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A responsabilidade penal dos pais perante os filhos incapazes, Eudes Quintino e Antonelli Secanho

A responsabilidade penal dos pais perante os filhos incapazes

É claro que os operadores do Direito, no caso concreto, valendo-se das informações constantes dos autos, é que poderão realizar o juízo de subsunção do fato à norma, caso entendam tratar-se de crime.

domingo, 18 de fevereiro de 2018

Atualizado em 16 de fevereiro de 2018 13:06

Noticiou-se, recentemente, o caso de uma menina de nove anos de idade que caiu do terceiro andar do prédio em que vivia, porque "Segundo a Polícia Militar, a garota e os irmãos, de 10 e 11 anos, foram deixados no apartamento pela mãe, que estava trabalhando no momento do acidente. As crianças contaram que tentavam sair pela janela do quarto usando uma corda feita com lençóis amarrados.

Ainda de acordo com a PM, a irmã mais velha disse que os três queriam fugir de uma vizinha, que havia discutido com a mãe delas no domingo (10) e as ameaçou na manhã desta segunda-feira. A mulher, inclusive, danificou a porta do apartamento da família com um pedaço de pau"(sic)1.

Desta forma, indaga-se: há que se falar em responsabilização penal da genitora da criança acidentada?

Prima facie é forçoso destacar que, como é notório, no campo da ética e da moral, cabe ao responsável o cuidado, a guarda e a vigilância de pessoa que esteja sob sua autoridade, justamente porque quem não pode (ou não consegue) enfrentar os fatos da vida de modo autônomo, reclama proteção especial de quem possa e a ele esteja vinculado. E, na seara jurídica, a proteção também é exigida, de modo que, para o Direito Penal, a conduta do responsável jurídico que deixa de fornecer o cuidado necessário para quem dele dependa, abandonando-o, adequa-se, em princípio, ao crime tipificado no artigo 133, caput, do Código Penal:

"Art. 133. Abandonar pessoa que está sob seu cuidado, guarda, vigilância ou autoridade, e, por qualquer motivo, incapaz de defender-se dos riscos resultantes do abandono:

Pena - detenção, de 6 (seis) meses a 3 (três) anos."

Cumpre salientar o interessante debate doutrinário acerca do alcance do verbo abandonar2: é necessário um distanciamento físico entre o agente e a vítima que, por sua vez, se vê diante de uma situação de perigo decorrente justamente do abandono? Ou este distanciamento é prescindível, bastando que o agente não forneça o cuidado, a assistência, o socorro devido e que, diante desta omissão, a vítima esteja diante de uma situação de perigo?

Não há um entendimento sedimentado na doutrina, sendo certo que juristas mais positivistas exigirão o distanciamento entre agente e vítima, pois o verbo do artigo 133 do Código Penal é claro e, como é sabido, é vedada a interpretação extensiva em desfavor do réu. Por outro lado, juristas que seguem uma linha de pensamento mais "contemporânea", entendem que este distanciamento é prescindível, desde que o ofendido seja colocado em uma situação de perigo, decorrente da falta de cuidado do agente.

Mas qual posição adotar? Parece que a segunda posição se confunde bastante com o dever de agir (artigo 13, § 2º do Código Penal): um pai, que está presente ao local, mas não socorre seu filho menor diante de uma situação de perigo, parece responder, caso haja algum resultado decorrente do perigo (como lesão corporal ou morte), pela violação do dever legal de agir - crime comissivo por omissão, previsto no artigo 13, § 2º, do Código Penal, circunstância que o levará a responder por lesão corporal ou por homicídio, justamente por desamparar o filho, deixando-o entregue à própria sorte.

De qualquer modo, não se pode perder de vista que, caso o agente abandone a vítima para que ela venha a falecer, pela falta de assistência, não há falar no crime de abandono de incapaz, mas sim no de homicídio, pois evidente o dolo de, efetivamente, matar alguém, sendo a falta de amparo o meio escolhido para tanto.

Ultrapassado este primeiro debate, segue-se na análise do artigo 133 do Código Penal.

Em que pese a doutrina traçar distinções entre os termos cuidado, guarda, vigilância ou autoridade, observa-se que, no caso concreto, por diversas vezes, todos estes termos estão presentes e acabam por fundir-se num só dever de cuidado, geral e irrestrito, que o responsável jurídico possui. Quer-se com isto dizer que, assim como os pais possuem estes deveres para com seus filhos, também os possui quem fornece carona para uma pessoa com necessidades especiais, bem como o médico em relação a seu paciente e até mesmo os cônjuges, entre si.

Ou seja, o Código Penal exige a existência de um paradigma comum: o vínculo jurídico, que pode se originar da lei, como é o peculiar relacionamento entre pais e filhos e os cônjuges entre si, de um contrato entre médico e paciente ou mesmo da conduta do agente, verbi gratia, como é o caso da pessoa que dá carona a alguém com necessidades especiais.

E este vínculo jurídico faz com que o crime de abandono de incapaz seja próprio: não é qualquer pessoa que pode praticá-lo, mas somente aquela que possui o dever jurídico de socorrer, de cuidar da vítima. Quanto ao sujeito passivo, será vítima do crime de abandono de incapaz qualquer pessoa que se encontre sob os cuidados, a guarda, a vigilância ou a autoridade do agente e que se mostre incapaz de reagir à situação de perigo a que fora exposta. Apesar do nomem iuris, não é necessária apenas a incapacidade civil da vítima, pois idosos capazes podem, perfeitamente, figurar como vítimas deste crime.

No mais, trata-se de crime de perigo concreto, sendo necessária a configuração de uma situação real de perigo, pois a mera incapacidade genérica de reação da vítima não faz presumir a existência do crime.

Assim, considerando apenas o que fora informado pela imprensa, é o que se destaca, na seara criminal, quanto ao crime em tese praticado. É claro que os operadores do Direito, no caso concreto, valendo-se das informações constantes dos autos, é que poderão realizar o juízo de subsunção do fato à norma, caso entendam tratar-se de crime. Uma situação é aquela prevista pelo legislador penal. Outra é a retratação de uma realidade social, familiar e econômica, que deve sim ser exaustivamente verificada.

Finalmente, a conduta em tese praticada pode trazer consequências, ainda, quanto ao poder familiar (direitos e deveres dos pais em relação aos filhos), outrora conhecido como pátrio poder. Como é sabido, o Código Civil, em seu artigo 1.634, traz a definição do poder familiar, conceito que é complementado pelo artigo 22 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).

Não obstante, o poder familiar não é absoluto e pode, em situações excepcionais, ser destituído, conforme artigo 1.638 do Código Civil e, principalmente, artigo 23, § 2º, do ECA:

Art. 23. A falta ou a carência de recursos materiais não constitui motivo suficiente para a perda ou a suspensão do poder familiar.

(...)

§ 2o A condenação criminal do pai ou da mãe não implicará a destituição do poder familiar, exceto na hipótese de condenação por crime doloso, sujeito à pena de reclusão, contra o próprio filho ou filha.

Portanto, ressalta-se a gravidade da conduta ora estudada e as diversas consequências que podem dela advir. É certa a realidade de inúmeros pais que, pela condição financeira ou mesmo fática, precisam deixar seus filhos em casa, sozinhos, sem ninguém para vigiá-los e ir para o trabalho. Há casos que já foram noticiados no sentido de que os pais chegam a amarrar os filhos para que possam mantê-los no interior da casa durante sua ausência.

Todavia, mesmo que os filhos menores precisem ficar sozinhos na residência da família, torna-se evidente que todas as medidas de proteção e de cuidado precisam ser tomadas, tais como trancar portas e janelas, principalmente em casos de apartamentos, e fornecer alimento suficiente para o período, dentre outras, sob pena de responsabilização, pois as crianças não têm condições de enfrentar, sozinhas, qualquer situação de perigo que possa surgir, fato que impõe um maior dever de cuidado dos responsáveis jurídicos.

Por fim, destaca-se que não foi abordada eventual responsabilidade do genitor das crianças, pois a notícia nada menciona a respeito da convivência do casal (divorciados, separados, casados, conviventes, etc.), fato que obsta a análise acerca da conduta de abandono por parte do pai da vítima.

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1 Menina de 9 anos usa lençol para fugir de apartamento e cai do 3º andar em Ribeirão.

2 Abandonner, verbo de origem francesa, derivado da expressão être à bandon, com o significado de estar à mercê de, de acordo com o Dicionário etimológico da língua portuguesa, de Antônio Geraldo da Cunha, Editora Lexicon, 2010.

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*Eudes Quintino de Oliveira Júnior é promotor de Justiça aposentado, mestre em Direito Público, pós-doutorado em Ciências da Saúde. Advogado e reitor da Unorp.







*Antonelli Antonio Moreira Secanho
é assistente jurídico no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, bacharel em Direito pela PUC/Campinas e pós-graduação "lato sensu" em Direito Penal e Processual Penal pela PUC/SP.



 

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