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A derrubada do veto ao Pert dos pequenos

Apenas a rejeição do veto ao Pert dos pequenos curará as patologias constitucionais decorrentes da vedação aos micro e pequenos empresários de aderirem ao programa.

sexta-feira, 2 de fevereiro de 2018

Atualizado às 08:33

A concessão do Programa Especial de Regularização Tributária (Pert) - lei 13.496/17 - aos médios e grandes empresários, negando-o aos micro e pequenos, viola a isonomia. Essa conclusão parte de um raciocínio relacional sobre o qual o min. Gilmar Mendes já pontificou: "o postulado da igualdade pressupõe a existência de, pelo menos, duas situações que se encontram numa relação de comparação"1.

A isonomia tem destaque logo no preâmbulo da Constituição. Consta do art. 3º, III, como um dos objetivos fundamentais da República: "erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais". Ela conduz o caput do art. 5º e reaparece no art. 43: "Para efeitos administrativos, a União poderá articular sua ação em um mesmo complexo geoeconômico e social, visando a seu desenvolvimento e à 'redução das desigualdades regionais'". Por fim, o art. 150, II, dispõe que "sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, instituir tratamento desigual 'entre contribuintes que se encontrem em situação equivalente', proibida qualquer distinção em razão de ocupação profissional ou função por eles exercida, independentemente da denominação jurídica dos rendimentos, títulos ou direitos".

A postura do Congresso, ao aprovar o PLC da Câmara 164/17, que institui o Pert-SN, o Pert dos pequenos, estendendo às micro e pequenas empresas o programa de parcelamento de débitos tributários formatado para os médios e grandes, correspondeu ao que a doutrina lusitana chama de "função de reparação ou de restauração corretiva da ordem jurídica afectada pela inconstitucionalidade", nas lições de Carlos Blanco de Morais2.

Essa extensão legislativa também colmatou uma lacuna que resultaria - e resultará, caso prevaleça o veto presidencial - numa corrida judicial jamais vista. Serão 556.128 empresas optantes pelo Simples Nacional, pelo menos, exercendo o direito de acesso ao Judiciário (art. 5o, XXXV) para pleitear a extensão do programa do qual foram inconstitucionalmente excluídas.

Também há razões materiais para a rejeição do veto. A súmula 70 do STF, diz: "É inadmissível a interdição de estabelecimento como meio coercitivo para cobrança de tributo". O racional dedicado a preservar a essência da liberdade de iniciativa e o direito de propriedade conduz a súmula 323, que, por sua vez, assinala: "É inadmissível a apreensão de mercadorias como meio coercitivo para pagamento de tributos". Por fim, a súmula 547 do STF dispõe: "Não é lícito à autoridade proibir que o contribuinte em débito adquira estampilhas, despache mercadorias nas alfândegas e exerça suas atividades profissionais".

Essas súmulas repudiam o excesso, cujo núcleo densificador reside na preservação da essência do direito assegurado, que, na hipótese, além do tratamento diferenciado e juridicamente favorecido de modo a incentivar as micro e pequenas empresas, também se exterioriza como liberdade de iniciar e persistir em seus negócios e, por fim, no próprio direito de propriedade. Por isso, é necessário impedir o excesso, num juízo simples de proporcionalidade cujo conteúdo forma a própria ideia de justiça.

O compromisso com a concretização de uma justiça tributária tem contado com a atenção do STF, que estabeleceu marcos pelos quais é possível identificar o excesso - administrativo ou legislativo - no disciplinamento tributário. São eles: (a) proibir o exercício de um direito fundamental, inviabilizando-o substancialmente, independentemente do seu motivo; (b) restringir em excesso o livre exercício da atividade econômica, ainda que a medida não inviabilize por completo a atividade empresarial; (c) nenhuma medida estatal - o que inclui vetos presidenciais - pode cercear, tolher ou dificultar sobremaneira o livre exercício da atividade econômica3.

Cada deputado federal ou senador é, por expressa determinação de seu juramento de posse, um guardião da Constituição.

Na Câmara, o art. 4º, § 3º, do regimento interno diz: "Examinadas e decididas pelo Presidente as reclamações atinentes à relação nominal dos Deputados, será tomado o compromisso solene dos empossados. De pé todos os presentes, o Presidente proferirá a seguinte declaração: 'Prometo 'manter, defender e cumprir a Constituição', observar as leis, promover o bem geral do povo brasileiro e sustentar a união, a integridade e a independência do Brasil'".

No Senado, dispõe o art. 4º, § 2º, do regimento: "Presente o diplomado, o Presidente designará três Senadores para recebê-lo, introduzi-lo no plenário e conduzi-lo até a Mesa, onde, estando todos de pé, prestará o seguinte compromisso: 'Prometo 'guardar a Constituição Federal' e as leis do País, desempenhar fiel e lealmente o mandato de Senador que o povo me conferiu e sustentar a união, a integridade e a independência do Brasil'".

São competências que mostram a própria democracia em movimento, controlando o poder, num checks and balances cujo pontapé inicial vem do art. 2o da Constituição: "Art. 2º São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário". Tanto que a Constituição, sensível à matéria, disciplinou, no art. 66, a ritualística do veto presidencial e da sua potencial reversão pelos parlamentares. Esse comando ganha vida no Congresso graças ao Regimento Comum (arts 104-A a 106-D).

Logo, assistir omisso a agonia desses contribuintes a quem a Constituição ordena tratamento favorecido e juridicamente diferenciado com vista a incentivá-los violaria o dever de guarda do qual se reveste cada deputado federal e senador. Seria uma omissão política com consequências jurídicas constitucionalmente inaceitáveis. Apenas a rejeição do veto ao Pert dos pequenos curará as patologias constitucionais decorrentes da vedação aos micro e pequenos empresários de aderirem ao programa.
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1 RE 405.579, min Joaquim Barbosa, Pleno, DJe 3/8/2011. Cf. p. 28 do acórdão.

2 Justiça Constitucional. Tomo II, O contencioso Constitucional português entre o modelo misto e a tentação do modelo de reenvio. Coimbra: Coimbra Editora, 2005, pp. 262-263.

3 Ávila, Humberto. Sistema constitucional tributário: de acordo com a emenda constitucional 42/2003. São Paulo: Saraiva, 2004, pp. 327 e 392.

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*Ricardo Mandarino Barretto é advogado do escritório Ayres Britto Consultoria Jurídica e Advocacia.

*Saul Tourinho Leal é advogado do escritório Ayres Britto Consultoria Jurídica e Advocacia.

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