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Execução provisória da pena é mitigar um direito fundamental

Admitir que seja possível a execução provisória da pena é mitigar um direito fundamental - o de liberdade - sem que a pessoa tenha sido considerada culpada.

terça-feira, 6 de fevereiro de 2018

Atualizado às 08:50

Nos últimos anos, temos visto que regras jurídicas que pareciam não deixar margem para dúvidas, passaram a ser solenemente afastadas com base em julgamentos morais e de conveniência - por vezes fazendo referência ao clamor social. E aqui se encontra a fragilidade do momento pelo qual a nossa democracia passa. É que uma das premissas básicas para manutenção do Estado Democrático de Direito é o papel contramajoritário do Judiciário: cabe a este Poder preservar a integridade e estabilidade do sistema jurídico - sobretudo das normas constitucionais - para fins de prevenir deliberações contingenciais. A questão é que isso não tem acontecido.

É possível afirmar que os papéis de todos os Poderes da República (e, portanto, não só do Judiciário) estão sendo colocados à prova. Ocorre que, ao revés do Legislativo e do Executivo, que estão passando por um momento de extremo descrédito e enfraquecimento junto à população, o Judiciário - a despeito de muitas vezes deslegitimado pela sociedade (refiro-me aqui especificamente ao STF) - está passando pelo teste do excessivo protagonismo.

O ponto sensível é que esse destaque acirra julgamentos ao sabor das circunstâncias - até para afastar o ônus social das deliberações contra a vontade da maioria naquele momento histórico. Mas, reitera-se: ao agir desse modo, o Judiciário afasta-se de sua função precípua que é garantir as regras do jogo. A técnica, portanto, é a saída. A aplicação do direito posto dá lugar à maior imparcialidade e trata-se de boa vacina contra críticas apaixonadas.

O recente entendimento do STF no sentido de que é possível a execução provisória da pena após a condenação em segunda instância é um exemplo de flexibilização de normas específicas sobre a matéria (presunção de inocência e limites à prisão) em favor de argumentos não jurídicos - a exemplo da situação de impunidade. O art. 5º, inc. LVII, da CF estabelece que "ninguém será culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória".

Mas o que significa trânsito em julgado? Essa expressão diz respeito - e isso é consenso no direito - à irrecorribilidade de determinada decisão. Logo, a norma constitucional dispõe que a pessoa apenas poderá ser considerada culpada quando não houver mais possibilidade de recorrer/rediscutir a decisão condenatória. Há quem argumente que não ser considerado culpado é diferente de não ser preso (aliás, esse foi um argumento do próprio STF). Contudo, veja que só se pode imputar um crime a alguém se caracterizada a culpabilidade, a qual será atestada - tão e somente - após o trânsito em julgado. Trata-se de uma regra clara, consoante visto.

Admitir que seja possível a execução provisória da pena é mitigar um direito fundamental - o de liberdade - sem que a pessoa tenha sido considerada culpada. Essa lógica vai na contramão dos limites até aqui conquistados em relação ao agir do Estado. Ainda que sem respaldo jurídico, preterem-se os direitos fundamentais em prol do punitivismo estatal. Observe-se que o próprio Código de Processo Penal (que não é exemplo de uma legislação avançada, muito pelo contrário!), estabelece em seu art. 283 que, com exceção das prisões cautelares, só será permitida a prisão em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado; ou seja, quando esgotada a possibilidade de recorrer daquela decisão. Neste ponto, o STF, mais uma vez ignorando o texto normativo, deu "interpretação conforme" para que fosse possível aplicar o entendimento sobre a possibilidade de execução provisória da pena.

A confirmação da condenação do ex-presidente Lula no segundo grau trouxe o tema novamente para o centro das discussões jurídicas. É que, pelo atual entendimento do STF - que destoa do texto legal -, pode haver a prisão logo após o esgotamento dos recursos no próprio ambiente do TRF-4; isto é, após o julgamento dos embargos de declaração. Ocorre que, em razão da visível inconstitucionalidade que incide sobre esse entendimento e dos excelentes votos divergentes que ficaram vencidos à época, tudo indica que a posição do STF pode mudar a qualquer momento para acolher uma interpretação consentânea com o nosso sistema constitucional.

Se vier essa mudança, que seja para ficar. Independente do caso que se esteja a julgar, a técnica é a saída. E nesse tema não há margem para dúvida: a Constituição brasileira impede a prisão antes do trânsito em julgado, - seja para Lula, seja para quem for.

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*Carol Clève é advogada, mestre em Ciência Política e especialista em Direito Administrativo. Professora de Direito Constitucional e Eleitoral do Centro Universitário Autônomo do Brasil - UniBrasil - e sócia do escritório Clèmerson Merlin Clève - Advogados Associados.

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