Contra o racismo, as forças do povo e da lei
Cabe-nos sempre, em paralelo, advertir a população leiga quanto ao texto da lei, instrumento a seu serviço, enfim.
sexta-feira, 23 de março de 2018
Atualizado às 08:21
Em tempos de mídias abertas e acessíveis, à disposição de quem delas queira fazer uso para lançar as suas opiniões, - ainda que seja, como já disse Renato Russo, para falar demais por não ter nada a dizer, o que já é aborrecível -, não raras vezes nos surpreendemos, e sempre nos surpreendemos, com manifestações racistas, o que é odioso. Exemplos, infelizmente, não faltam. A filha adotiva do casal de artistas Bruno Gagliasso e Giovanna Ewbank, Titi, que é negra, foi assim tratada por uma brasileira residente no Canadá pelo Instagram: "Ficam elogiando aquela macaca, a menina é preta, tem um cabelo horrível de pico de palha, tem um nariz de preto, e o povo fala que a menina é linda".
Criminoso e desumano, o comentário racista deve ter consequências. Com razão, Gagliasso e Ewbank foram à Justiça contra a injuriante. Inúmeras foram as manifestações de repúdio às palavras da internauta contra Titi, vítima da retórica do ódio racial.
A face mais perversa do racismo, contudo, não está no Instagram nem nos lares das famílias brancas de classe alta que adotam crianças negras, mas nas favelas e nos bairros pobres das metrópoles. Conforme o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, 76% das vítimas de homicídio no país são pessoas negras, e não moram exatamente em regiões nobres. Sim, é preciso continuar afirmando que para preto e pobre a pena de morte vigora.
As raízes do racismo brasileiro têm sido debatidas com propriedade por vários autores, acadêmicos em maioria. É consensual a percepção de que uma cultura escravocrata de 400 anos não se apaga com meia dúzia de teses, nem com dois ou três regimes de cotas. Muito mais é necessário, e envolve a sociedade como um todo. Movimentos de massa resultantes de comoção nacional, como os realizados em resposta ao assassinato da vereadora carioca Marielle Franco, voz estridente contra o racismo e a truculência policial, podem ser pontos de partida para um novo aculturamento.
Tristemente, nem os ambientes a princípio intelectualizados estão livres do preconceito racial no Brasil. No início de março, um aluno da Fundação Getúlio Vargas fotografou outro estudante da mesma escola, um negro, sentado ao lado de colegas em um banco do campus, e compartilhou a foto com um grupo do WhatsApp assim legendada: "Achei esse escravo aqui no fumódromo! Quem for o dono avisa". Que sirva como exemplo: o estudante injuriado denunciou o caso.
Também merece ser reproduzida, em situações semelhantes, a atitude dos alunos do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo, que denunciaram um professor por comentário preconceituoso em redes sociais. Estas foram as repugnantes palavras do professor, postadas em 10 de março último: "Horror de turismo. Odeio pretos e pardos falando muito e comendo de tudo por muito tempo, em bandos, nos hotéis três estrelas de orla de praia! Um café da manhã macabro com tanta algazarra e gulodice. Alguém consegue comer carne de sol logo cedo lotando o prato três vezes? Eles conseguem, todos! Queria ser muito rico e ter o café no meu quarto sempre nu e escutando Mozart".
Nós advogados temos por obrigação profissional e compromisso humanista ombrearmo-nos aos movimentos por igualdade racial, quando não liderá-los, pelo fato de os enxergarmos como potenciais promotores de justiça social e de igualdade. Cabe-nos sempre, em paralelo, advertir a população leiga quanto ao texto da lei, instrumento a seu serviço, enfim. E a lei é clara. O Código Penal, em seu Artigo 140, classifica a injúria racial como crime inafiançável, cuja pena é reclusão de um a três anos mais multa.
Aplicada a lei, muitos racistas, nus ou não, terão de ouvir Mozart na cadeia.
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*Fábio Romeu Canton Filho é advogado, vice-presidente da OAB/SP.