A Resolução 33 do Senado Federal e mais uma tentativa de desmantelamento do Pacto Federativo
Li com atenção e vagar o artigo da lavra do colega Sergio Presta, nesse respeitável site jurídico, versando o delicado e preocupante tema (assim não encarado pelo nobre articulista que, ao nosso sentir, teve o propósito apenas de informar sem emitir juízo de valor) da Resolução em epígrafe, votada há poucos dias no Senado da República.
quinta-feira, 20 de julho de 2006
Atualizado em 19 de julho de 2006 12:20
A Resolução 33 do Senado Federal e mais uma tentativa de desmantelamento do Pacto Federativo
Gustavo Hasselmann*
Li com atenção e vagar o artigo da lavra do colega Sergio Presta (Migalhas quentes - 4/7 - "Resolução nº 33/2006" - clique aqui), nesse respeitável site jurídico, versando o delicado e preocupante tema (assim não encarado pelo nobre articulista que, ao nosso sentir, teve o propósito apenas de informar sem emitir juízo de valor) da Resolução em epígrafe, votada há poucos dias no Senado da República.
Singela, concisa e aparentemente insignificante e despretensiosa, dito ato normativo atenta, a um só tempo, contra vários princípios, até mesmo proto - princípios, da Carta da República. Senão vejamos.
Antes de perscrutarmos a análise técnico - jurídica derredor do tema, que não se descurará, todavia, de enfocar o fenômeno jurídico como a conjugação dos elementos fato, valor e norma, conforme preciosos ensinamentos que nos foram legados pela pena e aulas do mestre e saudoso Miguel Reale, cumpre desnudar ou tentar desvelar o propósito velado que inspira tal ato normativo. Nesse diapasão, valemo-nos das preleções do professor Eros Grau, ilustre Ministro da Suprema Corte, segundo a qual há um direito "posto" e um direito "pressuposto". O nobre colega, acima citado, com muita propriedade, tratou de referir ao direito posto, trazendo a lume a dicção da malfadada Resolução.
Já no que atina a uma análise filosófica e sociológica do assunto, a que o direito não pode ficar alheio e indiferente, divisamos nessa Resolução um intento marcadamente neoliberal, favorecendo o capital especulativo em detrimento de diversos princípios fundamentais da Carta Magna, por ela subvertidos e pisoteados, a exemplo do Estado Social Democrático de Direito (art 1º, art 3º, art 5º, art 6º da CF); princípio federativo (art 1º e 18º da CF), princípios legalidade , impessoalidade, moralidade e eficiência (art 37 da CF). Mais adiante demonstraremos o porquê.
Ademais, malfere, dita Resolução, de cariz, repita-se neoliberal, apologista de um estado cada vez menor e de um mercado cada vez maior, em detrimento dos menos favorecidos - em antinomia flagrante com os objetivos insculpidos no art 3º da CF - regras, ou mesmo princípios para alguns, dotadas de grande relevância jurídica, tais como: a prevista no art 37, XVIII, que eleva , diferencia e reverencia os funcionários da fazenda em relação aos demais, do que decorre a inarredável conclusão de que o poder - dever tributário é o instrumento se não o mais um dos mais eficazes para concretização do ideário e dos objetivos de um Estado Social e Democrático de Direito, sendo, portanto, é bom desde logo gizar, defeso traspassá-lo ou compartilhá-lo com a iniciativa privada que, em nosso sistema jurídico - constitucional almeja, ou deve almejar, o lucro legítimo ; arts 131 e 132 da CF, que regulam a advocacia pública, alçando-as à condição de carreira de Estado (nesse particular cabe uma advertência comezinha de hermenêutica jurídica: ditos artigos, malgrado não façam alusão aos procuradores municipais, a eles também dizem respeito, sob pena de, se assim não entendermos, expungirmos de uma vez por todas o Município da Federação brasileira-demais disso tais servidores submetem-se a concurso público, adquirem estabilidade, exercitam funções de consultoria e contencioso administrativo e judicial de igual forma que os procuradores federais e dos estados - seria, de outra banda, inominável maltrato ao princípio da isonomia dar-lhes tratamento desigual); por fim, outro artigo violado é o art 52 da CF, na medida em que dita Resolução não encontra guarida nem terreno para aportar em nenhum dos incisos do artigo 52 da CF. Dir-se-ia : estaria ela dispondo sobre limites e condições da dívida consolidada de estados e municípios? A resposta é desenganadamente negativa. Pretextando fazê-lo, invade a competência dos entes federados de administrarem a sua dívida ativa, ao permitir o trespasse das mãos de funcionários concursados (procuradores e auditores fiscais) para instituições financeiras, com maior dispêndio e menor eficiência (princípio constitucional da eficiência em suas duas vertentes , a saber, a da eficiência técnica e da economicidade). Dir-se-ia mais: estaria o Senado agindo com espeque no art 52, XV, é dizer, avaliando periodicamente a funcionalidade do sistema tributário? A resposta negativa também se impõe. Esse inciso não concede um cheque em branco ao Senado, permitindo-lhe invadir esfera de competência dos entes federados, imiscuindo-se em sua estrutura administrativa tributária, sinalizando-lhe para o que é melhor ou pior. Apenas determina avaliação, checagem, para eventual proposição de soluções discutidas democraticamente entre os interessados. Só e somente só. Pensar diferente redundaria não só em fratura do princípio federativo (o Senado é órgão da União), como também invasão do legislativo em competência do executivo, o que briga frontalmente com o artigo 3º da CF.
No que tange à brutal violação aos proto - princípios antes referidos, notadamente, cabe algumas digressões derredor do Estado Social e Democrático de Direito e do princípio federativo, ferozmente vilipendiados pelo malsinado ato normativo.
É sabido e ressabido de todos que a nossa Lei Maior se, de um lado , prestigia a livre iniciativa, do outro assegura e salvaguarda os direitos e garantias sociais e individuais.
Daí porque no arcabouço da nossa tessitura constitucional emerge de forma cristalina o desenho de um Estado que se propõe Social e Democrático de Direito. Ele não pretende e não poderia pretender ser (pois aqui, ao contrário da dos EUA e da Europa Continental, nunca tivemos um Estado do Bem - Estar - Social), um estado mínimo, de colorido neoliberal, inobstante, como norma e texto não se confundem, ensinam os jus-filósofos, alguns políticos venham tentando , ao longo dos tempos, assim conformá-lo.
Pois bem. Para suprir as inúmeras e diversificadas carências sociais acumuladas ao longo de décadas, é inolvidável que -- aqui, acolá ou em qualquer quadra da humanidade - o dever - poder tributário sempre foi e será indispensável, devendo ser serviço público, como segurança, diplomacia etc, indelegável, a qualquer título, para particulares.
É fato também axiomático que as liberdades públicas, arroladas no art 5º da CF, restabelecidas depois de mais de uma década de obscurantismo em nosso país, só podem ser plenamente fruídas com o acesso mínimo da população (mínimo vital) aos bens sociais como educação, saúde, habitação, previdência social, trabalho, lazer etc (arts 6º e 7º da CF). Via de conseqüência, se os direitos individuais ombreiam os sociais, ambos carecem, para serem satisfeitos das receitas tributárias, a melhor forma de distribuição de renda até hoje encontrada. Aí reside a grande importância dos tributos para o desempenho das atividades do Estado e existência da coletividade, sem os quais ambos perecem, sem dúvida.
Isso se afigura o bastante para demonstrar o quão nefasta e perniciosa se afigura dita Resolução do Senado, que permite ou faculta aos políticos (faculdade perigosíssima numa democracia representativa cada vez mais em crise moral, sobretudo) o traspasse da cobrança de suas dívidas ativas para instituições financeiras, que, evidentemente e sobretudo
Afrontar o Estado Social e Democrático de Direito, fulminando direitos individuais e sociais, agride mortalmente, por arrastamento , uma gama de princípios de envergadura maior , tais como, soberania, cidadania, dignidade da pessoa humana, bem assim os objetivos anelados no art 3º da Carta Política.
Não bastasse o que vem de ser exposto, é da nossa história longínqua a concentração de poderes que se verifica na União, claudicando sempre todas as reformas tributárias tendentes a melhor repartir o bolo das receitas entre os entes federados. Sabe-se que pouco se repassa aos Estados e Municípios, ficando a União com a maior e grande parte, notadamente com os recursos oriundos da seguridade social. Isso só por só já constitui, de há muito, um grande desalinho no equilíbrio desejável numa federação.
Agora, com essa malfadada Resolução, o Senado, órgão da União, pretende fazer caridade com o chapéu alheio, imiscuindo-se na administração tributária intestina dos entes federados, em benefício do capital especulativo
Ao assim proceder, como já mencionado, incorre também na violação ao princípio da tripartição de poderes inscrito no art 3º da CF, eis que o Senado, órgão do legislativo federal, usurpa competência , dos executivos tributários estaduais e municipais.
Demais disso, como também já assinalado, não se insere na competência do Senado dispor sobre a forma de arrecadação de tributos estaduais e municipais por meio de resolução, a teor do art 52. Nesse particular, cumpre advertir que mais um princípio restou ferido: o da legalidade, na medida em que dita resolução, ao arrepio da Carta Magna, inova irritamente a ordem jurídica criando direitos e obrigações não previstos constitucionalmente.
Por fim, valemo-nos do magistério do professor Diogo de Figueredo Moreira Neto1, para realçar a importância do princípio da eficiência administrativa, previsto no art 37,
"Mas o dado novo , desta constante motivação para tornar ao assunto, sobre o qual tantas vezes , equivocadamente , pensei ter esgotado minha limitada percepção e, em razão disso, também as mensagens que pudesse transmitir, só viria dez anos depois da promulgação da Constituição, com a auspiciosa introdução explícita do princípio da eficiência , pela Emenda Constitucional nº 19/98, com a decorrente possibilidade e, diria, até, necessidade, de situá-lo sistematicamante não apenas em referência à atuação administrativa das três tradicionais funções fundamentais, que são as dispostas no Título IV da Constituição - respectivamente nos Capítulos I, a Legislativa, II, a executiva, e III, a judiciária -mas estendido, por lógica interpretação extensiva , ao desempenho das funções essenciais independentes instituídas no Capítulo IV do mesmo Título, que por serem essenciais à justiça, conferindo-lhes, nesse passo, um especial relevo democrático"
Folgo que essa nefasta imoral e inconstitucional seja fulminada pelo STF o mais rápido possível, resgatando-se o império da lei e da Justiça.
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1Mutações do Direito Público, Renovar, 2006, pág 192
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*Procurador do Município de Salvador e advogado militante
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