O dolo eventual nos crimes de trânsito
Em razão do princípio da confiança, todos que respeitam a legislação em vigor podem esperar que o outro igualmente as respeite.
domingo, 4 de março de 2018
Atualizado em 2 de março de 2018 12:54
Há nove anos foi amplamente noticiada, pela imprensa nacional, a notícia de que um então deputado estadual, pelo Paraná, envolveu-se em um gravíssimo acidente automobilístico:
"(...) Na madrugada de 7 de maio de 2009, o ex-parlamentar matou os estudantes Vítima A, de 26 anos, e Vítima B, de 20 anos, ao dirigir alcoolizado e em alta velocidade. Então deputado pelo PSB, ele estava a 170km/h em uma via cujo limite é de 60 km/h. O carro dele descolou do chão e aterrissou sobre o Honda Fit onde estavam as vítimas. Com o impacto, Vítima A teve cabeça decepada, e Vítima B, o corpo partido ao meio. Na época do acidente, o então parlamentar estava com a habilitação suspensa e acumulava 30 multas, das quais 23 eram por excesso de velocidade. Entre 2003 e 2009, ele somou 130 pontos na carteira". (sic - os nomes das vítimas e o do acusado foram preservados)1.
Após a devida apuração dos fatos, o acusado foi denunciado como incurso nas penas dos crimes de homicídio doloso (são duas as vítimas, portanto, o acusado praticou dois crimes) e não nas penas do artigo 302 do Código de Trânsito Brasileiro - CTB (homicídio culposo na condução de veículo automotor), razão pela qual o réu foi submetido a julgamento pelo Tribunal do Júri e condenado pelo duplo homicídio com dolo eventual a nove anos e quatro meses de prisão2. Poderá, no entanto, permanecer e recorrer em liberdade, pois a execução da pena depende da confirmação pelo tribunal colegiado de 2º grau.
Mas, havendo na legislação especial (CTB) uma conduta específica para quem provoca morte de outrem, em razão de acidente automobilístico, por qual razão o acusado pode vir a ser condenado por homicídio doloso, previsto no artigo 121 do Código Penal?
Preliminarmente, tem-se que a conduta tipificada no artigo 302 do CTB regula uma situação bastante específica: o agente, mediante imprudência, imperícia ou negligência, provoca um acidente automobilístico que, por sua vez, ocasiona lesões corporais na vítima; lesões estas que são a causa de sua morte.
Como se vê, o tipo penal exige que o agente atue de forma culposa, violando um dever de cuidado que a todos é imposto: por exemplo, o agente, que não ingeriu bebida alcoólica e conduz seu veículo automotor respeitando o limite da velocidade permitida na via, decide por não parar no semáforo vermelho e, ao ingressar no cruzamento, acaba por abalroar o veículo que por ali corretamente trafegava pela via perpendicular e causa ferimentos ou morte ao condutor.
É mais evidente que, em razão do princípio da confiança, todos que respeitam a legislação em vigor podem esperar que o outro igualmente as respeite. No exemplo, a vítima que passava pelo sinal verde confiava que o agente iria parar seu veículo no sinal vermelho, razão pela qual a reprovação da conduta do causador do acidente é notória.
Por outro lado, o artigo 121 do Código Penal prevê uma conduta bem genérica, exigindo apenas que o agente mate alguém.
Mas como a conduta do ex-parlamentar poderia se amoldar ao artigo 121 do Código Penal, já que se trata de um acidente automobilístico? Isto somente é possível porque existe, em nosso ordenamento jurídico-penal, a figura do dolo eventual: o agente assume o risco de cometer um crime que, embora não seja inicialmente desejado, é previsível e por ele, agente, aceito, por absoluta indiferença quanto à produção do resultado.
Neste caso, o agente não deseja, inicialmente, matar alguém. Todavia, ao conduzir seu veículo nas circunstâncias exemplificadas, o agente revela ter plena consciência de que, agindo daquele modo, poderá causar a morte de alguém (previsibilidade). E, quando opta por prosseguir com sua conduta, acaba por demonstrar sua completa indiferença quanto à possibilidade da produção do resultado morte, ou seja, ele age com dolo eventual.
Portanto, o fato de que, no caso ora estudado, o agente trafegava em velocidade quase três vezes superior à máxima permitida, embriagado e com a Carteira Nacional de Habilitação vencida, denota, por si só, sua total e completa indiferença quanto às consequências de sua ação. Diante disso, parece ser evidente a caracterização de dolo eventual.
Não obstante, muito embora não seja o móvel do presente estudo, há que se indagar: mas poderia o agente ter agido com culpa consciente?
Em apertada síntese, a culpa consciente ocorre quando o agente prevê o resultado, mas acredita, sinceramente, que ele não ocorrerá. Como clássicos exemplos, temos o atirador de elite da polícia que, após anos de serviço na elite do grupamento, depara-se com uma situação já por ele enfrentada inúmeras vezes: um criminoso que faz uma vítima refém. Tendo a oportunidade do chamado "tiro limpo", pois não há nenhum obstáculo entre ele e o infrator, bem como constatando condições climáticas ideais para acertar o alvo, o atirador efetua o disparo, mas vem a atingir a vítima, que acaba falecendo em decorrência do projétil que a acertou. Verdadeiro erro na execução.
De igual modo, um experiente caçador que se depara com o seu colega próximo ao animal caçado e, acreditando convictamente na precisão do tiro, efetua um disparo, que acaba atingindo o amigo, que vem a falecer.
Em ambos os casos, é forçoso destacar, o agente não age com indiferença na produção do resultado, mas sim com plena convicção de que o evento morte jamais ocorrerá, uma vez que todas as cautelas são tomadas pelos agentes, que, nos dois exemplos supracitados, poderão responder por homicídio culposo, na modalidade de culpa consciente.
Nada obstante, não parece ser esse o caso noticiado e ora em foco. O agente não adotou nenhuma medida que pudesse evitar o resultado, conduziu seu veículo em velocidade muito superior à máxima permitida e, não fosse suficiente, ingeriu bebida alcoólica antes de dirigir. Estas circunstâncias evidenciam a completa indiferença quanto à produção do resultado morte; jamais a convicção de que ele não ocorrerá.
E, mantendo nesta linha de pensamento, indaga-se, ainda: se o direito penal exige, dentre outros requisitos, que o agente tenha a potencial consciência da ilicitude de sua conduta, isto é, tenha o conhecimento leigo e profano de que pratica algo contrário ao direito, como imputar os crimes de homicídio ao agente que estava embriagado?
Em síntese, o que permite esta imputação é a teoria da Actio Libera In Causa (ação livre na causa), definida pela doutrina como sendo aquela em que o agente, livre e conscientemente, coloca-se em estado de inimputabilidade (ingere bebida alcoólica ou faz uso de droga ilícita) e, ao depois, vem a cometer um crime. Ora, o agente que, voluntariamente, se coloca nesta situação não pode, após a prática, alegar inconsciência quanto à ilicitude de sua conduta.
Não há que se confundir, todavia, com a chamada embriaguez pré-ordenada: nesta, o agente ingere bebida alcoólica (ou faz uso de droga ilícita) para perpetrar o crime, isto é, a embriaguez atua como um facilitador, como um rompedor dos freios morais do agente e, assim, fará com que ele responda pelo crime cometido na forma agravada (artigo 61, inciso II, letra "L", do Código Penal).
Então, a distinção é simples: em um caso, o agente busca apenas beber ou usar a droga ilícita, mas não deseja praticar o crime, sendo que o ilícito vem a ser cometido logo após (em confraternização, o agente bebe com os colegas de trabalho e, por estar bêbado, assedia sua funcionária, por exemplo). De outro lado, se o agente beber para praticar o crime (criar coragem, por exemplo), responderá pelo crime praticado agravado (agente bebe para poder estuprar, roubar, matar etc, responderá por estupro, roubo, homicídio, com a agravante do citado artigo 61 do Código Penal).
Mas, por um jeito ou por outro: a responsabilização penal só é possível porque a teoria da Actio Libera in Causa obriga a retroatividade da análise da potencial consciência da ilicitude do agente: ao invés de ser feita no momento da conduta, será realizada no momento em que ele, livremente, ingeriu a bebida alcoólica.
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1 Após nove anos e 34 recursos, Carli Filho vai a júri por duplo homicídio.
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*Eudes Quintino de Oliveira Júnior é promotor de Justiça aposentado, mestre em Direito Público, pós-doutorado em Ciências da Saúde. Advogado e reitor da Unorp.
*Antonelli Antonio Moreira Secanho é assistente jurídico no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, bacharel em Direito pela PUC/Campinas e pós-graduação "lato sensu" em Direito Penal e Processual Penal pela PUC/SP.