Práticas fiscais abusivas
Em um país com tantas dificuldades, que a duras penas tenta construir seu estado de direito, não há mais lugar para constrangimentos e abusos ilegais.
sexta-feira, 26 de janeiro de 2018
Atualizado em 24 de janeiro de 2018 18:26
A jurisprudência brasileira tem longa tradição de proibir os meios indiretos e as práticas fiscais abusivas utilizadas para forçar o contribuinte a pagar dívidas tributárias. Mas existem situações em que tal prática ainda persiste. O fim do processo administrativo fiscal, com a manutenção do crédito tributário - muitas vezes, por voto de desempate proferido por um julgador escolhido pelo próprio Órgão Fazendário, acarreta o protesto da certidão de dívida ativa e a inclusão do nome da empresa nos cadastros de devedores.
As consequências são desastrosas, manchando o nome da empresa junto a clientes e fornecedores e proibindo-lhe diversas atividades, como participar de licitações e contrair financiamentos junto a órgãos públicos. A empresa que não concorda com o débito somente obterá sua regularidade fiscal se discutir judicialmente a dívida e desde que garanta integralmente seu valor. Ora, não são todos os contribuintes que possuem bens ou recursos (à vista) para garantir a integralidade do débito. O contribuinte que não os possui fica em um verdadeiro limbo, uma situação de total impotência, pois mesmo que ingresse em juízo, somente obterá sua CND após o trânsito em julgado da ação, o que poderá levar muitos anos.
O STF já decidiu ser inconstitucional a exigência de depósito para a discussão do débito tributário no âmbito administrativo. Pergunta-se: de que adianta ingressar com ação judicial se, incapaz de obter CND durante seu curso, ao final do processo a empresa já terá sucumbido? A última - e única alternativa que lhe resta é requerer, perante o Fisco, o parcelamento do valor supostamente devido, pois enquanto o parcelamento estiver ativo, a empresa terá a certidão.
Nesta situação, porém, o contribuinte se depara com um grave problema: o parcelamento implica em reconhecimento irrevogável e irretratável da dívida, implicando em renúncia a ação judicial. Diante de reiterados casos que o contribuinte, após aderir a parcelamentos, buscou o judiciário para discutir a dívida, firmou-se a jurisprudência de que se o contribuinte tiver confessado fatos, estes não poderão ser alterados por decisão judicial.
Todavia, frequentemente são os fatos imputados ao contribuinte, sobre os quais incidirá a norma jurídica, que estão incorretos. Se, por exemplo, a uma entidade imune for atribuída fatos inverídicos e ela parcelar seu débito, perderá sua imunidade constitucional, sem poder discutir a matéria junto ao Judiciário? Segundo o atual estado da jurisprudência, é exatamente isso que ocorre, restando ao contribuinte que efetuou o parcelamento morrer abraçado à suposta dívida.
Ora, diz-se que a confissão é a 'rainha das provas', mas é evidente que ela, aqui, é obtida com vicio de vontade, sob autêntica coação, pois o parcelamento é a única possibilidade encontrada pela empresa para continuar operando. Coação, segundo a doutrina, é "toda ameaça ou pressão exercida sobre um indivíduo para forçá-lo, contra a sua vontade, a praticar um ato ou realizar um negócio". A coação, segundo o artigo 151 do Código Civil, para viciar a declaração da vontade, "há de ser tal que incuta ao paciente fundado temor de dano iminente e considerável à sua pessoa, à sua família, ou aos seus bens".
Não há dúvida de que se trata exatamente do caso da empresa que adere ao parcelamento mesmo entendendo injusta a dívida que lhe é cobrada. E mais do que de coação, se trata de caso clássico de utilização de meio indireto de cobrança, caracterizando, nesse passo, clara ofensa aos princípios constitucionais da livre iniciativa e livre atividade empresarial, previstos no artigo 1º, inciso IV e artigo 170, ambos da Constituição Federal.
O direito moderno se caracteriza pela tentativa de ajudar a empresa, não de inviabilizá-la. Sem falar que permitir a uma empresa obter a Certidão de Regularidade Fiscal porque tem recursos para garantir a dívida e negá-la a outra que não os possui configura privilegiar o poder econômico em detrimento ao princípio da isonomia. Necessário, portanto, que a jurisprudência evolua para retirar dos parcelamentos tributários seu caráter de irrevogabilidade e irretratabilidade, não somente sobre os aspectos jurídicos objeto da confissão, como já reconhece a jurisprudência, mas também quanto aos seus aspectos fáticos.
Ao invés de parcelar a dívida e após buscar o Judiciário, se recomenda, para reforçar a lisura e boa-fé do procedimento que, previamente ao pedido de parcelamento junto ao órgão fazendário, a empresa ingresse em juízo pleiteando que a adesão ao parcelamento ocorra livre de qualquer obrigatoriedade de renúncia de direitos e tampouco implique reconhecimento irrevogável da dívida. Chama a atenção que práticas rechaçadas em outros campos de direito, inclusive sujeitas a sanções, ainda encontrem tolerância quando realizadas contra o contribuinte. Em um país com tantas dificuldades, que a duras penas tenta construir seu estado de direito, não há mais lugar para constrangimentos e abusos ilegais.
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*Sergio Lewin é advogado e sócio de Silveiro Advogados.