Lei estadual limita recursos dos contribuintes ao Tribunal de Impostos e Taxas
Ao ferir direitos fundamentais individuais e sociais, a nova lei poderá ser questionada no campo da constitucionalidade.
sexta-feira, 20 de outubro de 2017
Atualizado em 18 de outubro de 2017 13:58
O Tribunal de Impostos e Taxas (TIT) é um tribunal administrativo, formado por Câmaras Julgadoras e que faz parte da estrutura da Secretaria da Fazenda. Cada uma delas é composta por quatro julgadores, denominados juízes. Dois deles são indicados pela Secretaria da Fazenda (fiscais ou procuradores) e os outros dois são advogados indicados por órgãos representativos da sociedade civil (OAB; Federações do comércio, da agricultura e da indústria, entre outros).
Após o julgamento em primeira instância proferir uma decisão mantendo o auto de infração e imposição de multa, por exemplo, o contribuinte, visando alterar tal resultado, pode apresentar Recurso junto ao Tribunal de Impostos e Taxas, o qual deverá ser julgado por uma das Câmaras.
O julgamento em primeira instância ocorre na Delegacia Tributária de Julgamento, por um julgador tributário ou por um agente fiscal de rendas designado para a função de julgador fiscal. Normalmente, tais julgamentos, realizados apenas por um julgador, servidor da Fazenda, apresentam uma clara tendência por homologar a penalidade imposta ao contribuinte.
Atualmente, a lei 13.457/09 prescreve em seu artigo 47 que o contribuinte somente pode recorrer ao Tribunal de Impostos e Taxas quando o valor total do Auto de Infração e Imposição de Multa (AIIM) for superior a 5.000 UFESPs, que equivalem a R$ 125.000,00. Quando o valor for inferior, o recurso apresentado contra a decisão exarada será julgado pelo próprio Delegado de Julgamento, titular da Delegacia onde foi prolatada a decisão em primeira instância.
Ocorre que, em 19 de julho deste ano, foi editada a lei 16.498/17, com vigência a partir de janeiro de 2018, que alterou o artigo 47 da lei atual, prescrevendo que o autuado somente poderá interpor recurso ordinário ao Tribunal de Impostos e Taxas nos casos em que o débito fiscal exigido, na data da lavratura do auto de infração, seja superior a 20.000 UFESPs, que equivalem a R$ 500.000,00.
Cabe ressaltar que a nova redação dada ao artigo 47 da lei não instituiu tratamento desigual aos contribuintes em uma mesma situação jurídica. O tratamento desigual já existia, mas atingia um menor número de contribuintes. O novo regramento veio consolidar o tratamento diferenciado e ampliou seu âmbito, para atingir, de forma desfavorável, todos os contribuintes cujo crédito tributário lançado seja inferior a R$ 500.000,00.
A discriminação estampada na nova lei fere o princípio constitucional da isonomia tributária, também conhecido como princípio da igualdade tributária que encontra fundamento no artigo 5º da Constituição Brasileira. Tal princípio estabelece que todos os contribuintes que se encontrem na mesma situação jurídica devem receber o mesmo tratamento tributário.
Considerando-se que o atual teto de R$ 125.000,00 já é uma medida que prejudica os pequenos contribuintes, ao elevar o teto para R$ 500.000,00 a Secretaria da Fazenda prejudicará não apenas os pequenos, como também os contribuintes de porte médio. Esses contribuintes, se quiserem ter um julgamento com maior imparcialidade, terão que recorrer ao Judiciário, arcando com todas as despesas e riscos decorrentes.
Como é sabido, o devido processo legal e suas garantias constitucionais aplicam-se ao processo administrativo e não somente ao processo judicial. Caso tais garantias sejam afrontadas, o direito de petição e o direito de recorrer serão também atacados. No caso em análise, o direito de recorrer será seriamente comprometido pela lei estadual em questão, em razão da afronta à garantia da igualdade, à ampla defesa e ao contraditório no processo administrativo tributário.
O direito de recorrer é um direito potestativo do qual decorre a possibilidade de obtenção da pretensão recursal e, até mesmo, verdadeiro poder de recorrer, que advém do direito de ação (para processos judiciais) e de petição (em procedimentos administrativos), conforme demonstraram, respectivamente, os doutrinadores Fredie Didier e Willis Santiago Guerra Filho.
Assim, o direito de recorrer, como decorrência do direito de petição (art. 5º XXXIV, "a", Constituição Federal), é, ele próprio, um direito fundamental, protegido pela Constituição Federal de 1988, de sorte que limitá-lo, como pretende a lei estadual sob exame, é uma afronta ao sistema constitucional.
Justamente nesse trilhar, o Supremo Tribunal Federal ao julgar recursos que discutiam a constitucionalidade ou não da necessidade de depósito ou arrolamento prévio de bens, como condição de admissibilidade de recurso administrativo (art. 250 do decreto-lei 05/1975), considerou inconstitucional tal exigência, por afrontar o direito de petição e o contraditório. Esse entendimento jurisprudencial consolidou-se na súmula vinculante 21 do STF datada de 2009.
No caso sob exame, a violação não se restringe à esfera jurídica do contribuinte que pretende recorrer em determinado caso específico, mas estende-se a toda a coletividade, em clara violação aos direitos fundamentais sociais, os chamados direitos fundamentais de segunda geração (ou de segunda dimensão). Esses direitos, como é notório, são direitos e garantias fundamentais que devem ser compartilhados por toda a sociedade, independentemente de diferenças advindas de gênero, condição econômica, origem etc., demandando atuação firme do Estado, no sentido de suprir carências dessa coletividade quanto a questões básicas que afligem a todos os indivíduos.
Não por outra razão, o conceito de devido processo legal vai além do mero cumprimento da lei, como ensina o jurista português J.J. Gomes Canotilho, ao tratar do substantive due process: "A teoria substantiva (do devido processo legal) está ligada à ideia de um processo legal justo e adequado, materialmente informado pelos princípios da justiça, com base nos quais os juízes podem e devem analisar os requisitos intrínsecos da lei."
Em vista dessas ponderações, conclui-se que a nova lei, além de criar um claro cerceamento de defesa, ao impedir que o contribuinte tenha acesso ao Tribunal de Impostos e Taxas - órgão reconhecidamente técnico -, estabelece duas classes de contribuintes: os que poderão recorrer ao Tribunal por um julgamento de forma paritária, mais equilibrado e justo; e os que serão julgados apenas pela Delegacia Tributária de Julgamento.
Ao ferir direitos fundamentais individuais e sociais, a nova lei poderá ser questionada no campo da constitucionalidade.
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*Ademar Fogaça Pereira é advogado tributarista e fundador do Fogaça, Moreti Advogados.
*Cristiano Padial Fogaça Pereira é advogado, especialista em Direito Empresarial e sócio do Fogaça, Moreti Advogados.