O novo entendimento do STF sobre a competência por prerrogativa de função
Observa-se que nada obstante o pedido de vista mais uma vez feito neste julgamento, a questão já está praticamente decidida no sentido do entendimento firmado no voto do ministro Luís Roberto Barroso.
segunda-feira, 27 de novembro de 2017
Atualizado em 24 de novembro de 2017 17:43
No dia 16 de fevereiro de 2017 o ministro Luís Roberto Barroso encaminhou ao Plenário do Supremo Tribunal Federal o julgamento da Ação Penal 937, por meio da qual um ex-deputado federal, que havia renunciado ao mandato para assumir a Prefeitura de um Município do Estado do Rio de Janeiro, responde pela prática do crime de "compra de votos". Naquela oportunidade, o ministro pretendia discutir a questão de foro por prerrogativa de função. No respectivo despacho, o relator afirmou que o suposto delito teria sido cometido em 2008, quando o réu disputou a Prefeitura. Eleito prefeito, o caso começou a ser julgado no Tribunal Regional Eleitoral do Rio de Janeiro, onde a denúncia foi recebida em 2013. Com o encerramento do mandato à frente da chefia do Executivo local, o caso foi encaminhado para a primeira instância da Justiça Eleitoral. Em 2015, como era o primeiro suplente de deputado federal de seu partido, ele passou a exercer o mandato diante do afastamento dos deputados federais eleitos, o que levou à remessa dos autos ao Supremo Tribunal Federal. Em setembro de 2016, o réu foi efetivado em virtude da perda de mandato do titular, mas após sua eleição novamente para a Prefeitura, também no ano passado, ele renunciou ao mandato de parlamentar (em janeiro de 2017), quando o processo já estava liberado para ser julgado pela Primeira Turma.
Segundo afirmou o relator, à época, "as diversas declinações de competência estão prestes a gerar a prescrição pela pena provável, de modo a frustrar a realização da justiça", salientando que "o sistema é feito para não funcionar" e o caso revelava "a disfuncionalidade prática do regime de foro", razão pela qual acreditava "ser necessário repensar a questão quanto à prerrogativa."
Para o ministro Barroso, havia "problemas associados à morosidade, à impunidade e à impropriedade de uma Suprema Corte ocupar-se como primeira instância de centenas de processos criminais."
Ao encaminhar o julgamento do tema para o Plenário, por meio de questão de ordem, o relator sugeriu a análise da possiblidade de conferir interpretação restritiva às normas da Constituição de 1988 que estabelecem as hipóteses de foro por prerrogativa de função, de modo a limitar tais competências jurisdicionais aos crimes cometidos em razão do ofício e que digam respeito estritamente ao desempenho daquele cargo.
No dia 31 de maio foi iniciado o julgamento. Em seu voto, o ministro Luís Roberto Barroso, afirmou que "o foro deve se aplicar apenas a crimes cometidos durante o exercício do cargo, e deve ser relacionado à função desempenhada." Outro entendimento adotado pelo ministro foi de que a competência se torna definitiva após o final da instrução. A partir desse momento, a competência para julgar o caso não será mais afetada por eventual mudança no cargo ocupado pelo agente público.
O voto baseou-se no entendimento de que a atuação criminal originária ampla do Supremo Tribunal Federal "tornou-se contraproducente em razão do grande volume de processos e da pouca vocação da sua estrutura para atuar na área. O resultado leva à demora nos julgamentos, à prescrição e cria um obstáculo à atuação do Supremo como corte constitucional."
Para ele, "o foro se tornou penosamente disfuncional na experiência brasileira por duas razões. A primeira delas é atribuir ao Supremo Tribunal Federal uma competência para a qual ele não é vocacionado. Nenhuma corte constitucional do mundo tem a quantidade de processos de competência originária em matéria penal como o Supremo Tribunal Federal", citando que havia "mais de 500 inquéritos e ações penais em curso na Casa, e lembrando que o julgamento de um deles, a Ação Penal 470 (do chamado mensalão), durou 69 sessões."
Ademais, "os procedimentos que regem o funcionamento do Tribunal são mais complexos do que os utilizados pela primeira instância, o que pode levar à demora nos julgamentos e à prescrição das penas", ressaltando "que o objetivo do foro é proteger o cargo e garantir a autonomia de seu exercício, portanto, não fazia sentido atribuir a proteção prevista constitucionalmente ao indivíduo que o ocupa. Assim, devem-se excluir dos atos amparados pela regra aqueles sem relação com o cargo."
Outro problema citado foi o "sobe e desce" processual que, segundo o ministro, "retarda o processo e afeta a credibilidade do sistema penal. A brecha acaba sendo usada pelos acusados, que obtêm ou renunciam a cargos a fim de alterar o foro competente e adiar a conclusão do processo, segundo palavras do relator.
No voto foi citado estudo elaborado pela Fundação Getúlio Vargas sobre o tema, segundo o qual o novo entendimento reduziria em mais de 90% os inquéritos e ações penais em curso no Tribunal. Ainda segundo o estudo, pouco mais de 5% das ações penais em curso tiveram origem no próprio Supremo Tribunal Federal.
No dia seguinte, 1º. de junho, o julgamento foi retomado, mas um pedido de vista do ministro Alexandre de Moraes suspendeu a sessão. Para o ministro, não era "possível se analisar a questão apenas sob o ponto de vista do foro em determinada instância, uma vez que eventual alteração, como a proposta pelo relator do caso, traria repercussões institucionais no âmbito dos Três Poderes e do Ministério Público." Ele também comentou que não existia "estatística ou estudo que comprovasse o grau de efetividade no processamento de ações penais antes e depois do aumento das hipóteses de foro privilegiado, prevista na Constituição de 1988, não sendo possível estabelecer uma conexão, seja ela histórica, sociológica ou jurídica, entre a criação do chamado foro privilegiado e a impunidade. A afirmação de que o foro na Suprema Corte acaba gerando impunidade não só não tem respaldo estatístico, como acaba por ofender e desonrar a própria história do Supremo".
Nesta sessão, o ministro Marco Aurélio e as ministras Rosa Weber e Cármen Lúcia anteciparam seus votos, acompanhando o relator. O ministro Marco Aurélio defendeu a aplicação do foro por prerrogativa de função apenas aos crimes cometidos no exercício do cargo, relacionados às funções desempenhadas, assentando "que, caso a autoridade deixe o cargo, a prerrogativa cessa e o processo-crime permanece, em definitivo, na primeira instância da Justiça. A fixação da competência está necessariamente ligada ao cargo ocupado na data da prática do crime e avaliou que tal competência, em termos de prerrogativa, é única, portanto não é flexível. A competência que analisamos é funcional e está no âmbito das competências, ou incompetências, absolutas. Não se pode cogitar de prorrogação. Se digo que a competência é funcional, a fixação, sob o ângulo definitivo, ocorre considerado o cargo ocupado quando da prática delituosa, quando do crime, e aí, evidentemente, há de haver o nexo de causalidade, consideradas as atribuições do cargo e o desvio verificado."
Já a ministra Rosa Weber, que também acompanhou integralmente o voto do relator, afirmou que "a evolução constitucional ampliou progressivamente o instituto do foro por prerrogativa de função. Diante disso é pertinente uma interpretação restritiva que o vincule aos crimes cometidos no exercício do cargo e em razão dele. O instituto do foro especial, pelo qual não tenho a menor simpatia, mas que se encontra albergado na nossa Constituição, só encontra razão de ser na proteção à dignidade do cargo, e não à pessoa que o titulariza."
Também seguindo o voto do relator, a ministra Cármen Lúcia, destacou que "foro não é escolha, e prerrogativa não é privilégio. O Brasil é uma República na esteira da qual a igualdade não é opção, é uma imposição. Essa desigualação que é feita para a fixação de competência dos tribunais, e, portanto, de definição de foro, se dá em razão de circunstâncias muito específicas. A Constituição faz referência a membros, agentes ou cargos, portanto, no exercício daqueles cargos é que se cometem as práticas que eventualmente podem ser objeto de processamento e julgamento pelo Supremo e pelos órgãos judiciais competentes."
No dia 23 de novembro, foi retomado o julgamento e, mais uma vez, suspenso em razão de um pedido de vista, desta vez do ministro Dias Toffoli. De toda maneira, até o momento, oito ministros proferiram voto na matéria, seis acompanhando o entendimento do relator, no sentido de que o foro se aplica apenas a crimes cometidos no exercício do cargo e em razão das funções a ele relacionadas. Nesta sessão, o ministro Alexandre de Moraes divergiu parcialmente, pois, segundo seu voto, "o foro deve valer para crimes praticados no exercício do cargo, mas alcançando todas as infrações penais comuns, independentemente de se relacionaram ou não com as funções do mandato."
Em seu voto-vista, o ministro Alexandre de Moraes acompanhou o relator na parte que fixa o foro no Supremo Tribunal Federal apenas para os crimes praticados no exercício do cargo, após a diplomação, valendo até o final do mandato ou da instrução processual. Para ele, "estender a prerrogativa para alguém que praticou crime antes de ser parlamentar afasta a relação com a finalidade protetiva do mandato, objetivo da prerrogativa, que é voltada para proteção institucional. É uma prerrogativa do Congresso, e não de quem sequer sabia que um dia seria congressista." Na sua divergência parcial, o ministro afirmou que "o texto constitucional não deixa margem para que se possa dizer que o julgamento das infrações penais comuns praticadas por parlamentares não seja de competência do Supremo Tribunal Federal. A expressão 'nas infrações penais comuns`, contida no art. 102, I, 'b'), alcança todo tipo de infrações penais, ligadas ou não ao exercício do mandato."
Em que pese o pedido de vista, adiantou seu voto o ministro Edson Fachin, salientando, entre outros pontos, "que o princípio do duplo grau de jurisdição é atingido pela cláusula de prerrogativa de foro. Algumas das justificativas dadas para sustentar o instituto - como a de que os tribunais superiores seriam mais isentos e menos influenciáveis, e como forma de inibir demandas abusivas contra parlamentares - para concluir que essas justificativas não são compatíveis com a Constituição, uma vez que o julgamento imparcial e independente é direito de todos os cidadãos."
Também o fez o ministro Luiz Fux, igualmente acompanhando integralmente o voto do relator. Para ele, "a leitura do texto constitucional indica que a competência do Supremo é preservada quando o ato ilícito é praticado no exercício do cargo e em razão do cargo", afirmando que tinha também preocupação com as declinações de foro, concluindo "que era preciso que os casos tenham seu juízo próprio, e que ao Supremo fossem reservados apenas os ilícitos cometidos no cargo e em razão dele."
Por fim, o decano, ministro Celso de Mello, destacou em seu voto "que existem cerca de 800 autoridades com prerrogativa de foro apenas no Supremo, entre autoridades do Executivo, militares, ministros de tribunais superiores e outros", revelando ser um defensor da supressão de todas as prerrogativas em matéria criminal, "por entender que todos os cidadãos devem estar sujeitos à jurisdição comum de magistrados de primeira instância", lembrando, outrossim, "que, no início do julgamento da Ação Penal 470, em agosto de 2012, já havia manifestado seu entendimento no sentido de que a prerrogativa merecia uma nova discussão." Para o decano, dever-se-ia "reconhecer, mediante legítima interpretação do texto constitucional, que a prerrogativa só deve se aplicar a delitos praticados na vigência da titularidade funcional e que guarde íntima conexão com o desempenho das atividades inerentes ao referido cargo ou mandato." Com esses fundamentos, o ministro acompanhou integralmente o voto do relator.
Observa-se, portanto, que, nada obstante o pedido de vista mais uma vez feito neste julgamento, a questão já está praticamente decidida no sentido do entendimento firmado no voto do ministro Luís Roberto Barroso, a saber:
Primeiro: o foro por prerrogativa de função aplica-se apenas aos crimes cometidos durante o exercício do cargo e relacionados às funções desempenhadas.
Segundo: após o final da instrução processual, com a publicação do despacho de intimação para apresentação de alegações finais, a competência para processar e julgar ações penais não será mais afetada em razão de o agente público vir a ocupar outro cargo ou deixar o cargo que ocupava, qualquer que seja o motivo.
Terceiro: terminado definitivamente o julgamento, o entendimento aplicar-se-á a todos os processos pendentes no Supremo Tribunal Federal, por se tratar de uma regra fixadora da competência.
Oxalá, na próxima sessão, tenhamos finalmente a decisão final, com uma observação: creio que essa interpretação dada pela Suprema Corte (para mim correta, enquanto não se acaba de uma vez por todas com a competência por prerrogativa de função - via uma emenda à Constituição), fatalmente atingirá todo e qualquer réu que tenha prerrogativa de foro, e não somente os parlamentares federais.
Assim, doravante, prefeitos, deputados estaduais, magistrados, membros do Ministério Público, ministros, etc, etc., deixarão de ter tal prerrogativa, salvo em relação aos crimes cometidos durante o exercício do cargo e relacionados às funções desempenhadas. Ademais, após o final da instrução processual, com a publicação do despacho de intimação para apresentação de alegações finais, a competência para processar e julgar as respectivas ações penais não será mais afetada em razão de o agente público vir a ocupar outro cargo ou deixar o cargo que ocupava, qualquer que seja o motivo.
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*Rômulo de Andrade Moreira é procurador de Justiça do Ministério Público do estado da Bahia e professor de Direito Processual Penal da Faculdade de Direito da Universidade Salvador - UNIFACS.