A garantia ao devido processo legal e o dever de boa-fé nos contratos administrativos
A 2ª Turma do STJ julgou o RMS nº. 14.924-DF e consolidou a posição da referida Corte a respeito de temas de suma importância no âmbito dos contratos administrativos. A questão que foi objeto de julgamento envolveu discussão a respeito da possibilidade de alteração unilateral do contrato administrativo pelo Poder Público. A situação concreta relaciona-se a contrato de concessão de direito real de uso firmado entre o Distrito Federal e o particular.
quinta-feira, 6 de julho de 2006
Atualizado em 5 de julho de 2006 12:46
A garantia ao devido processo legal e o dever de boa-fé nos contratos administrativos
André Guskow Cardoso*
A 2ª Turma do STJ julgou o RMS nº. 14.924-DF e consolidou a posição da referida Corte a respeito de temas de suma importância no âmbito dos contratos administrativos.
A questão que foi objeto de julgamento envolveu discussão a respeito da possibilidade de alteração unilateral do contrato administrativo pelo Poder Público. A situação concreta relaciona-se a contrato de concessão de direito real de uso firmado entre o Distrito Federal e o particular. Na forma da legislação editada pelo ente Público, foram estabelecidas determinadas condições para essa utilização, com deduções aplicadas pelo Poder Público ao valor que seria devido pelo particular em razão do contrato, no caso de atendimento dessas condições. De certo modo, trata-se de contratação que se insere na noção de fomento estatal às atividades exercidas pelos particulares. O Distrito Federal editou as normas jurídicas e firmou os contratos tendo em vista o incentivo à ocupação de determinadas áreas de seu território e desenvolvimento de determinadas atividades.
Após a assinatura do contrato, houve alteração nas normas que regulamentavam o incentivo concedido ao particular, com modificação inclusive nos prazos para a implementação dos deveres inicialmente atribuídos pelo contrato ao particular. Diante da superveniência da nova legislação, o Poder Público cancelou o direito aos incentivos econômicos anteriormente previstos, por não ter o particular observado os prazos previstos na legislação mais recente. Num primeiro momento, foi negado pelo TJDF o direito ao particular de manter esses benefícios, sob fundamento de que o Poder Público poderia, a qualquer momento, cancelar ou alterar as condições inicialmente previstas no contrato, tendo em vista a existência de "cláusulas exorbitantes" que assegurariam a posição de supremacia do Poder Público.
Esse entendimento foi repudiado pelo STJ, que decidiu a questão sob dois prismas diversos.
Por um lado, o acórdão confirmou o direito do particular ao devido processo legal nas hipóteses de alteração unilateral do contrato administrativo.
Trata-se de entendimento que já vinha sendo acolhido pelo STJ. É o caso do Recurso em Mandado de Segurança nº. 1.603/TO, em que se decidiu que "A concessão de serviço público, nos termos da legislação pertinente, só é alterável, com dano ao concessionário, se observado o devido processo legal, em que se assegure ampla defesa ao contratante prejudicado" (rel. Min. DEMÓCRITO REINALDO, publ. DJU 29.3.1993). Nesse mesmo sentido, o STJ também já havia afirmado que "viola o princípio constitucional do devido processo legal a decisão de ministro de Estado que, em procedimento administrativo, revoga provimento por ele anteriormente deferido, e surpreende o permissionário do serviço público de transporte coletivo, com a extinção de direito previsto em lei (estabelecimento de ponto de apoio)" (MS 5431/DF, rel. Min. ADHEMAR MACIEL, j. 23.9.1998, DJU 17.5.1999).
De qualquer modo, o precedente recentemente publicado confirma a posição da jurisprudência de que, no caso de atos administrativos que atribuam direitos ao particular, a sua modificação ou supressão dependem da observância do devido processo legal, assegurando-se a ampla defesa e o contraditório. Aliás, esse princípio é ainda mais evidente no caso de contrato administrativo, em que são ordinariamente estabelecidos deveres e obrigações recíprocos entre o particular e o Estado. Nesse sentido, o STJ já indicou anteriormente que "Conforme já declarou o Pretório Excelso e também esta colenda Corte, 'a anulação de ato administrativo cuja formalização haja repercutido no campo de interesses individuais, não prescinde da instauração de processo administrativo, assegurado o direito ao contraditório, ensejando a audição daqueles que terão modificada a situação já alcançada'" (MS 6.481/DF, 1ª S., rel. Min. FRANCISCO FALCÃO, j. 13.10.1999, DJU 8.3.2000).
Esse entendimento corrobora a necessidade de que os atos da Administração - ainda que no âmbito do exercício da prerrogativa da alteração unilateral do contrato administrativo - sejam precedidos de procedimento administrativo específico. A providência se destina a assegurar que a alteração que se pretende promover não ofenda o direito do particular e nem extrapole os limites dessa prerrogativa. Afinal, a despeito de se reconhecer que, nos contratos administrativos em geral, o Poder Público detém a prerrogativa de alteração unilateral da avença, essa prerrogativa não é absoluta ou ilimitada. Encontra limites no ordenamento jurídico e nos direitos assegurados ao particular. Trata-se de reconhecer os reflexos procedimentais dos direitos e garantias fundamentais - que, no caso brasileiro, são expressamente reconhecidos pela Constituição de 1988, que consagra o devido processo legal, bem como o contraditório e a ampla defesa em processos judiciais ou administrativos (art. 5º, incs. LIV e LV).
Não fosse isso, a exigência de atuação pela via procedimental da Administração, com possibilidade de manifestação ampla do particular, tende a impedir que sejam implementadas modificações desarrazoadas nos contratos ou mesmo que não se prestem a atender ao interesse público. Como reconhece JULI PONCÉ SOLER, o procedimento administrativo constitui verdadeiro fator de "qualidade da atuação administrativa", assegurando a consecução de diversos valores, como a racionalidade, a objetividade, a imparcialidade e a transparência (Deber de Buena Administración y Derecho al Procedimiento Administrativo Debido.Valladolid: Ed. Lex Nova, 2001). Assim, a procedimentalização da atuação administrativa permite aferir a razoabilidade e a proporcionalidade dos atos adotados pela Administração.
Por último, a procedimentalização da atuação da Administração reflete a necessidade de democratização da atuação administrativa, assegurando-se a ampla participação daqueles que serão atingidos pela atuação estatal no processo de formação desse ato.
Por outro lado, reconheceu-se a necessidade de proteção à boa-fé do particular na contratação administrativa. Ao reputar que "não é razoável que a Administração, ao perceber que laborou em defeitos de previsão acerca dos aspectos versados na avença e, por conseguinte, na formulação e execução de projeto por ela própria definido, suprima deliberadamente incentivo econômico pré-estabelecido, sobretudo quando o particular/concessionário tem por fim atividade empresarial, cujo êxito requer necessariamente prévio e meticuloso planejamento financeiro e temporal", o STJ consagrou a necessidade de que a Administração, ainda que atuando no exercício de sua prerrogativa de alteração unilateral dos termos dos contratos administrativos, resguarde a boa-fé do particular contratado.
Trata-se de entendimento de suma relevância e que impede que a Administração se valha da prerrogativa de alteração unilateral dos contratos para deliberadamente impor ao particular a sua vontade. Note-se que, mesmo nos casos em que a Administração promove alteração para atender a um interesse público específico, não é possível impor prejuízo aos direitos do particular sem a necessária compensação. Isso não significa que o Poder Público não possa promover a alteração unilateral da avença administrativa, quando detectar que as suas previsões iniciais não eram adequadas ou foram superadas pela realidade. Porém, essa alteração depende do preenchimento de determinados requisitos, que foram reconhecidos de forma explícita pelo STJ no RMS 14.924/DF.
A questão decidida pelo STJ é especialmente relevante para as hipóteses de atividade estatal de fomento, nas quais se verifique o incentivo, pelo Estado, de determinado comportamento do sujeito privado, em troca de determinados benefícios assegurados em contrato firmado com o Poder Público.
Em suma, o precedente do STJ ora comentado reconhece que à Administração é possível promover a alteração unilateral dos contratos administrativos, desde que seja para o atendimento do interesse público, situação a ser demonstrada em processo administrativo regular, no qual sejam assegurados ao particular o contraditório e a ampla defesa. Ademais, exige-se que a atuação da Administração respeite a boa-fé do particular no momento da contratação, bem como os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade. Disso deriva que a possibilidade de alteração unilateral dos termos dos contratos administrativos não é absoluta e nem ilimitada. Daí a importância do citado precedente para a consolidação dos postulados do Direito Administrativo atual.
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*Advogado do escritório Justen, Pereira, Oliveira & Talamini - Advogados Associados
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