e de medula óssea estão espalhados pelo mundo para fazer a coleta e transferi-lo para os pacientes que dele necessitem.
Na realidade, pode-se até dizer, que a doação deveria ser ato de comunhão, de alteridade, levando-se em consideração que a natureza humana tem como sustentáculo o altruísmo. O sangue que circula no corpo ou se aloja na medula óssea de uma pessoa, tem compatibilidade para se transferir para outro corpo e restaurar uma vida atingida por doenças que afetam as células, como as leucemias. É, por um lado, uma doação representando um gesto de extrema solidariedade, com rápida reconstituição do material doado e, por outro, a única chance de vida para o doente receptor.
Assim é que, repetindo várias tentativas da humanidade, frustradas até então, uma clínica particular da Califórnia, Estados Unidos, oferece inédito serviço de combate às doenças do envelhecimento e, para tanto, busca interessados com mais de 35 anos de idade, cobrando de cada um a importância de 8.000 dólares, para receberem sangue coletado de jovens entre 16 e 25 anos. Pelo que se sabe, a iniciativa foi inspirada em uma série de TV Silicon Valley, bem popular naquele país.2
Toda iniciativa ou estudos relacionados com o ser humano devem observar as pétreas balizas da Bioética, principalmente as relacionadas com os benefícios, que nada mais são do que o plus diferenciador e que garanta ganhos e dividendos para o homem, eliminando qualquer carga que seja prejudicial à sua saúde. É sempre um avanço, considerando que a ciência médica é dinâmica por excelência, daí que o procedimento deve contemplar melhores condições de saúde para o ser humano, ampliando sua longevidade, numa evolução tal que atinja o supremo bem proposto por Aristóteles. De nada adianta a prática da transfusão se ainda não se tem um resultado que seja considerado satisfatório, conveniente, seguro e adequado para o homem.
Mas é necessário cautela. Aparentemente parece até uma tarefa fácil e sem qualquer risco. Basta transfundir o sangue e seus componentes de um doador para o sistema circulatório do receptor e aguardar os múltiplos benefícios pretendidos. Assim, de forma espontânea, ocorreria a renovação da vida. Há, no entanto, um longo caminho a ser percorrido no campo científico, pois o fato de receber sangue de pessoa mais jovem, por si só, não é fator determinante e muito menos garantia de se reinventar a juventude e gozar de todos os seus privilégios. Na realidade, não há ainda uma comprovação científica, devidamente homologada, a respeito do procedimento.
Hoje, no Brasil, há várias linhas de pesquisa envolvendo as células-tronco, ainda em estágio inicial, justamente para poder avaliar sua eficácia a longo prazo. Esquivando-se um pouco da definição médica em razão de seu caráter muito técnico, pode-se dizer que as células-tronco, encontradas no cordão umbilical, placenta, sangue, medula óssea, atuam como um coringa, pois, implantadas, carregam material suficiente para se transformar em vários tipos de células adequadas para cada função especializada do corpo humano. E mais. Podem se dividir infinitamente e o material seccionado continuará a ser célula-tronco, com atuação no músculo, sangue, cérebro, enfim, dependendo da necessidade de sua função. São chamadas de células-tronco adultas ou autógenas, presentes no feto e no indivíduo adulto. O exemplo clássico é o transplante de medula óssea para o tratamento da leucemia.
As células-tronco embrionárias ou somáticas, por sua vez, carregam uma linhagem diferenciada. São pluripotentes e, por serem jovens, apresentam uma capacidade acentuada porque ainda não se especializaram, quer dizer, não exerceram nenhuma função. Além disso, como ferramentas de mil utilidades, podem se ajustar a qualquer tipo de célula. São resultantes do procedimento de fecundação em laboratório dos materiais reprodutivos do homem e da mulher, introduzido pela lei 11.105/05.
Assim, ainda não é momento para qualquer comemoração. Resta, para o momento, entoar o Gaudeamus igitur, canção considerada o hino universitário mundial, que assim principia: "Alegremo-nos, portanto/ Enquanto somos jovens/Depois de uma juventude prazenteira/Depois de uma velhice doentia/A terra nos terá".
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1 Conto Alexandrino, escrito em 1884.
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*Eudes Quintino de Oliveira Júnior é promotor de justiça aposentado/SP, mestre em Direito Público, pós-doutorado em ciências da saúde, advogado, reitor da Unorp e membro ad hoc da CONEP/CNS/MS.