A cusparada cívica
Tapa na cara; bengaladas; agressões e até ofensas verbais devem ser substituídos pela cusparada, que poderá ser cívica, como a de Rogê; moral, quando nossa honra.
quarta-feira, 7 de fevereiro de 2018
Atualizado em 2 de fevereiro de 2018 18:19
Li, em um jornal, a descrição de um episódio pouco narrado pelos livros de história e que durante anos permaneceu debaixo da pá de cal lançada, primeiro pelas forças militares e, após a democratização esquecido pelos pesquisadores, historiadores e cronistas da recente vida política nacional.
Trata-se da destituição formal do presidente João Goulart. Destituição provocada e respaldada pelo golpe militar, e executada pelo Congresso Nacional. Melhor dizendo, executada pelo presidente do Senado Federal, Auro Soares de Moura Andrade.
Quem narrou o episódio foi o advogado Almino Afonso, que o assistiu. Ministro do Governo de João Goulart, Almino presenciou a sessão do Congresso, na qual Moura Andrade após comunicar que o presidente saíra de Brasília, declarou vaga a Presidência da República.
A declaração de vacância era indevida, portanto ilegal. O presidente Goulart não havia saído do território nacional. Estava em seu estado natal, o Rio Grande do Sul. Não obstante, em razão da vacância proclamada, deu-se posse ao vice presidente Ranieri Mazzili, que governou o país até a "eleição" do primeiro presidente militar, Marechal Castello Branco.
A indignição de alguns parlamentares pela atitude de Moura Andrade foi irrefreável. Segundo Almino, Tancredo Neves gritou "canalha, canalha" e o deputado paulista Rogê Ferreira chegou perto de Auro e lhe deu "duas cívicas cusparadas".
A reação de Tancredo e de Rogê e de muitos outros, não foi suficiente para impedir a ruptura constitucional e democrática. Ela, no entanto, demonstrou a preservação de um sentimento humano dos mais significativos : a indignação.
A decisão do presidente do Senado não necessitava de nenhuma análise aprofundada, para revelar o seu objetivo : um golpe para a ruptura do sistema político constitucional vigente.
Assim, a reação instantânea surgiu do sentimento de inconformismo, de indignação, que brotou da oportunista e falaciosa declaração de vacância do cargo.
A cusparada de Rogê Ferreira foi um literal desaguar da ira. Ira santa e líquida, se atingiu o rosto do algoz da democracia, não se sabe. Aliás, pouco importa, pois esse fato virou mero detalha. O importante foi a reação, a cusparada, pronta, imediata e pedagógica.
Não se prega uma cusparada no rosto de cada ser indigno. Assim fosse teríamos oceanos de cuspidas.
No entanto, a verdade é que os cidadãos antigos tinham mais saliva e se indignavam com mais frequência. Raras eram as casas que não possuíam uma "cuspadeira". Mas não era apenas o excesso de saliva que os fazia cuspir. Sentimentos de repulsa, raiva, e indignação os levavam a salivar com mais frequência do que em nossos dias.
Hoje, na minha opinião, cospe-se pouco. Parece que as redes sociais substituíram formas de reação a situações de contrariedade. Ofende-se, ataca-se sem conhecer as razões e os fatos devidamente, toma-se partido de forma irracional, meramente passional. Não se discutem ideias, não se perseguem ideais. Afirmações levianas e desprovidas de racionalidade substituíram as justas, necessárias e espontâneas manifestações de insatisfação e de desagrado.
A cusparada não necessita ser dirigida e muito menos atingir alguém fisicamente. Ela deve ter uma razão e um alvo que pode e deve ser imaginário. Cuspo por estar indignado com fulano de tal. Mas não precisa ser nele, apenas na sua imagem presente em meu pensamento. Pode ser no chão, em algum recipiente e de preferência em uma escarradeira se ainda existir alguma. Há, também, a cusparada mental. Ela não é exteriorizada, fica no plano do querer e do pensamento. Quero e penso estar cuspindo algo que me aborrece ou em alguém que meu alvo imaginário.
Desta forma, se estará exercitando uma das grandes faculdades do homem que é a indignação. Formas antigas foram ultrapassadas. Tapa na cara; bengaladas; agressões e até ofensas verbais devem ser substituídos pela cusparada, que poderá ser cívica, como a de Rogê; moral, quando nossa honra for atingida; de repúdio e de revolta quando a situação denotar ausência de justiça, de solidariedade, de humanidade e, nos dias de hoje, quando houver agressões à dignidade e à liberdade individuais por parte dos detentores do poder punitivo estatal. Deve-se cuspir mais, até como maneira de se aliviar o fígado congestionado pelo excesso de sapos impostos pela vida, ou melhor pelos homens.
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*Antônio Claudio Mariz de Oliveira é advogado da Advocacia Mariz de Oliveira.