"O duelo entre a CVM e as "Initial Coin Offerings" (ICO´s)
Sem a intenção de esgotar o tema e respeitadas as opiniões em contrário, é visível que a CVM tem voltado os olhos para as ICO´s.
terça-feira, 2 de janeiro de 2018
Atualizado às 14:28
Há pouco menos de dois anos, temos assistido a explosão e euforia das chamadas criptomoedas (ou "cryptocurrencies"), com suas valorizações sem precedentes, pessoas deixando empregos para se dedicar a isso e apostando todas as suas economias na esperança de enriquecimento rápido, países regulamentando-as para aceitação no comércio e também no mercado financeiro, dentre outras situações.
A tecnologia chamada blockchain, que permite a segurança das transações envolvendo criptomoedas, tem sido colocada à prova a todo momento, com as notícias de invasões de hackers às exchanges e carteiras digitais dos usuários, visando furtar os saldos existentes.
Paralelamente a todo esse cenário esperançoso e ao mesmo tempo conturbado das criptomoedas pelo mundo, vem crescendo uma prática empresarial de captação de recursos chamada "ICO" (Inicial Coin Offering), ou "oferta inicial de moedas", tendo como contrapartida a disponibilização de tokens ou coins em favor do adquirente, que poderá usá-los de diversas maneiras. Dentre as modalidades mais comuns estão os utility tokens, que são aqueles que conferem ao adquirente o direito de acesso à plataforma on-line da empresa ofertante, para que se utilize o ativo virtual para consumir um bem ou serviço.
Quando do lançamento de uma ICO, assim como nas IPO's no mercado regulamentado de capitais e mobiliário, normalmente é disponibilizado um prospecto chamado "whitepaper", onde são publicadas as informações essenciais da empresa e do projeto em si, tais como histórico da companhia, informações de mercado de seu segmento, as soluções buscadas pelo projeto, resultados pretéritos e expectativas, a arquitetura do sistema e sua segurança, funcionamento, modelo de negócio, mecanismos de administração dos tokens e suas formas de administração, mercado alvo e aspectos legais.
As ICO's, enquanto estratégia de captação pública de recursos, possuem o status de crowdsale (em tradução livre: "venda coletiva"), que são diferentes das práticas conhecidas crowdfundings (ou "financiamento coletivo") disponibilizadas por plataformas como o Kicstarter e Indiegogo. Nestas, as empresas oferecem produtos em pré-venda aos backers (apoiadores) com descontos sedutores, apostando não só na obtenção de dinheiro, mas no "pioneirismo do consumo".
Já as empresas que propõem venda coletiva ("crowdsale") através de ICO's são, em sua maioria, startups que buscam a alavancagem financeira de seus empreendimentos trazendo contrapartidas (ou recompensas) aos seus apoiadores que, uma vez detentores dos tokens distribuídos, terão vantagens na utilização de serviços disponibilizados pela plataforma da empresa, podendo ou não ter um valor referenciado por alguma outra criptomoeda.
Com a constante inovação tecnológica pela qual o mundo atravessa em todos os segmentos, startups do ramo da tecnologia enxergaram nas ICO's uma forma de alavancagem rápida, que tem despertado interesse da sentinela do governo federal no que tange aos valores mobiliários: a Comissão de Valores Mobiliários - CVM.
Recentemente, em notas publicadas em seu website, a CVM tem alertado propensos investidores dos riscos em se participar de ICO's, tendo assim destacado:
"1. Podem-se compreender os ICOs como captações públicas de recursos, tendo como contrapartida a emissão de ativos virtuais, também conhecidos como tokens ou coins, junto ao público investidor. Tais ativos virtuais, por sua vez, a depender do contexto econômico de sua emissão e dos direitos conferidos aos investidores, podem representar valores mobiliários, nos termos do art. 2º, da lei 6.385/76.
2. Nesse contexto, a CVM esclarece que certas operações de ICO podem se caracterizar como operações com valores mobiliários já sujeitas à legislação e à regulamentação específicas, devendo se conformar às regras aplicáveis. Incorrem na mesma situação companhias (abertas ou não) ou outros emissores que captem recursos por meio de uma ICO, em operações cujo sentido econômico corresponda à emissão e à negociação de valores mobiliários.
3. As ofertas de ativos virtuais que se enquadrem na definição de valor mobiliário e estejam em desconformidade com a regulamentação serão tidas como irregulares e, como tais, estarão sujeitas às sanções e penalidades aplicáveis. A CVM alerta que, até a presente data, não foi registrada nem dispensada de registro nenhuma oferta de ICO no Brasil.
4. Por outro lado, há operações de ICO que não se encontram sob a competência da CVM, por não se configurarem como ofertas públicas de valores mobiliários.
5. A CVM esclarece que valores mobiliários ofertados por meio de ICO não podem ser legalmente negociados em plataformas específicas de negociação de moedas virtuais (chamadas de virtual currency exchanges), uma vez que estas não estão autorizadas pela CVM a disponibilizar ambientes de negociação de valores mobiliários no território brasileiro."
Pois bem. Resguardado a oportuna iniciativa e dever legal da referida Autarquia de alertar os brasileiros acerca de fraudes e estelionatos comumente aplicados por empresas que se utilizam dessa ferramenta, há profundas controvérsias sobre o conceito e o paradigma entre moedas digitais/virtuais e moeda eletrônica, para efeito de enquadramento como "ativo" ou "valor mobiliário".
Em linhas gerais, a moeda eletrônica é um ativo representativo e diretamente vinculado a uma moeda corrente legalmente constituída de um país, todavia, disponibilizada através de uma plataforma eletrônica. É dizer, o dinheiro real em formado eletrônico. Já a moeda virtual (ou digital) não possui vinculação à moeda oficial de um país ou em qualquer lastro regulatório, sendo um ativo intangível.
Por outro lado, a legislação brasileira não traz até hoje o conceito de valor mobiliário, mas tão somente trouxe, através da redação do art. 2º da lei 6.385/76 (alterada em 2001), um rol exemplificativo, a saber:
"I - as ações, debêntures e bônus de subscrição;
II - os cupons, direitos, recibos de subscrição e certificados de desdobramento relativos aos valores mobiliários referidos no inciso II;
III - os certificados de depósito de valores mobiliários;
IV - as cédulas de debêntures;
V - as cotas de fundos de investimento em valores mobiliários ou de clubes de investimento em quaisquer ativos;
VI - as notas comerciais;
VII - os contratos futuros, de opções e outros derivativos, cujos ativos subjacentes sejam valores mobiliários;
VIII - outros contratos derivativos, independentemente dos ativos subjacentes; e
IX - quando ofertados publicamente, quaisquer outros títulos ou contratos de investimento coletivo, que gerem direito de participação, de parceria ou de remuneração, inclusive resultante de prestação de serviços, cujos rendimentos advêm do esforço do empreendedor ou de terceiros."
Sem a intenção de esgotar o tema e respeitadas as opiniões em contrário, é visível que a CVM tem voltado os olhos para as ICO's baseado no inciso IX do dispositivo acima colacionado, na medida em que, se a ofertante confere direito de participação, parceria ou de remuneração aos detentores de tokens, daí sim estaria sujeita às normas daquela Autarquia.
Logo, se determinada empresa não confere a seus apoiadores nenhum direito inerente à participação societária; se não admite parceria ou remunera o adquirente de um token, ainda que lhe disponibilize vantagens como acima exemplificado (ex: token utilities), de forma alguma haverá a incidência da norma em comento.
Os alertas publicados tanto pela CVM, quanto pelo Banco Central, são reflexo da preocupação já manifestada pela United States Securities and Exchance Commission (SEC)1 , que é o órgão regulatório norte-americano de valores mobiliários, especialmente no case envolvendo uma organização descentralizada chamada The DAO2 , criada por uma empresa alemã chamada Slock.it UG, onde referido órgão descobriu que os detentores de DAO tokens tinham direitos a voto e de outras formas de participação na empresa.
A exemplo dos Estados Unidos da América, órgãos reguladores de países como Cingapura, Gibraltar, Dubai, Alemanha, Nova Zelândia e Suécia já emitiram suas notas e alertas, de modo a prevenir interessados sobre os riscos na participação de tais ofertas.
Para se definir exatamente se uma ICO é considerada ilegal ou não, os órgãos regulatórios partem do princípio do teste de Howey, que é baseado num case na Suprema Corte norte-americana envolvendo a SEC vs Howey, onde se estabeleceram as seguintes premissas para descobrir se um contrato de investimento pode ou não ser considerado valor mobiliário:
A) se é um investimento de dinheiro;
B) se há expectativa de lucros;
C) se é decorrente de uma empresa comum;
D) se depende unicamente dos esforços de um promotor ou de um terceiro.
Aliás, ainda que um token disponibilizado ao comprador seja conversível em outra criptomoeda, por não ser esta considerada sequer como título de crédito ou valor mobiliário, refoge, em tese, às regras regulatórias brasileiras.
Uma alternativa que tem sido utilizada por muitos brasileiros é a abertura de empresas offshore, especialmente em países onde a legislação tributária e monetária é bem mais objetiva, menos complexa e menos tortuosa para o empresário, notadamente quando se trata de novas tecnologias.
De fato, devido à extrema novidade com que o tema se apresenta, a velocidade com que novos conceitos de tecnologia e economia são apresentados, abalando os velhos princípios até então conhecidos, torna-se tarefa árdua para os órgãos reguladores que, não raras as vezes, adotam entendimentos equivocados, conflitantes e ilegais, sem falar na veia política, com notas de reserva de mercado, com que as opiniões e pareces são apresentados (a exemplo do Banco Central do Brasil), promovendo terreno fértil para acaloradas discussões, as quais certamente baterão às portas do Judiciário.
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1 Investor Bulletin: Initial Coin Offerings
2 SECURITIES AND EXCHANGE COMMISSION
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*Leopoldo Fernandes da Silva Lopes é sócio do escritório Aldo Lopes Advogados Associados, especialista em Direito Internacional e Econômico pela Universidade Estadual de Londrina (UEL) e especializando em Direito da Comunicação Digital pela FMU; consultor jurídico de startups.