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O "Voo da morte" na Argentina, Chile e Brasil

Pode-se ignorar essa ignomínia histórica, decorrente de ideologias do ódio, que sempre tem um prazo de validade para azar de torturadores e assassinos?

quarta-feira, 24 de janeiro de 2018

Atualizado em 23 de janeiro de 2018 17:52

Temos muito mais em comum com a experiência histórica de nossos vizinhos hispânicos do que admitam os livros de outros.
Rubens Ricupero, in A diplomacia na construção do Brasil.

O excelente cinema argentino com o ator insuperável, que é Ricardo Dárin, filmou Kóblic, narrativa de episódio da vida de Tomás Kóblic, comandante da Armada de seu país, que em 1977 teve de pilotar o chamado ''Voo da morte''. Nele, opositores da ditadura argentina foram jogados vivos ao mar. O comandante conviveu com a visão desse suplício pela vida, mesmo longe da Armada, que durante a ditadura, já o perseguira.

Aliás, a história da estupidez na Argentina recebeu, recentemente, surpreendente testemunho da advogada Erika Lederer, advogada, filha de um médico militar repressor, que se suicidou, quando foi descoberta a certidão falsa de nascimento 106, de partos que ele fizera. As mães grávidas eram militantes de esquerda, cujos filhos nascidos eram entregues às famílias de militares ''enquanto as mães eram mortas a tiros ou embarcavam em ''voos da morte'', atiradas no Rio da Prata (Folha de São Paulo, 13/01/18, A13).

A mesma prática foi utilizada pela ditadura do Chile. Desta vez, a arte de Patrício Guzmán, em documentário riquíssimo, exibido de 5 a 18 de outubro de 2017, no Cine Belas Artes, na mostra de cinema denominada Paixão de Memória, revela a brutalidade da injeção em presos políticos, que drogados, recebiam um pedação de ferro de trilho de trem, fornecido por um quartel próximo do local da tortura, e que era amarrado ao peito do desgraçado, para que do mar jamais houvesse devolver do cadáver. Mas, até o mar queria que tudo fosse descoberto, iniciando-se pelo cadáver que jogou à tona.

A nossa ditadura também adotara, quiçá até em caráter pioneiro, a prática de extermínio de opositores. O texto A HISTÓRIA QUE NÃO QUERIAM FOSSE CONTADA, síntese do trabalho da Comissão da Verdade, nomeada pelo presidente Domingos Stoche, da 12ª Subseção da OAB, em nota de rodapé fala do filme O homem que disse não, registrando assim a verdade histórica:

No dia 23 de janeiro de 1994, o Jornal do Brasil noticiava que o capitão Sérgio, comandante de uma unidade do Esquadrão Aeroterrestre de Salvamento (Para-Sar), se negara, em 1968, a cumprir a ordem do brigadeiro Paulo Burnier para executar um plano sinistro de atos terroristas, como a explosão do gasômetro da Avenida Brasil, e atribuir tais atos aos comunistas. Não só se negara, como denunciara o plano aos seus superiores, evitando a morte de milhares de pessoas. Sofreu, como um criminoso, várias punições. Primeiro ficou preso por 25 dias, depois foi desligado do Para-Sar e, em seguida, transferido para fora do Rio. Editado o AI-5, foi cassado. Em 1992, em decisão histórica, o Supremo Tribunal Federal, por unanimidade, fê-lo reconquistar todos os seus direitos, inclusive o de ser promovido a brigadeiro. Ganhou, mas não levou, porque o ministro da Aeronáutica se negou a cumprir a ordem do Supremo Tribunal, transferindo a responsabilidade ao presidente da República. Protagonista do documentário O homem que disse não, do diretor francês Olivier Horn, não pôde assistir ao lançamento do filme, porque estava internado no Hospital Central da Aeronáutica, com câncer de estômago. No ofício endereçado ao Presidente da República, o ministro manifestou ''a grave preocupação, no seio da Força Aérea com a promoção do autor daquela ação ao generalato, contra todas as projeções possíveis, no cotejo de sua carreira com a de seus colegas de turma''. O aviso ministerial termina dizendo que solicitou ao presidente que examinasse ''a possibilidade de a União promover a competente ação rescisória do acórdão''. O almirante Sérgio dizia: ''Não quero morrer sem resolver esse caso.É uma questão moral, até porque não vou ver esse dinheiro''. Sem admitir olhares indulgentes, falava da morte com naturalidade, e costumava dizer: ''Primeiro, achei que ia morrer na selva; depois, que seria morto pelos sicários do Burnier. De modo que estou no lucro''.

Essa colaboração histórica, entre nós e nossos irmãos hispânicos, assumiu tonalidade sinistra, quando somaram com Uruguai, Paraguai e a ajuda da Bolívia, na chamada Operação Condor (com conhecimento norte-americano), cuja finalidade era liquidação física de grupos revolucionários, e também para eliminação de lideranças políticas de esquerda. Jango Goulart, Juscelino Kubitschek e Carlos Lacerda deixaram à história um debate insepulto sobre a morte de cada um, que teria sido uma morte matada.

A propósito, em 2018, o livro de Carlos Heitor Cony e Anna Lee, denominado O Beijo da Morte, segundo lugar do Prêmio Jabuti, terá edição ampliada, e com título substituído para o de Operação Condor.

Pode-se ignorar essa ignomínia histórica, decorrente de ideologias do ódio, que sempre tem um prazo de validade para azar de torturadores e assassinos?

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*Feres Sabino é advogado.

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