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Quilombo da favela: o julgamento da ADIn 3.239

Arthur Cristóvão Prado e Rafael Wowk

Na semana anterior ao carnaval, o STF julgou a ADIn 3.239, que trata, justamente, da constitucionalidade do decreto que regulamenta o art. 68 do ADCT. Dessa forma, o Supremo discutiu a questão quilombola de maneira aprofundada, sendo cabível, então, a sua análise.

quinta-feira, 22 de março de 2018

Atualizado em 20 de março de 2018 13:59

Após baixar a poeira das polêmicas que o desfile da vice-campeã do grupo especial do carnaval carioca gerou, vale ressaltar outro ponto relevante. As polêmicas ofuscaram um aspecto importante de desfile e acabaram por descuidar de uma comemoração cabível. Na semana anterior ao carnaval, o STF julgou a ADIn 3.239, que trata, justamente, da constitucionalidade do decreto que regulamenta o art. 68 do ADCT. Dessa forma, o Supremo discutiu a questão quilombola de maneira aprofundada, sendo cabível, então, a sua análise.

A escola de samba, embasada em bibliografia impecável sobre o tema1, narrou a história da escravidão, começando pelos escravos egípcios, passando pelos babilônicos, gregos, romanos, eslavos e árabes para chegar à escravidão que assola(va) o Brasil: a escravidão negra nos canaviais, cafezais, minas...

Seguiu-se, então, com a justa homenagem aos abolicionistas no Setor 5. Homens e mulheres como Joaquim Nabuco, Castro Alves, André Rebouças, José do Patrocínio, Francisco de Paula Brito, Luís Gama, Eusébio de Queirós, Tobias Barreto, Chiquinha Gonzaga, Ruy Barbosa, Maria Firmina dos Reis e o Dragão do Mar foram representados em estandartes. A lei Áurea chega num tripé comemorativo, mas é seguido do "cativeiro social" - favelas, escravos rurais, trabalhadores informais... A liberdade não chega de fato aos libertos, como diz a escola:

"Apesar da assinatura da lei Áurea, não podemos compreender a abolição como uma conquista significativa aos libertos. A abolição não fora acompanhada por ações que promovessem a inserção do negro na sociedade. Dessa forma, a miséria e a desigualdade continuaram presentes no cotidiano dos libertos. Atualmente, vários problemas ligados à escravidão ainda estão por resolver nos campos social, político e econômico, contribuindo para que o trabalho escravo ainda seja uma realidade no Brasil, acometendo a liberdade do trabalhador e o mantendo submisso a uma situação de exploração."2

O desfile aconteceu em um ano importante e turbulento para os movimentos políticos de minorias raciais. Temas como trabalho escravo estiveram na ordem do dia, em razão da publicação da Portaria 1.129 do Ministério do Trabalho e Emprego ("["d]ispõe sobre os conceitos de trabalho forçado, jornada exaustiva e condições análogas à de escravo para fins de concessão de seguro-desemprego ao trabalhador que vier a ser resgatado em fiscalização do Ministério do Trabalho (...)"). Já no âmbito do Poder Judiciário, a decisão mais relevante sobre o tema, como já ressaltado, foi o julgamento de improcedência da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIn) 3.239, pelo Supremo Tribunal Federal, dando fim a uma disputa jurídica que se arrastava há quase 14 anos.

A ADIn tinha por objeto o decreto 4.887/03, editado pela Presidência da República para regulamentar o art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias3, que dispõe sobre a titularidade sobre a terra de remanescentes de comunidades quilombolas. Há dois pontos que devem ser destacados: a) a contraposição entre as duas principais posições surgidas no STF durante o julgamento; e b) as consequências da decisão para os direitos de quilombolas no Brasil. Para facilitar a exposição, começaremos abordando o segundo ponto, isto é, as consequências da decisão.

O decreto 4.887/03 constituiu inovação radical sobre o panorama normativo então presente. A norma anteriormente vigente sobre o tema era o decreto 3.912/01, que impunha requisitos muito mais restritos para o reconhecimento da titularidade da terra por quilombolas. Seu art. 1º impunha dois marcos temporais, que deveriam ser simultaneamente cumpridos (sem deixar claro como seria produzida prova tão difícil): o ano de 1888, em que foi promulgada a lei Áurea, e 5 de outubro de 1988, correspondente à promulgação da nossa Constituição da República. Seria necessário, então, que a comunidade demonstrasse sua permanência no território em dois momentos separados por um século, o primeiro deles situado 120 anos no passado. Além disso, não havia menção alguma aos critérios de identificação de um povoamento como quilombo.

O decreto 4.887/03, por sua vez, adota definição de "remanescentes das comunidades de quilombos" bem mais ampla ("os grupos étnico-raciais, segundo critérios de auto-atribuição, com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida"), não impondo qualquer marco temporal e deixando claro que a auto-atribuição será um critério de identificação das comunidades4 (art. 2º). O art. 2º, § 2º também determina a demarcação das terras "utilizadas para a garantia de sua reprodução física, social, econômica e cultural", e não apenas aquelas utilizadas para moradia.

O novo ato normativo mostra-se muito mais consentâneo com a realidade social das comunidades e com o estado da arte da antropologia. Sua exposição de motivos é fundamentada em farta bibliografia da área das ciências sociais5. Também no âmbito jurídico, houve manifestações, logo antes do decreto, no sentido da necessidade de reformulação dos critérios de titulação de quilombos. Em minudente estudo publicado pela Sociedade Brasileira de Direito Público (SBDP)6, sob a coordenadoria de Carlos Ari Sundfeld, defendeu-se que o critério da autodeclaração era o mais compatível com a definição contemporânea de quilombo:

"Por outro lado, o critério a ser seguido na identificação dos remanescentes das comunidades quilombolas em si é também o da "autodefinição dos agentes sociais". Ou seja, para que se verifique se certa comunidade é de fato quilombola, é preciso que se analise a construção social inerente àquele grupo, de que forma os agentes sociais se percebem, de que forma almejaram a construção da categoria a que julgam pertencer. Tal construção é mais eficiente e compatível com a realidade das comunidades quilombolas do que a simples imposição de critérios temporais ou outros que remontem ao conceito colonial de quilombo".

A consequência da edição desse novo decreto foi a ampla expansão dos processos de titulação de terras ocupadas por remanescentes de comunidades quilombolas no Brasil. Até o momento de redação deste artigo, haviam sido reconhecidas pelo Estado (ou seja, pelo menos certificadas, ainda que não ainda tituladas) 2.422 propriedades, segundo informações da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial da Presidência da República - SEPPIR7.

Assim, uma eventual decisão de procedência da ADIn 3.239 poderia, potencialmente: a) ocasionar a repristinação do decreto 3.912/01, que adotava um conceito colonial de quilombo, exigindo a demonstração de existência desde a promulgação da lei Áurea; b) em não havendo modulação de efeitos, colocar em xeque quase 2500 terras quilombolas tituladas ou em processo de titulação.

É de se comemorar, então, que não tenha sido essa a decisão do STF.

O primeiro voto proferido no âmbito da ação, em abril de 2012, foi de autoria do ministro Cézar Peluso, então seu relator, e foi o único pela procedência total. O ministro entendeu que o decreto seria inconstitucional formal e materialmente. A inconstitucionalidade formal residiria no fato de que o decreto regulamentaria, diretamente, um artigo da Constituição (melhor dizendo, do ADCT, mas com status constitucional), o que seria impróprio a essa espécie normativa, destinada a regulamentar leis. As inconstitucionalidades materiais seriam várias, abarcando desde o critério da autodeclaração até a discrepância do conceito de quilombola que o ministro entendia poder ser extraído do texto constitucional, ou seja, "aqueles que, tendo buscado abrigo nesses locais, antes ou logo após a abolição, lá permaneceram até a promulgação da CF/88".

O julgamento foi suspenso por pedido de vista da min. Rosa Weber, que, na sessão plenária de 25 de março de 2015, inaugurou divergência, proferindo voto pela total improcedência da ação. Para a ministra, o decreto não padece de qualquer inconstitucionalidade formal porque, sendo o art. 68 do ADCT - do qual ele extrairia sua validade8 - uma norma de eficácia plena e aplicação imediata. A ministra também entendeu pela plena constitucionalidade material. O julgamento foi então novamente suspenso em razão de pedido de vista do ministro Dias Toffoli.

Na sessão do dia 9 de novembro de 2017, o ministro proferiu seu voto pela procedência parcial da ação, unicamente para conferir interpretação conforme ao art. 2º, § 2º, do decreto 4.887/03, para fixar o marco temporal de 1988 para que seja aferida a ocupação das terras pelos quilombolas. Para o ministro, em síntese, o art. 68 do ADCT, estando situado entre as disposições transitórias da Constituição, tinha por objetivo resolver uma situação existente quando da promulgação da Constituição, isto é, a titulação de terras quilombolas, e não previa sua extensão futura. Assim, só fazia sentido titular os quilombos que existissem em outubro de 1988; quilombos criados futuramente fugiriam ao escopo da norma. Com pedido de vista do min. Edson Fachin, o julgamento foi novamente suspenso.

Na sessão do dia 8 de fevereiro de 2018, o julgamento foi concluído. O ministro Fachin, em seu voto-vista, argumentou que não haveria desnível de eficácia entre o ADCT e o restante da Constituição, a justificar a imposição de marco temporal. Além disso, à diferença do que ocorre com os indígenas, os quilombolas não receberam, antes da Constituição de 1988, qualquer proteção normativa especial, tendo ficado em uma espécie de limbo jurídico.

O julgamento concluiu-se naquela sessão, tendo acompanhado a divergência da ministra Rosa Weber os ministros Edson Fachin, Roberto Barroso, Ricardo Lewandowski, Luís Fux, Marco Aurélio (com a ressalva de seu entendimento pelo não conhecimento da ação), Celso de Mello e Cármen Lúcia. Votou pela adoção do marco temporal o ministro Dias Toffoli, e pela procedência total os ministros Gilmar Mendes e Cézar Peluso.

Voltando ao desfile, o paralelo dos quilombos com as comunidades e dos quilombos com as escolas surgiu já na comissão de frente, demonstrando a importância da questão no amplo debate sobre as questões raciais no Brasil. O carro abre-alas foi o "Quilombo Tuiuti", justificado da seguinte forma pela escola:

"Um quilombo e uma comunidade tem muito em comum. Ambos são lugares de resistência e abrigo. E só existe um quilombo onde há opressão, exclusão. Com uma estética inspirada nas fortificações de tribos africanas, o abre-alas traz um imagético Quilombo Tuiuti, guardado por grandes rinocerontes que simbolizam a força da África e ladeado por máscaras tribais para espantar os maus espíritos. Ele representa o sentimento de luta do povo da comunidade e a ancestralidade guerreira presente em cada morador do morro do Tuiuti ou componente do Paraíso do Tuiuti que tem sua escola de samba como um bastião de orgulho e identidade."9

Então, apesar do destaque dado à expressão democrática de críticas, o desfile tratou primordialmente da questão racial e merece ser comentado nessa perspectiva, ainda mais logo após a recente decisão do STF que contribuiu efetivamente rumo à concretização dos mais caros direitos fundamentais.

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1 As referências citadas vão do clássico "O Abolicionismo" de Joaquim Nabuco, aos estudiosos contemporâneos do tema, como Rodrigo Garcia Schwarz e o professor de Harvard Orlando Patterson.

2 Disponível em clique aqui p. 182.

3 "Art. 68. Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos."

4 Mas não o único. Atos normativos de hierarquia inferior, como a Instrução Normativa 57, do INCRA, deixam claro que a autodeclaração é ponto de partida, devendo ser complementado por estudos sociais e antropológicos, produzidos no âmbito do processo de certificação de que participam o próprio INCRA e a Fundação Palmares.

5 Disponível em clique aqui. Acesso em 18 de fevereiro de 2018.

6 SUNDFELD, Carlos Ari (org). Comunidades Quilombolas: direito à terra. Outubro de 2002, pp. 69-70, disponível em clique aqui, acesso em 18.02.2018.

7 Disponível em: clique aqui, acesso em 18.02.2018.

8 Convém mencionar, aqui, que uma outra tese sustentaria a validade do decreto, ainda que a impossibilidade de regulamentação direta da Constituição fosse reconhecida: o Brasil internalizou a Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que também rege a questão das populações tradicionais. Em se tratando de dispositivo integrado ao ordenamento jurídico brasileiro, ele poderia, então, dar sustentação ao decreto. Essa tese foi defendida, por exemplo, pela Advocacia-Geral da União.

9 Disponível em clique aqui p. 187

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*Arthur Cristóvão Prado é advogado da União. Atua no contencioso estratégico da União junto ao STF.

*Rafael Wowk é advogado do escritório Ayres Britto Consultoria Jurídica e Advocacia.

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