Uma notável inteligência a serviço da advocacia
Uma característica marcante desse inolvidável advogado, que, fora o período em que ocupou de Ministério da Justiça, honrou a profissão ininterruptamente durante mais de cinco décadas, foi exatamente a sua devoção pela advocacia com a crença na sua capacidade de influenciar e de transformar a sociedade.
terça-feira, 19 de dezembro de 2017
Atualizado em 18 de dezembro de 2017 11:51
Como orador não era daqueles arrebatadores de plenário como os outros grandes advogados do Júri de São Paulo, como Valdir Troncoso Peres e Nilton Silva Junior, Viana de Moraes, seus contemporâneos e Américo Marco Antonio, Ibrahim Nobre, Antonio Cuvelo que lhe antecederam. A ponderação e a prudência no falar eram suas marcas.
Por meio de um português impecável e de uma fluência linear, Márcio tornou-se um grande argumentador. Raptava a atenção dos jurados pela lógica de suas afirmações e a clareza de seu raciocínio. Sua desenvoltura dialética era resultado de uma cuidadosa e penetrante análise dos fatos, dos quais extraia as teses defendidas.
Fizemos dois juris que marcaram a memória de quem os assistiu. Invertemos os papéis. Em um eu defendia, em outro a defesa ficou a seu cargo. Foi assistente da acusação na cidade de Santo André e eu, desempenhei igual papel em Tupã.
Nossa vocação sempre foi a defesa. Postular pela liberdade e pregar pelo respeito à dignidade do acusado foi nossa missão precípua. Para um desempenho confortável na acusação, ele, quanto eu, precisávamos estar convencidos da barbárie cometida contra a vítima. Mas, no fundo, queríamos, como acusadores, o reconhecimento da culpa, não fazíamos, no entanto, questão da prisão. Esta era problema dos jurados e dos juízes.
Creio que todo advogado criminal vocacionado se constrange um pouco ao sentar-se ao lado do promotor para assisti-lo no seu mister acusatório.
Estava esquecendo-me de informar que Márcio ganhou os dois casos.
Um outro embate entre nós estava sendo esboçado e se prenunciava como um dos memoráveis casos de júri de São Paulo. Defendi durante algum tempo conhecido jornalista que matara sua namorada, também jornalista. Razões alheias impediram nosso novo embate em tribunas opostas.
Devo registrar um incidente ocorrido neste caso, que me valeu a solidariedade pública de Márcio.
Meu cliente estava internado em um Hospital de São Paulo, sob vigilância policial, pois havia sido decretada a sua prisão preventiva. Por tal razão o seu interrogatório, no curso do inquérito ocorreu em uma sala do hospital. Sentei-me ao lado do cliente e na nossa frente o promotor de Justiça, que colocou e deixou sobre a mesa sua pasta, com uma das pontas viradas para nós.
Pasta se coloca no chão ou sobre uma cadeira. Estranhei o inusitado fato, mas não atinei o porquê daquela pasta nos mirando durante todo o interrogatório.
Pois é, a razão estava mesmo na mira da pasta, que continha uma filmadora, creio que minúscula. Eu estava sendo filmado, juntamente com todos os participantes do ato. Descobri quando à noite me vi como rápido protagonista do Jornal Nacional. Mais uma vez o crime teatralizado, desta feita tendo como diretor de cena e cinematografista um promotor de justiça.
Como disse, Márcio reprovou publicamente a conduta desse, que deveria ser, fiscal do complemento da lei.
O meu relacionamento com Márcio surgiu com o exercício da advocacia na área, na década de 70, quando passei a frequentar o Fórum Criminal. Diariamente, por volta das 13 horas, os militantes da advocacia criminal se reuniam na lendária Praça da Alegria. Um banco localizado no 2º andar, transformou-se no curso dos anos em ponto de convergência de ideias e de ideais voltados para as questões ligadas à advocacia criminal, ao funcionamento do judiciário, às fofocas e a um delicioso anedotário forense. Inteligência, verve e graça marcavam as conversas. Nós, os mais jovens, tínhamos uma participação restrita, pois preferíamos ouvir os mais antigos e haurir seus ensinamentos de direito e especialmente de vida.
Waldir Troncoso Peres; Raimundo Paschoal Barbosa; Hermenegildo Valente; Kleber de Menezes Dória; Claudio de Luna; Paulo Brandão, o próprio Márcio e muitos outros ministram inolvidáveis lições de ética; de cultura; de inteligência e de graça de espírito.
Em 1982. Márcio candidatou-se à presidência da Ordem dos Advogados de São Paulo, concorrendo pela denominada e tradicional "Chapa Azul". Fui o coordenador de sua campanha. Viajamos pelo interior, para visitar os colegas de todas as subseções, espalhadas por aproximadamente cem cidades do Estado.
Certa ocasião, estávamos sofrendo com o calor infernal da cidade de Tupã. Tínhamos passado por três ou quatro cidades antes de lá chegarmos. Após a tradicional reunião com os advogados locais, para obter apoio e voto nas eleições, fomos ao não menos tradicional e obrigatório chope.
Como os recursos eram escassos, não havia "caixa 2" nem caixa "1", tomamos um único quarto do único hotel existente, para passarmos a noite.
Madrugada alta, acordei e me deparei com Márcio sentado na cama suando bem mais de que o calor provocava, embora este fosse terrível.
Assustei-me com o estado do amigo. Indaguei se ele estava sentindo algo, eu temia que fosse um infarto. Ao mesmo tempo achei que poderia não ser nada, pois, para quem não sabia, Márcio era um assíduo frequentador de médicos, hospitais, clínicas e farmácias. Hipocondríaco puro.
Disse-me que realmente não estava tendo nada. Apenas sonhara, na verdade tivera um pesadelo. Durante o sono fora assombrado pela derrota. Sim, sonhara que havíamos perdido as eleições. A chapa por ele encabeçada ficara em terceiro lugar.
Seu abalo foi tão grande, que demorou muito para assimilar um pequeno detalhelembrado por mim: nós não tínhamos adversários. A chapa era única.
Custou para recuperar-se,
Uma característica marcante desse inolvidável advogado, que, fora o período em que ocupou de Ministério da Justiça, honrou a profissão ininterruptamente durante mais de cinco décadas, foi exatamente a sua devoção pela advocacia com a crença na sua capacidade de influenciar e de transformar a sociedade.
Sua visão era verdadeiramente missionária. Cada advogado e a coletividade, por meio de suas entidades representativas, possuíam um dever de aprimoramento das instituições, especialmente a Justiça. Bem como do próprio regime democrático.
Tal como muitos advogados, Márcio dividiu a sua banca com atividades ligadas à política de classe, tendo presidido não só a seccional, a como a Ordem Federal. Todos eles estavam preocupados com a valorização da advocacia e com o restabelecimento da democracia em nosso país.
Advogados do porte de João Baptista Prado Rossi, Cid Vieira de Souza, Mário Sérgio Duarte Garcia, José de Castro Bigi e José Eduardo Loureiro, Presidiram a Ordem paulista e tal como Márcio se colocaram na vanguarda da redemocratização do país e da plena valorização da advocacia.
Pugnas gloriosas foram empreendidas na década de oitenta, pelos advogados brasileiros, com a participação marcante dos paulistas. Assim, anistia, diretas já, constituinte foram pleitos cívicos memoráveis e que mais uma vez na história do Brasil tiveram os advogados como os grandes arautos.
Falei da devoção de Márcio pela advocacia, que, na verdade, se materializava também na sua admiração e no respeito pelos advogados com os quais conviveu. Nem gesto de reconhecimento e de reverência homenageou alguns dos colegas que já nos deixaram, colocando em cada dependência de seu escritório, tanto o da Liberdade, quanto o da Faria Lima, os seus respectivos nomes. Para ele era a forma de perpetuar em nossas memórias as figuras dos que honraram e dignificaram sobremodo a advocacia.
Postular não só no caso concreto, como assumir o papel de porta voz dos anseios e das aspirações da sociedade sempre foi a insistente pregação desse líder da advocacia brasileira, cuja ausência provocou um vácuo não preenchido, a não ser pelos exemplos de amor à profissão que nos legou.
A lembrança de sua carismática figura é uma constante, especialmente nas evocações que faço com o seu querido sobrinho e meu grande amigo José Diogo Bastos.
Para nós, parafraseando Drumond, a morte de Márcio é como a curva de uma estrada: ele só não é visto, mas continua. . .
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*Antônio Claudio Mariz de Oliveira é advogado criminal do escritório Advocacia Mariz de Oliveira.