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O direito de ser solidário

Silvia Letícia de Almeida

O risco de contaminação do sangue existe, sim, mas ele está em toda a sociedade, cabendo aos responsáveis garantir procedimentos cautelosos, que superem as inseguranças da janela imunológica, mas sem ferir outros direitos, com suporte em estatísticas estigmatizantes.

quarta-feira, 8 de novembro de 2017

Atualizado às 08:18

Teve início, no último dia 19 de outubro, perante o STF, o julgamento da ADIn 5543 movida pelo Partido Socialista Brasileiro - PSB. Por meio desta ação, o mencionado partido questiona a constitucionalidade de duas disposições normativas, uma do Ministério da Saúde e outra da Agência Nacional de Vigilância Sanitária, que, ao estabelecerem regras para procedimentos hemoterápicos, vedam a doação de sangue por homens, homossexuais ou bissexuais, que tenham tido relações sexuais com outros homens, no período de 12 (doze) meses, vedação estendida as suas parceiras sexuais. Tal julgamento foi suspenso, após pedido de vista do ministro Gilmar Mendes.

Já de início, é possível observar que decorre de tais normas evidente conflito entre dois direitos, ambos protegidos por nossa Constituição Federal e, portanto, sem qualquer hierarquia entre eles: o direito à saúde (daqueles que recebem o sangue) e o direito à igualdade (daqueles que, hetero, homo ou bissexuais, querem doar o seu sangue).

A justificativa do Ministério da Saúde e da ANVISA para a manutenção de tais normas em nosso ordenamento jurídico, em síntese, está na existência de estatísticas que revelam maior incidência de doenças sexualmente transmissíveis (DSTs) entre homens homossexuais. Indicam, ainda, a existência de vários países com disposições normativas semelhantes, algumas das quais até mesmo mais restritivas do que as disposições brasileiras. Por fim, esclarecem que há risco potencializado de contaminação, no período conhecido como "janela imunológica" ou "janela sorológica", consistente no lapso de tempo entre eventual infecção e a possibilidade de sua detecção por meio de testes laboratoriais.

A questão que se coloca é se as normas, tais como postas, representam a maneira mais eficaz de, ao mesmo tempo, garantir os direitos daqueles que querem doar e daqueles que precisam receber o sangue.

As normas em debate excluem do processo de doação de sangue, a priori e sem qualquer avaliação de sua conduta sexual, homens homossexuais e bissexuais que tiveram relações sexuais com outros homens no ano anterior à pretendida doação. Ou seja, tais pessoas, ao declararem ter essas orientações sexuais, sequer podem ter o sangue colhido para, então, ser submetido aos rigorosos procedimentos hemoterápicos para a garantia da qualidade da doação, procedimentos esses aplicados a todo o sangue colhido, indistintamente, independentemente do doador.

Se, no passado (especialmente no início da década de 80), o desconhecimento das características da AIDS (ou SIDA - Síndrome da Imunodeficiência Adquirida) justificou o entendimento de que tal doença estava restrita a determinados grupos (os chamados grupos de riscos), dentre os quais os homossexuais, a superação desta visão distorcida exige a revisão de normas que carregam este estigma. Se existe o risco de contaminação por doenças sexualmente transmissíveis e a impossibilidade de sua detecção no período da janela imunológica, tal risco existe para todas as pessoas, independentemente de sua orientação sexual. E não pode um dado estatístico, que está longe de ser uma evidência alarmante, estabelecer uma presunção estanque de que todos os homens homossexuais ou bissexuais com atividade sexual frequente oferecem riscos aos receptores de sangue, sem qualquer análise de seu comportamento sexual. Se o problema está na insegurança dos testes laboratoriais realizados no período da janela imunológica, é esta insegurança que deve ser tratada, devendo as restrições normativas a ela ser direcionadas.

É de se destacar que tais normas também estabelecem restrições a outros grupos de pessoas, valendo menção, para fins de comparação, ao candidato que teve alguma doença sexual transmissível, a quem é imposta limitação à doação no período de 12 (doze) meses após a sua cura. Este exemplo é esclarecedor, pois tal restrição não impõe qualquer estigma aprioristicamente, tratando de uma questão objetiva e passível de individualização, diferente da generalização preconceituosa imposta aos homens homossexuais ou bissexuais (as normas em debate trazem outras generalizações preconceituosas, mas que fogem ao escopo da presente análise, restrita ao debate inaugurado pela ADI 5543).

Merece consideração, ainda, a notória carência de sangue nos bancos de doação, esta sim uma evidência alarmante que, pelo número de vidas expostas, emerge como uma questão de saúde pública. Esta realidade indica que a restrição imposta pela Portaria do Ministério da Saúde e pela Resolução da Diretoria Colegiada da ANVISA extrapola o direito à igualdade dos homens homossexuais e bissexuais, atingindo um sem números de pessoas que deixam de receber sangue. Sob esta ótica, passa a integrar o conflito o direito à vida desta coletividade de pessoas, que também encontra guarida no texto constitucional.

O conflito vai além, atingindo a liberdade (de orientação sexual); a dignidade da pessoa humana (a possibilidade de homo e bissexuais serem reconhecidos, verdadeiramente, como seres humanos passíveis de fazer o bem); a afetividade; a fraternidade; a solidariedade, esta reconhecida como objetivo fundamental da própria República Federativa do Brasil. Atinge direitos das famílias homossexuais, que, embora protegidas constitucionalmente, são tratadas de forma diversa das famílias heterossexuais por tais normas.

A solução para o embate não é simples e exige cautela dos ministros do STF. A presença de diversos amici curiae na ADI 5543 (treze, no total) revela o alcance e a importância da questão.

Deve-se indagar se tais normas são proporcionais e razoáveis, quando ponderados todos os direitos em conflito. Tudo está a indicar que a resposta é negativa, pois a proteção do direito à vida e à saúde dos receptores de sangue pode ser feita sem que se imponha aos homens que fazem sexo com homens a pecha da promiscuidade. O risco de contaminação do sangue existe, sim, mas ele está em toda a sociedade, cabendo aos responsáveis garantir procedimentos cautelosos, que superem as inseguranças da janela imunológica, mas sem ferir outros direitos, com suporte em estatísticas estigmatizantes.

Nas palavras do ministro Edson Fachin, em seu despacho inicial da ADI 5543: "muito sangue tem sido derramado em nosso país em nome de preconceitos que não se sustentam, a impor a célere e definitiva análise da questão por esta Suprema Corte".

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*Silvia Letícia de Almeida é sócia do escritório Arystóbulo Freitas Advogados.

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