Leilão reverso: um retrocesso para os credores públicos
A prática do leilão reverso não fere somente o direito constitucionalmente garantido ao credor do recebimento dentro da ordem cronológica de exigibilidade, mas agride também pilares constitutivos do direito administrativo, tais como os princípios da segurança jurídica e da moralidade.
sexta-feira, 29 de dezembro de 2017
Atualizado em 27 de dezembro de 2017 13:45
No Direito Privado a liberdade de contratar é ampla e informal, ao passo que no Direito Público a administração está sujeita a limitações de conteúdo e a requisitos formais rígidos precedidos e orientados pelos dispositivos que regem as licitações1.
Até a promulgação da Constituição Federal de 1988, o processo de contratação pública era tratado por diversas leis estaduais e municipais que cuidavam de forma esparsa - e muitas vezes distinta - sobre o tema.
A CF/88 foi o primeiro diploma a fazer menção expressa ao dever de licitar por parte da administração pública. Tal dever - e diga-se, também direito - está disposto no inciso XXI do art. 37, que trata dos princípios e normas gerais da administração pública:
Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:
XXI - ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações.
Como bem descreve Luiz Fernando Bandeira de Melo Filho2 "o dever de licitar também está descrito em outras passagens, notadamente no inciso XXVII do art. 22 e no caput do art. 175, verificamos a atenção dispensada pelo constituinte originário ao procedimento de contratação do Estado."
Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre:
XXVII - normas gerais de licitação e contratação, em todas as modalidades, para as administrações públicas diretas, autárquicas e fundacionais da União, Estados, Distrito Federal e municípios, obedecido o disposto no art. 37, XXI, e para as empresas públicas e sociedades de economia mista, nos termos do art. 173, § 1°, III;
Art. 175. Incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos.
Observa-se a importância dada ao assunto pelo constituinte ao conceder à União, privativamente, o poder de legislar sobre normas gerais de licitação e contratação, como forma de assegurar a igualdade de condições de concorrência ao longo do processo de contratação pública.
Vale lembrar que, na época da promulgação da Carta Magna, o Brasil passava por um importante processo de redemocratização, no qual havia uma preocupação com a transparência das contratações que resultavam em dispêndio de dinheiro público.
Com o objetivo de regular o inciso XXI do art. 37,da CF/88, foi editada a lei 8.666/93, que estabelece normais gerais sobre licitações e contratos. É importante termos em mente o contexto político que precedeu a elaboração da referida lei. Na ocasião, pairava uma incerteza sobre a idoneidade das contratações públicas, decorrente de um cenário envolto em escândalos relacionados a orçamentos públicos, contratos administrativos e exaustivos debates em CPIs instauradas com o objetivo de investigar os indícios de ilegalidade que assolavam o país3.
Assim, orientado pelo constituinte que delimitou os princípios gerais da administração pública, tais como legalidade, moralidade, impessoalidade, publicidade e eficiência, todos estes previstos no art. 37, caput, da Constituição Federal, o legislador ordinário definiu subprincípios, dentre eles o da segurança jurídica, também interpretado como princípio da boa-fé dos administrados ou da proteção da confiança4.
É importante enfatizar que a consolidação de princípios que parecem óbvios, como o da boa-fé contratual, ou mesmo a inclusão constitucional expressa de que os processos de licitação devem conter cláusulas que estabeleçam o pagamento dos contratos pela administração pública, são frutos de um momento de grande insegurança por parte dos administrados, que sofriam - e sofrem - com os frequentes calotes dos órgãos públicos.
Como bem critica Bandeira de Mello Filho5 "um tal mandamento constitucional só se explica quando se tem em mente a irresponsabilidade de gestores públicos que deixavam a seus sucessores enormes dívidas em nome do órgão. Enquanto empresas sérias eram lesadas e as que aceitassem participar de arranjos ilegais, premiadas com o pagamento."
Nessa esteira, a uniformização das regras gerais de contratação pública veio para atender um desejo de satisfazer o interesse público ao proporcionar à administração a realização do negócio em melhores condições de preço e qualidade, além de garantir ao contratado o recebimento de seus créditos dentro de um processo idôneo de pagamento6.
Neste ponto, o artigo 5º da lei 8.666/93 dispõe que "cada unidade da administração, no pagamento das obrigações relativas ao fornecimento de bens, locações, realização de obras e prestação de serviços, [deve] obedecer, para cada fonte diferenciada de recursos, a estrita ordem cronológica das datas de suas exigibilidades".
O mencionado dispositivo é a garantia do credor à previsibilidade no pagamento. Isso é, o direito subjetivo dos contratados de que a ordem de exigibilidade dos créditos não será manipulada pela administração por interesses pessoais ou políticos que levem ao privilégio de determinados credores.
Todavia, quase 30 anos após a promulgação da atual Constituição Federal, e mais de 20 anos da edição da lei de licitação, nos deparamos com projetos de leilão reverso que autorizam o pagamento de dívidas contraídas pelas entidades da administração direta e indireta que se encontrem inscritas em restos a pagar. A prática observada propõe a aplicação de um deságio sob o valor estabelecido (valor este fixado via processo licitatório), no intuito de antecipar o recebimento do referido crédito em detrimento da ordem cronológica de pagamento.
Ora, o que se vê é um retrocesso das bases que fundaram o arcabouço normativo das contratações públicas e seus respectivos pagamentos. A insegurança jurídica que traumatizou os credores à época da constituinte, no que se refere aos frequentes calotes e dificuldades de se manter o equilíbrio contratual, ressurge em uma nova roupagem. Os credores atuais passam a se preocupar com a manutenção do preço pactuado, que poderá ser reduzido a patamares que esgotam a margem de lucro como uma tentativa desesperada de recuperarem pelo menos o custo fixo da contratação.
Sobre a pretensa desculpa de gerar uma economia aos cofres públicos, a administração pública promove uma arena onde os credores mutilam os valores reais da dívida para obterem um lugar preferencial na ordem - não cronológica - de pagamentos. Todavia, no médio prazo o resultado será o inverso. A tendência será a majoração generalizada dos preços praticados, na medida que os concorrentes incluirão nas propostas apresentadas o custo referente ao risco de inadimplência.
A prática do leilão reverso não fere somente o direito constitucionalmente garantido ao credor do recebimento dentro da ordem cronológica de exigibilidade, mas agride também pilares constitutivos do direito administrativo, tais como os princípios da segurança jurídica e da moralidade.
Em resumo, o erário, com o subsídio dos contribuintes, paga a conta da corrupção e da irresponsabilidade dos gestores públicos. O que se espera é a vedação e penalização pelos órgãos de controle externo de qualquer tipo de prática que restrinja os direitos garantidos aos credores, bem como a proteção da moralidade administrativa tão batalhada nas últimas décadas.
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1 LOPES MEIRELLES, Helly. Direito Administrativo Brasileiro. 36° Edição. São Paulo: Malheiros Editores, 2010. p. 291.
2 MELLO FILHO, Luiz Fernando Bandeira. A Licitação na Constituição de 1988. Acesso em 30/10/17.
3 MELLO FILHO, Luiz Fernando Bandeira. A Licitação na Constituição de 1988. Acesso em 30/10/17.
4 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro, 36 ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2010.
5 ____________. A Licitação na Constituição de 1988. Acesso em 30/10/17.
6 ADI 2.716. Rel. Min. Eros Grau, j. 29/1107, Plenário, DJE, 07/03/08.
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*Carolina Barros Pires é advogada da equipe de Recuperação de Crédito do Chenut Oliveira Santiago Sociedade de Advogados.