A privatização de bens públicos na cidade de São Paulo: vai resultar em que?
Não basta assegurar-se a justa remuneração de quem vencer as concessões e permissões. É preciso olhar, finalmente, que a cidade tem 12 milhões de habitantes e o parcelamento do que for apurado, se os processos forem bem conduzidos e bem transparentes, não dará para termos o retorno.
terça-feira, 12 de dezembro de 2017
Atualizado em 8 de dezembro de 2017 16:33
O homem jovem conhece as regras,
mas o homem mais velho conhece as exceções1.
- Provérbio inglês
Pouco tempo atrás, ou muito tempo atrás, ou algum tempo atrás, muito cansado, recolhi-me, tentando dormir. E não é que dormi? Logo, sonhei.
E não é que sonhei que deveria ler, a pedido do meu Anjo da Guarda, a lei municipal (de São Paulo) 16.703/17. E sabe, mais ainda, que eu me recordei que ela tem por objetivo desestatizar tudo o que for possível, ou seja, aquilo que ao longo tempo foi aumentando o orçamento de despesas e, de forma contundente, oneram o erário público.
Aí, o meu Anjo da Guarda falou-me: "Jayme, você sabe que o Fundo Municipal de Desenvolvimento vai vender bens que pertencem ao público. E você lembra do sempre conhecido jurista Teixeira de Freitas, que foi o inspirador do Código Civil argentino, que teve vigência até pouco tempo, e que escreveu o monumento jurídico conhecido como Vocabulário Jurídico2. Começando pelo fim, a obra de Teixeira de Freitas, no conjunto, é imortal e mereceu do inolvidável Santiago Dantas3 algumas palavras interessantes e irônicas, porque considerava o texto 'verbo pesado e incorreto'".
Mas, afastando a ironia do genial jurista, eu me ative, quando despertei, ao Vocabulário Jurídico, Tomo I. E logo, despenquei na letra b. Aí, Teixeira de Freitas definiu o que sou orgulhoso de ser, bacharel, como: "quem obtém o primordial grau nos estudos de teologia, direito, medicina e outros ramos". Não afrontou o ser advogado, então cataloguei-me como profissional do Direito. E como tal, páginas adiante da mesma obra, ingresso no conceito do que são bens. E assim diz Teixeira: "Bens são todas as coisas corpóreas e incorpóreas, que juridicamente podem ser apropriadas" (p. 21).
Antes de mais nada, o que significa "apropriar"?
O verbo "apropriar", quando não pronominal, historicamente, é um verbo transitivo com significado de "dar propriedade" e, figurativamente, "adaptar; acomodar convenientemente; atribuir". Mas esse verbo pode ser utilizado, como já foi, séculos atrás, pronominalmente, como "apropriar-se", "tomar para si como próprio; ou de propriedade; atribuir-se, arrogar-se". E já Vieira dissera: "Se apropriam dos males do próximo".
Esse torneio linguístico, eminentemente etimológico, mostra que, ao longo dos séculos, e já na época da edição e publicação do Vocabulário Jurídico, tirando-se das Ordenações Afonsinas: "hoje dizem apropriar-se de alguma coisa, tomá-la como própria, fazer-se dono dela4".
Voltando a Teixeira de Freitas, conhecedor de como os fidalgos se apropriaram dos mosteiros, foi, com suficiente discernimento, definindo bens os que, juridicamente, podem ser apropriados, e, ressalvou: "A palavra 'bens' tem sentido menos lato que a palavra 'coisas', pois que podem estas ser ou não apropriáveis juridicamente, e mais em um mundo de bem e de mal. As 'coisas' são móveis, imóveis ou semoventes; distinção também aplicável aos bens" (p. 22).
Fiz uma pausa, mas não me esqueci de como aguda foi a atribuição de Teixeira à dicotomia de bens e coisas. E dá para pensar (e não vou dizer, nem sustentar, a impertinência e o equívoco da 'coisíssima nenhuma', tão bem, de forma tão criteriosa e admirada por José Maria da Costa).
- Deixei no meu escaninho o texto da lei municipal 16.703/17 e, algumas horas depois, percebi que o "diligente" legislador municipal, não obstante autorizar a desestatização de "ativos" específicos, tais como previstos no art. 9º, ampliou, ainda, para uma série de imóveis municipais, dentre os quais os cemitérios, os parques, o serviço funerário e também os terminais de ônibus.
Vários de nós, sabem ou sabemos, e vários de vós sabeis o que isso vai significar para o munícipe de menor renda?
Contente, fui passar uns dias em São Roque para respirar um pouco do ar das montanhas e sair um pouco do murmurinho agressivo das terras de Piratininga. Estrada percorrendo, o meu Anjo apareceu de supetão. E disse ele: "antes que você sonhe com problemas mais profundos, relacionados com a multiplicação dos pães da Prefeitura de São Paulo, você sonhou em parar e mirar o mundo ao seu redor?"
E não é que fiquei sem palavras.
Busquei em vários livros que cuidam de nosso tempo. Dirigi a busca a quem pensasse alguma coisa diferente de Nostradamus. Esqueci os profetas, mas busquei quem estudou filosofia e teologia sobre a fenomenologia da linguagem, Silvano Fausti5, e também o excelso antropólogo da contemporaneidade, Marino Niola.
Do primeiro entendi que "o homem define-se das suas possibilidades, a sua cultura é advinda das suas possibilidades realmente traduzidas em realidade, elas constituem o horizonte em que se move o seu pensar e o seu agir. Enquanto uma vez eram aquelas que eram - a natureza delimita bem a cultura - hoje são, não somente mais numerosas, mas praticamente ilimitadas. O âmbito do possível se abriu a aquilo que era considerado impossível: uma vez se voltava ao passado já conhecido; outra vez era escancarado sobre cada futuro, ainda desconhecido. Graças à tecnologia, o homem realmente cambiou seu horizonte: desvencilhado dos vínculos, que antes a natureza lhe colocava, agora se encontra na liberdade de fronte a qualquer coisa que queira se colocar ante de si". Mas "a vida é sempre futura; a que passou já morreu, se não há futuro". E a cultura moderna é aquela que "não é desprezível"; é invés o Kairós momento oportuno para conseguir aquilo que está dentro do coração" (p. 19-20).
Em suma, Silvano Fausti propõe que "temos que curar nossa antipatia diante desse mundo. Esse mundo encoraja a quem quer descobrir a própria identidade, mas não desencoraja aqueles que não creem em procurar a própria verdade".
Passando do filósofo e teólogo, Fausti, que jogava com as palavras como se fossem peças de um dominó, tomei em Marino Niola, que, alguns anos atrás, escreveu um livro que define o mundo atual e seus mitos6 que são verdadeiras metáforas ovidianas. O antropólogo da contemporaneidade introduziu-me aos mitóides. E a realidade só é explicada quando, iluminada com sua clareza geométrica, o mito "ajuda a orientar-nos nos labirintos da alma humana: "É a caixa negra do ser, pois, funcionalmente, é circular como um barco, o sentido nos estreitos insidiosos, que separam um mundo que desaparece daquele novo que se apresenta em formas desconhecidas, enigmáticas e inquietantes" (p. 9-11).
E, assim, fui introduzido aos mitos, ao blog, às férias de verão, ao halloween, ao happy hour, à magreza, ao outlet, ao pop star, ao slow food, ao spa, à tatuagem e assim por diante.
Formei um juízo crítico positivo nas montanhas, mas, confesso ser um desavergonhado amoral, se for catalogado pelos autores que votaram a lei municipal 16.703/17, como mero crítico sem base técnica.
E assim, daqui para frente, vou tentar esboçar algumas considerações, recordando o ditado italiano: Aquilo que você não pode ter, abuse dele.
Passo a considerar: 1º) Rejeito a ideia de que a Prefeitura utilize e mude e altere nossa tradição jurídica consolidada, inclusive, no Código Civil vigente, apodando os bens públicos municipais, como se fossem ativos. Parece que os autores deste diploma legal desconhecem os significados dos termos jurídicos e a linguagem que lhes é própria. Essa confusão que, além de deplorável, tomba no desconhecimento do que é legislar e seus requisitos essenciais, transformando a lei numa forma indireta de consagração da inépcia contemporânea, pois a sua aplicação, ou, como dizia Bielsa, exige "a claridade de seu texto e a certeza dos termos ou vocábulos jurídicos que ele emprega" porque "nosso bacharelado, que não é humanista, nem classicista, ou seja, ele é apenas utilitário, desde muito tempo, não prepara suficientemente o estudante para iniciar certos estudos superiores (e daí os exames de ingresso)".
2º) Ativo não é bem no sentido jurídico, logo, não pode prevalecer, sobretudo, com referência aos bens públicos.
3º) Os recursos que poderiam advir com a concessão ou venda, hipoteticamente, não chegam a pagar a folha de funcionários públicos. E quem prova, diz e demonstra, sem maquiar os dados, que num ano eleitoral possa se alcançar o necessário para áreas de saúde, segurança, educação, habitação, transporte, mobilidade urbana e assistência social?
4º) Seria mais proveitoso se eu fosse concordar com essa loucura que se aplicassem milhões para acabar com as aposentadorias precoces, com número ridículo de funcionários da Câmara Municipal e do Tribunal de Contas do Município, dos veículos oficias em feiras e eventos públicos (basta ter um "carguinho" para gozar de carro com motorista). Um número exagerado de assessores em todos os graus nas Secretarias e se dessem atenção para o que realmente temos de história nessa Paulicéia desvairada. Vamos vender tudo e, depois, inclusive cemitérios e parques, ficam sem dinheiro para usufruir e sem nenhum apoio à população carente.
Não basta assegurar-se a justa remuneração de quem vencer as concessões e permissões. É preciso olhar, finalmente, que a cidade tem 12 milhões de habitantes e o parcelamento do que for apurado, se os processos forem bem conduzidos e bem transparentes, não dará para termos o retorno. As ruas estão estragadas, os guardas municipais estão andando pela cidade em um footing simpático para a guarnição.
É preciso acordar. E, acordando, me lembrei que a Suécia, que tem uma população de 9,903 milhões, dispões de apenas 3 carros oficiais, à exceção dos serviços necessários de bombeiros, ambulâncias e policiais. Os juízes vão a pé trabalhar, os deputados têm apartamentos de 20 m² e não tem empregados domésticos. Os impostos chegam à 70% dos rendimentos e tudo corre muito bem com a nossa brasileira, rainha daquele país nórdico.
Para terminar, os PPMI que, em tese, não serão ressarcidos, podem crer, estarão embutidos nos preços. E, logo:
- "O rabo revela a raposa". Cauda de vulpe testatur.
(L. De Mauri. Cinquemila proverbi e motti latini (Flores sententiarum). Verbete: Inganno)
- "A mais bela alma não passa de um ponto de vista".
(Machado de Assis)
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1 The young man knows the rules, but the old man knows the exceptions.
2 Augusto Teixeira de Freitas. Vocabulário Jurídico Tomos I-II. São Paulo: Editora Saraiva, 1983. 596 p.
3 Figuras do Direito. Rio de Janeiro: José Olympo Editora, 1962. p. 99
4 Antonio de Moraes Silva. Dicionário de Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Edições Facsímile, 1922
5 Elogio del nostro tempo: modernità, libertà e cristianesimo. Milão: Àncora, 2006. 136 p.
6 Marino Niola. Mitti D'oggi. Milão: Bompiani, 2012. 153 p.
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*Jayme Vita Roso é advogado e fundador do site Auditoria Jurídica.