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O ciclo vicioso da escravidão, até quando?

O povo negro permanece em situação de pobreza, sem perspectivas de políticas públicas inclusivas pelo presente governo, muito pelo contrário, houve retrocesso de direitos, consequentemente, possuindo menor possibilidade de exercer o poder, mantendo o ciclo vicioso em que se questiona até que ponto a escravidão foi extinta no Brasil.

terça-feira, 6 de fevereiro de 2018

Atualizado em 2 de fevereiro de 2018 14:33

A construção do mercado de trabalho brasileiro teve um de seus pilares manchado de sangue e suor, com a exploração do trabalho escravo. A utilização da mão de obra dos negros e a situação de tratamento destes como coisa estendeu-se por séculos, marcando nosso processo histórico. É necessário dizer que para esses seres humanos não lhes era concedida sequer a segurança física que o Estado apresenta como justificativa de sua constituição, deixando claro que os benefícios do contrato social não o pertence.

A partir de 1850, em razão da pressão internacional, iniciou-se, no Brasil, um gradual processo de extinção do trabalho escravo, com a edição da Lei Eusébio de Queiroz, que visava proibir a vinda de novos escravos para o Brasil pela via interatlântica. Na sequência, foram editadas a Lei do Ventre Livre e a Lei do Sexagenário, até a edição da lei 3.353 de 1888, que dizia extinguir o trabalho escravo no Brasil.

Ressalta-se que a edição de todas essas medidas não aconteceu em reconhecimento da humanidade dos negros, tampouco em reconhecimento da indignidade do labor exercido. Deu-se em cessão às pressões mercadológicas externas, que apontavam para a impossibilidade de crescimento das relações comerciais junto ao Brasil, dada a inexistência de mercado consumidor interno (se ninguém recebe remuneração, ninguém pode comprar). Além evidentemente do crescimento de uma economia e sociedade liberal, que possui como base a ausência de escravidão.

Com a proibição do uso de mão de obra escrava, a reificação dos afrodescendentes foi reafirmada, eis que a edição da Lei Áurea veio desacompanhada de quaisquer medidas sociais reintegrativas deste povo na sociedade. Ao contrário, iniciou-se um forte processo de marginalização. De um lado, trouxeram-se imigrantes europeus para realizar o trabalho remunerado outrora realizado pelos escravos negros; de outro lado, foi editada a Lei de Vadiagem, que criminalizava aqueles que, válidos ao trabalho, não exercessem atividade lícita de garantia de sua subsistência. Sendo evidente que o processo de construção de uma sociedade liberal não passava pela inclusão dos marginalizados, sendo esses, mão de obra excedente.

O conceito de escravo do século XIX caracterizava-se pelo trabalho forçado, privação da liberdade de locomoção, tratamento dos trabalhadores como propriedade, com a mercadorização destes, e pela falta de remuneração, cumuladas. Convencionou-se na sociedade atual tratar as situações assemelhadas como trabalho análogo ao escravo, a fim de reforçar a frágil crença de que a escravidão restou abolida há muito tempo, diminuindo-se a gravidade das formas modernas de escravização do trabalho.

Hodiernamente, o art. 149 do Código Penal brasileiro trata de tipificar a conduta de redução da pessoa à condição análoga à escrava. Traz, em consequência, o entendimento legislativo do que é a escravidão moderna, caracterizada pela submissão a trabalhos forçados, a jornada exaustiva, pela sujeição a condições degradantes de trabalho, ou pela restrição da locomoção do trabalhador, de forma isolada ou cumulada. São sutis as diferenças do trabalho escravo passado e da escravidão contemporânea. Dentre elas, estão os sujeitos, outrora, exclusivamente negros. Além disso, atualmente, para caracterizar-se o trabalho análogo ao escravo, não é necessária a manutenção de vigilância sobre os trabalhadores, sendo a principal característica do trabalho análogo ao escravo, retirada de direitos fundamentais da pessoa, mitigando ou excluindo sua dignidade.

Em 2017, diversas medidas foram editadas pelo governo brasileiro no sentido de dificultar a caracterização do trabalho análogo ao escravo e a manutenção do povo negro na situação de pobreza.

A portaria 1.129/17, editada pelo Ministro de Estado do Trabalho, reduzia as condições de trabalho análogo ao escravo às situações em que houvesse submissão a trabalho exigido sob a ameaça de punição, com uso de coação, isolamento geográfico do trabalho e manutenção de segurança armada com o fim de reter o trabalhador no local de exploração.

Além disso, a portaria previa uma série de recomendações para a formalização do auto de infração, dificultando-o, exigindo documentos que comprovassem a convicção do trabalho análogo ao escravo à prova de existência de segurança armada, sendo necessário comprovar, ainda, que a finalidade da manutenção desta segurança era alheia à proteção do imóvel. Teve a audácia, assim, de tentar retroceder o conceito de escravidão hodierna ao conceito de escravidão do século XIX, reduzindo as hipóteses de punibilidade previstas no Código Penal.

Neste sentido, podemos observar, ainda, que a edição da lei 13.467/17, responsável pela flexibilização das leis trabalhistas, igualmente, atua no sentido de ampliar a margem exploração da força de trabalho do empregado, ao mesmo tempo em que busca diminuir e enfraquecer os espaços coletivos de discussão, onde o trabalhador ganha força para lutar por seus direitos primordiais. Isto porque alterações como a possibilidade de diminuição dos intervalos intrajornadas, com ampliação da jornada de trabalho, a dissolução de férias com a possibilidade de maior fracionamento, possibilidade de contratação de mão de obra intermitente, possibilidade de realização de acordos para alterar o enquadramento do grau de insalubridade do local de trabalho e a ampliação das hipóteses de terceirização, outrora exclusiva para atividades meio e agora permissiva às atividades fins, dificultam a responsabilização de maus empregadores, ao mesmo tempo em que precarizam o trabalho.

A IN 139, editada pela Secretaria de Inspeção do Trabalho em 22 de janeiro de 2018, em seu artigo 6º dispõe sobre os requisitos caracterizadores do trabalho análogo ao escravo. Em seu artigo 7º, resume que a negação da dignidade do trabalhador e a violação de direitos fundamentais do trabalhador caracterizam o trabalho análogo ao escravo. Notório que as alterações da legislação trabalhista feitas no ano que passou, pelo poder de veto e sanção de um governo ilegítimo, fulminaram direitos constitucionais do trabalho, incluindo-se o princípio da vedação do retrocesso social, dificultando o combate ao trabalho escravo.

Portanto, no âmbito trabalhista, as mudanças legislativas mais recentes significam a banalização do combate ao trabalho análogo ao escravo, bem como a despreocupação de setores econômicos com a proteção a direitos fundamentais. Marca, ainda, a imposição de interesses pessoais daqueles que compõe o Poder Legislativo, majoritariamente composto de empresários e fazendeiros, em detrimento da dignidade do trabalhador. Demonstra, por fim, obediência aos obscuros interesses do agronegócio, que agora é pop, é tech, é tudo, menos democrático ou capaz de se sustentar sem escorar-se na exploração e restrição da dignidade humana. Retrógrado como em 1888.

O combate ao trabalho escravo permanece como missão. No cenário atual, o que se pretende mostrar é que a sociedade capitalista, comandada por homens brancos, ainda não se conformou com o fim da escravidão, esquivando-se de reparar a notória dívida histórica com esse povo. Mantendo as mesmas condições de pobreza e de oportunidades àquele que até poucos anos atrás era coisa.

O povo negro permanece em situação de pobreza, sem perspectivas de políticas públicas inclusivas pelo presente governo, muito pelo contrário, houve retrocesso de direitos, consequentemente, possuindo menor possibilidade de exercer o poder, mantendo o ciclo vicioso em que se questiona até que ponto a escravidão foi extinta no Brasil. Por fim, vivemos da esperança que a colocação de Nelson Mandela em sua posse como presidente da África do Sul se realize no Brasil: "Que nunca, nunca, nunca mais esta bela terra experimente novamente a opressão de um pelo outro e sofra a indignidade de ser a escória do mundo. Que a liberdade reine".

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*Vitor Santos de Godoi é sócio do escritório Loguercio, Beiro e Surian Sociedade de Advogados.






*Luara Borges Dias é advogada do escritório Loguercio, Beiro e Surian Sociedade de Advogados.

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