Inconstitucionalidade da aplicação do ITCMD para transmissão de ações de empresa localizada no exterior
Como transmitir a propriedade das ações de empresa sediada no exterior que tem a propriedade de bens localizados em Buenos Aires quando as herdeiras não possuem capacidade financeira para arcar sequer com o imposto de transmissão?
sexta-feira, 9 de fevereiro de 2018
Atualizado em 8 de fevereiro de 2018 13:10
Duas herdeiras argentinas, mãe e filha, desejam fazer, por meio de inventário e partilha, a transmissão de ações de sociedade em comandita por ações sediada em Buenos Aires. A empresa era de propriedade do autor da herança, pai e avô das herdeiras, respectivamente, que faleceu em São Paulo.
A empresa referida é proprietária de cinco imóveis em região nobre de Buenos Aires, sendo duas lojas, um estacionamento e dois apartamentos. Por variadas razões, as herdeiras não têm nenhuma possibilidade de arcar com as custas processuais do inventário e outras medidas processuais, de modo que obtêm o direito à gratuidade da Justiça e a recepção de provas documentais em língua espanhola sem necessidade de tradução via o exercício do direito garantido pelo Protocolo de Las Leñas, tratado firmado no âmbito do MERCOSUL.
Contudo, a gratuidade da Justiça não garante a desobrigação do pagamento do Imposto sobre a Transmissão Causa Mortis e Doações de Quaisquer Bens ou Direitos (ITCMD). Assim, como transmitir a propriedade das ações de empresa sediada no exterior que tem a propriedade de bens localizados em Buenos Aires quando as herdeiras não possuem capacidade financeira para arcar sequer com o imposto de transmissão?
A lei estadual 10.705/00, do Estado de São Paulo, prevê em seu artigo 4º, II, alínea "a" que, quando as ações são transmitidas ou liquidadas no território paulista, por mais que se refira a bem localizado no exterior, está configurada a hipótese de incidência do ITCMD. No caso das herdeiras argentinas, residentes em Buenos Aires, a incidência ocorreu quando da homologação de acordo entre elas e a inventariante nos autos do inventário.
Entretanto, a incidência do ITCMD, nesse caso, é inconstitucional. O art. 155, §1º, III, alínea "b", da Constituição Federal dispõe que para os Estados e o Distrito Federal exigirem o ITCMD sobre a transmissão sucessória dos bens localizados no exterior é necessário a edição, pela União, de lei complementar que regulará essa situação.
Assim, embora essa lei complementar ainda seja inexistente, o Estado de São Paulo editou a lei estadual 10.705/00, regulamentada pelo decreto estadual 46.655/02, para atender a hipótese tratada. Daí a inconstitucionalidade.
É competência privativa da União editar a lei complementar que institui o ITCMD para o caso presente. A antecipação por parte do Estado de São Paulo em editar lei ordinária para instituir essa previsão do ITCMD fere, por isso, a distribuição de competências entre os entes federados, e mesmo as normas de observação obrigatória do processo legislativo, tendo em vista o princípio da simetria.1
A lei complementar de caráter nacional serve para estabelecer normas gerais que balizarão a atividade tributária dos demais entes da federação. Essa é justamente a previsão do artigo 146, da Constituição Federal.2
Daí porque, por expressa previsão constitucional, não se pode entender que a edição da lei estadual 10.705/00 fundamentou-se no permissivo do art. 34, § 3º, do ADCT,3 pois este se refere às questões peculiares, aos assuntos locais do estado-membro, e não à regulação das diretrizes gerais de lei complementar que sequer existe.
Precedentes do Tribunal de Justiça de São Paulo vêm confirmando essa tese, cujo julgado paradigma é o incidente de inconstitucionalidade 0004604-24.2011.8.26.0000, que declarou a inconstitucionalidade do art. 4º, II, alínea "b" da citada lei.4
No caso específico das herdeiras argentinas, a sentença definitiva de mérito reconheceu a aplicação do incidente e entendeu por bem estender "as mesmas razões de tal acórdão podem ser estendidas à alínea "a" do inciso II do art. 4 da lei estadual 10.705/00", impondo a declaração de inconstitucionalidade incidental do dispositivo".5
Portanto, apesar da complexidade do caso, com envolvimento de inventário e partilha no Brasil a partir de ações de empresa sediada na Argentina, a jurisprudência paulista acertou na interpretação e aplicação do precedente de inconstitucionalidade da lei estadual que obriga o recolhimento do ITCMD sem previsão legal em âmbito nacional.
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1 CLÈVE, Clèmerson Merlin; KENICKE, Pedro Henrique Gallotti. Federalismo, centralização e principio da simetria. In: LEITE, George Salomão; LEITE, Glauco Salomão; SARLET, Ingo Wolfgang; STRECK, Lenio Luiz. (Org.). Ontem, os Códigos! Hoje, as Constituições!: Homenagem a Paulo Bonavides. 1ed. São Paulo: Malheiros, 2016, p. 76-90.
2 Art. 146. Cabe à lei complementar:
I - dispor sobre conflitos de competência, em matéria tributária, entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os municípios;
II - regular as limitações constitucionais ao poder de tributar;
III - estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, especialmente sobre:
a) definição de tributos e de suas espécies, bem como, em relação aos impostos discriminados nesta Constituição, a dos respectivos fatos geradores, bases de cálculo e contribuintes;
b) obrigação, lançamento, crédito, prescrição e decadência tributários;
c) adequado tratamento tributário ao ato cooperativo praticado pelas sociedades cooperativas.
d) definição de tratamento diferenciado e favorecido para as microempresas e para as empresas de pequeno porte, inclusive regimes especiais ou simplificados no caso do imposto previsto no art. 155, II, das contribuições previstas no art. 195, I e §§ 12 e 13, e da contribuição a que se refere o art. 239.
(...)
3 Art. 34. O sistema tributário nacional entrará em vigor a partir do primeiro dia do quinto mês seguinte ao da promulgação da Constituição, mantido, até então, o da Constituição de 1967, com a redação dada pela emenda 1, de 1969, e pelas posteriores. § 3º Promulgada a Constituição, a União, os Estados, o Distrito Federal e os municípios poderão editar as leis necessárias à aplicação do sistema tributário nacional nela previsto.
4 I - Arguição de inconstitucionalidade. A instituição de imposto sobre transmissão 'causa mortis' e doação de bens localizados no exterior deve ser feita por meio de lei complementar. Inteligência do art. 155, §1°, inciso III, Aline b, da Constituição Federal. II - O Legislador Constituinte atribuiu ao Congresso Nacional um maior debate político sobre os critérios de fixação de normas gerais de competência tributária para instituição do imposto sobre transmissão de bens - móveis/imóveis, corpóreos/incorpóreos - localizados no exterior, justamente com o intuito de evitar conflitos de competência, geradores de bitributação, entre os Estados da Federação , mantendo uniforme o sistema de tributos. III - Inconstitucionalidade da alínea 'b' do inciso II do art. 4o da lei paulista 10.705, de dezembro de 2000, reconhecida. Incidente de inconstitucionalidade procedente. (Relator(a): Guerrieri Rezende; Comarca: São Paulo; Órgão julgador: Órgão Especial; Data do julgamento: 30/3/11; Data de registro: 7/4/11).
5 Ação declaratória de inexistência de relação jurídica tributária 1002137-80.2017.8.26.0053, 15ª Vara da Fazenda Pública de São Paulo, Juiz Dr. José Gomes Jardim Neto, j. 30/1/18.
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*Marina Michel de Macedo Martynychen é advogada no escritório Clèmerson Merlin Clève - Advogados Associados.
*Pedro Henrique Gallotti Kenicke é advogado no escritório Clèmerson Merlin Clève - Advogados Associados.