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O carnaval e a lei do xixi, por Eudes Quintino de Oliveira Júnior

O carnaval e a lei do "xixi"

Apesar da boa intenção legislativa, a fiscalização esbarrará em diversas dificuldades para o seu cumprimento.

domingo, 11 de fevereiro de 2018

Atualizado em 9 de fevereiro de 2018 14:01

A prefeitura municipal de São Paulo, em lei regulamentada pelo prefeito João Doria, permite que o agente municipal ou guarda civil aplique multa no valor de R$500,00 àquele que for flagrado urinando nas ruas, edificações, monumentos públicos ou diante de outras pessoas. Não são alcançados pela lei os moradores de rua, crianças, portadores de doenças mentais e quem sofrer de incontinência urinária, desde que se encontre num raio maior que 100 metros de distância de um banheiro químico.

Para tanto, ao ser abordado, o infrator deverá exibir documento de identificação e, em caso de recusa, tanto a Polícia Militar como a Guarda Civil poderão ser acionadas, além do que, para a comprovação do ato infracional, poderão ser utilizados aparelhos eletrônicos para a gravação.

E é interessante observar que, com os novos padrões e necessidades sociais, o arsenal legislativo vem se acentuando cada vez mais, fazendo com que seja encontrada uma lei para cada fato.  Assim, o cidadão, destinatário final do enunciado legal, passa a ser, obrigatoriamente, um fiel cumpridor do preceito estabelecido, sob pena da aplicação da penalidade prevista.

Percebe-se, no entanto, apesar da boa intenção legislativa, que a fiscalização esbarrará em diversas dificuldades para o seu cumprimento. Basta imaginar a paixão do brasileiro pelo carnaval, pela escola de samba ou pelo seu bloco preferido, pelo embalo e entusiasmo da festa, pela multidão que se movimenta de um lado para o outro, acompanhando o som e o ritmo incessantes e o gingado que provocam. O folião, ao sentir vontade de urinar, vai procurar o local mais próximo e, como de costume, irá desprezar a ida aos muitos banheiros químicos disponíveis e suficientes para atender à demanda. Não que queira desrespeitar a lei, mas tal comportamento faz parte do seu ritual de vida e nem está preocupado se sua conduta traz aborrecimento para outras pessoas ou até mesmo para a higiene do lugar. O que importa é retornar rapidamente para continuar a balada de Momo.

A legislação municipal, a bem da verdade, está cuidando de conduta já descrita no Código Penal como crime de ato obsceno, previsto no tipo penal do artigo 233: "Praticar ato obsceno em lugar público, ou aberto ou exposto ao público". Pena de detenção de três meses a um ano, ou multa.

"Ato obsceno, explica Silva em seu dicionário, é o que se mostra imoral e ofensivo ao decoro público."1 Já Pierangeli, com sua acentuada verve penalista, define como "aquele que atrita aberta e grosseiramente com o sentimento de pudor dos moradores de uma certa comunidade, num determinado momento de sua evolução".2 Pode-se dizer que o ato obsceno é representado por qualquer atitude impudica, com a potencialidade idônea de ferir o pudor  e os bons costumes do homo medius. Seria, num linguajar mais singelo, fazer determinada pessoa corar de vergonha e constrangimento pela cena assistida e recriminar o seu autor por ofender a praxe costumeira.

O sentimento de pudor, embutido no tipo penal, é variável e mutável e deve ser examinado de acordo com os costumes da época. As leis exercem um controle social, mas não transitam em espaços vazios e sim caminham lado a lado com os padrões morais de uma época.  Para bem interpretar a mens legis do legislador penal não se pode olvidar que o Código data de 1940 e conseguiu fôlego extra para atingir os dias atuais graças ao pensamento evolutivo que impera no Direito. O que era, por exemplo, ato obsceno à época de Getúlio Vargas não pode ser considerado como tal no presente, principalmente pela nova era de extrema tolerância e permissividade. Os índios nativos no Brasil praticavam a nudez com inocência, honestidade e modéstia, enquanto que os colonizadores trouxeram consigo o puritanismo que os obrigou a vestir à europeia, conforme se depreende do relato de Gilberto Freyre em sua obra Casa-Grande e Senzala.

Na comparação entre as duas infrações, uma de natureza penal e outra administrativa, fica evidenciado que o ato obsceno do Código Penal se distancia, e em muito, da conduta do folião de urinar na via pública, pois a prática demonstra que não age movido com a intenção de exibir o órgão sexual para os participantes do evento carnavalesco e sim de atender a uma necessidade fisiológica. Assim, não é difícil concluir que a lei municipal carrega uma mensagem mais condizente com a realidade social, deixando entender que a intervenção do órgão público carrega uma proposta que tem como objetivo medida essencialmente educativa ao introduzir bons modos, boas maneiras com a consequente utilização dos banheiros químicos, embora seja acompanhada de uma medida coercitiva para atingir seu intento, que também se faz necessária.

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1  Silva, De Plácido e. Vocabulário jurídico. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2004, p. 166.

2  Pierangeli, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro: parte especial (arts 121 a 234). São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005, p. 888.

 

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*Eudes Quintino de Oliveira Júnior é promotor de Justiça aposentado, mestre em Direito Público, pós-doutorado em Ciências da Saúde. Advogado e reitor da Unorp.




 

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