Processualistas e "materialistas" na arbitragem- imbricação e não concorrência
Generalizações sempre são superficiais e simplistas na sua utilização, mas pode ser dito que encontramos árbitros com duas formações distintas, as quais os levam a agir dentro de uma arbitragem com olhos e coração de certa forma viesados na apreciação dos fatos e nas orientações que deverão por eles serem adotadas.
terça-feira, 20 de março de 2018
Atualizado em 16 de março de 2018 12:51
O instituto da arbitragem está desde algum tempo definitivamente radicado no direito brasileiro para o fim da solução de conflitos no campo dos direitos patrimoniais disponíveis, mormente quando se trata da arbitragem institucional, aquela que é conduzida no seio de uma câmara ou centro especializado em oferecer serviços nessa área.
Como sempre, nem tudo são rosas, lembrando-se de que, por mais belas, coloridas e perfumadas, seu caule apresenta espinhos que ferem os dedos dos seus aficionados. E na arbitragem muitos espinhos foram eliminados ao longo da experiência arbitral, restando outros ainda para serem extirpados. Isto jamais acontecerá totalmente, de forma que a experiência na sua adoção não venha a "ficar sem graça", deixando como, sempre acontece muitas vezes, os usuários em suspense, sem saber que surpresa poderá vir de repente de qualquer lado. Das boas e das más.
Generalizações sempre são superficiais e simplistas na sua utilização, mas pode ser dito que encontramos árbitros com duas formações distintas, as quais os levam a agir dentro de uma arbitragem com olhos e coração de certa forma viesados na apreciação dos fatos e nas orientações que deverão por eles serem adotadas. Nesse sentido dois grandes times são encontrados: os dos processualistas e o dos materialistas puros, nos quais predomina um desses dois qualificativos. Claro, existem nuances, mas colocados em uma balança de precisão se notará quase sempre alguma inclinação em favor de um dos dois lados. Como o centro entre esses dois polos sempre representará a perfeição, os árbitros deverão continuamente se autopoliciar, para não verem a sua índole jurídica interna prejudicar a formação do seu convencimento.
Ora, processualistas serão aqueles árbitros cuja orientação mental está formada a partir de uma visão nascida de sua familiaridade com o Código de Processo Civil, em sua vida profissional diária, tenha ela surgido da vivência como advogado ou como acadêmico, ou as duas coisas juntas. Sabemos que o CPC não informa a arbitragem, exceto por alguns dispositivos de sua versão mais recente ou quando do recurso à analogia, nos momentos em que outras portas não existem, por meio das quais possa ser encontrada uma saída para algum problema difícil na arbitragem.
É evidente que os princípios fundamentais do acesso à Justiça fazem parte naturalmente da arbitragem e se encontram agasalhados na lei própria e nos regulamentos das entidades de arbitragem. Falamos, evidentemente, do devido processo legal, da imparcialidade do árbitro, do contraditório e da ampla defesa, da igualdade e da lealdade entre as partes, da livre investigação e apreciação das provas, do impulso processual/arbitral, da motivação das decisões arbitrais, etc. Quando eles não são atendidos o processo ficará mortalmente viciado.
Do seu lado, os "materialistas" sempre pensam no predomínio absoluto do conteúdo sobre a forma. Quer dizer, na busca da solução a forma processual representa um óbice a ser superado, serva subserviente que deverá ser ela em favor do direito substantivo. Este, afinal de contas, é a fonte na qual a decisão deverá se abeberar na busca e na aplicação da justiça por meio da sentença arbitral. Nem tanto ao mar e nem tanto à terra, diria alguém. Há de se estabelecer um equilíbrio entre as duas posições, não se aceitando que os "materialistas" pretendam diminuir a importância do Direito Processual pela alegação de que este é meio e não fim. Sabe-se, isto sim, que o direito material sem o atendimento da segurança jurídica na busca da justiça, poderá ser completamente iníquo na sua aplicação. Que o diga o acusado que somente confessou o crime porque foi violentamente torturado, inexistente qualquer prova de sua conduta criminosa disponível para o acusador.
Atente-se para o fato de que os árbitros quando aceitam uma indicação para tal devem avaliar se estão preparados para a solução da questão do ponto de vista material, olhando para o universo jurídico dentro do qual deverá atuar. Não será desdouro recusar uma arbitragem quando perceber que ela transcorrerá em um campo do Direito Comercial alheio ao seu conhecimento mais profundo. Esse ramo do direito é tão vasto que o galho da árvore jurídica que a ele corresponde revela-se tão grosso que quase rivaliza com o próprio tronco. E não há comercialista por mais versátil e estudioso que seja capaz de dominar todas as áreas compostas pelos mais diversos micro sistema do Direito Comercial. E deve ser reconhecido, infelizmente, que nesse campo também está grassando uma super especialização, quando, por exemplo, se dá o caso de que um profissional conhece de forma profunda apenas o tipo societário com o qual mais atua em sua vida profissional, deixando até mesmo de ter conhecimento dos princípios gerais desse mesmo micro sistema.
No sentido acima - abrindo-se parênteses -, a experiência deste autor tem mostrado que frequentemente a solução das questões apresentadas para decisão não se encontra em um determinado artigo de lei ou de regulamento, mas na seara de princípios fundamentais da área em questão ou do próprio direito de forma mais ampla. E quanto à teoria geral, ela "djá" era no seu ensinamento das faculdades de direito, nas quais predomina uma malfadada antecipação de especializações, combinada com a liberdade maior ou menor do estudante na montagem do seu currículo acadêmico. Assim, muitas vezes, por conveniência própria e pela ausência de opções na grade curricular, os alunos terminam por cursar uma mixórdia de matérias desconexas umas em relação às outras. Não haverá chacoalhão na cabeça desse aluno que possa organizar os seus conhecimentos, pois os espaços em branco estão presentes e de preenchimento impossível de ser feito. A não ser começar do zero, passando a estudar tudo de novo, com ordem e progresso. Afinal de contas, Roma não se fez em um dia, disse um empreiteiro conhecido.
Vistos esses dois planos, têm sido notadas críticas segundo as quais os processualistas são acusados de sempre procurarem uma pedrinha no sapato processual do caso para o resolverem sem ser necessário encontrar o fio da meada inerente à questão fundamental, que muitas vezes se revela um osso petrificado de um dinossauro extinto há milhões de anos: muito duro de roer.
Em contrapartida existem aqueles que acusam certos árbitros de deixarem de lado os princípios processuais (o que é mais raro) ou os relativizarem, de forma a que resolvam o problema de fundo, que pode ser para eles de apreciação mais clara e mais direta. Dessa forma, certas fraquezas processuais cederiam o seu lugar ao que verdadeiramente apresentaria, qual seja, o valor a ser buscado em uma arbitragem, isto é, a justiça em favor da parte que tem razão.
Sem dizer que somos partidários gratuitos dos "materialistas", somos obrigados a reconhecer que, infelizmente em muitos processos arbitrais, alguns advogados das partes procuram explorar ou até mesmo "plantar" certos problemas de natureza processual nos quais desejam enredar os árbitros que terão imensa dificuldade em encontrar a saída. É um aspecto altamente negativo na atuação arbitral e também indesejável, mas quem atua nesse campo sabe que ele está presente. Essa atuação de uma ou de ambas as partes claramente fere os próprios princípios processuais cuja relação foi vista mais acima.
Os remédios estão nas mãos dos árbitros que deles não podem se alhear, sob pena de não atenderem o dever que assumiram quando aceitaram a sua indicação. Um deles, bem amargo e em relação ao qual existe certo receio quanto à sua aplicação está na cominação de multa para a litigância de má-fé. Mas, muitas vezes, quando se nota que uma das partes começa a provocar situações processuais indesejáveis, não restará outra alternativa, senão a de aplicar tal penalidade, caso contrário a parte inocente será grandemente prejudicada pelo indesejável alongamento do feito e pelo risco de se abrir uma porta para que, no futuro, o provocador siga para o Judiciário com o intuito de alcançar a anulação da sentença.
Outro remédio será o de cortar o mal pela raiz, determinando-se, por exemplo, o desentranhamento do processo de petições extemporâneas e abusivas, frequentemente repetitivas, as quais voltam muitas vezes ao mesmo fato e a algumas antigas acusações dentro do processo arbitral que já foram resolvidas pelo tribunal arbitral no passado, o que representa, portanto, matéria preclusa.
Vamos mais longe, enriquecendo o raciocínio acima. Tem se visto que o direito de peticionar pode ser feito de forma abusiva, quando as alegações de uma das partes e seus pedidos se estendem em demasia e fora do contexto do caso, trazendo para os autos temas estranhos ao feito. Isto exigirá do lado dos árbitros a necessidade de se pronunciar a respeito pela negativa do atendimento dos pleitos indevidos, com perda de tempo precioso que deveria ser utilizado para o estudo e solução das verdadeiras questões sob a sua jurisdição.
Pedidos de provas sem interesse real para o caso têm representado outro meio de procrastinar um feito e de torná-lo muitas vezes extremamente custoso para a outra parte, que se vê sem condições de atender as despesas correspondentes e será prejudicada na defesa dos seus interesses. Em tais situações o tribunal arbitral não pode ficar à mercê da parte que se utiliza indevidamente do direito de provar as suas alegações, quando o faz de forma abusiva, não podendo ser tolerada tal prática com base no receio de que a negativa ao pedido feito poderá ensejar uma futura nulidade do processo. Se os árbitros têm plena convicção da inutilidade de uma prova pericial, por exemplo, devem negá-la de forma justificada, para tanto tendo a prerrogativa de exigir que sua necessidade seja claramente justificada pela parte que a requer, dando-se todo o direito à outra de contestá-la.
Diante desses aspectos, não pode haver condescendência nem de processualistas, nem de "materialistas", pois dentro da caracterização da posição de árbitro encontra-se o estabelecimento legal no sentido de que ele é juiz de direito e de fato em relação ao caso para o qual foi assim investido. O processo arbitral não pode se tornar viciado pela ação de uma parte que age de má-fé.
Enfim, vamos somar esforços, processualistas e "materialistas", procurando ter uma mente aberta para dar lugar a um novo aprendizado. Como dizia o querido e saudoso professor Oscar Barreto Filho aos seus alunos: "A ignorância é um estado provisório", significando que a cada dia se deve aprender ao menos alguma coisa nova. Claro, para confirmar a regra, há ignorantes eternos, como sabemos em relação a certos políticos.
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*Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa é sócio do escritório Duclerc Verçosa Advogados Associados e Professor Sênior do Departamento de Direito Comercial da Faculdade de Direito da USP.