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O executado cafajeste II: medida coercitiva como instrumento da medida sub-rogatória

É necessário encontrar caminhos legítimos para que o executado [cafajeste] não continue a fazer gato e sapato da justiça.

quinta-feira, 19 de outubro de 2017

Atualizado em 17 de outubro de 2017 13:47

Em setembro de 2016 escrevi um texto sobre o executado cafajeste publicado aqui no Migalhas que teve enorme repercussão no meio jurídico em razão do próprio vedetismo do tema resultante das paixões que ele desperta. O tema coloca em confronto os incisos III e IV do art. 139 do CPC.

Em relação a este específico assunto [medidas processuais executivas x medidas processuais punitivas], pode-se claramente perceber que de um lado estão aqueles que acham que as medidas de apreensão da CNH, apreensão de passaporte, e tantas outras, seriam sempre medidas punitivas e aplicadas sem lastro legal, e de outro lado, estão aqueles que acreditam que tais medidas seriam executivas coercitivas permitidas atipicidade dos meios executivos.

A discussão está longe de terminar, e é bom que continue, porque todo contraditório, toda discussão observada por flancos e olhares de diferentes atores do processo, desde que sejam feitos com respeito e seriedade, contribuem muito para que se alcance um salutar ponto de equilíbrio sobre o tema.

Naquele texto que escrevi há um ano eu fiz um alerta sobre o perigo de se confundir ''medidas processuais punitivas'' com ''medidas processuais coercitivas'', e o risco de a ''efetividade do processo'' transformar-se em ''autoritarismo processual''. Toda sanção punitiva deve estar prevista em lei, e, não se submete à regra da atipicidade. Por outro lado, toda medida executiva se submete à regra da atipicidade, inclusive às voltadas à tutela pecuniária.

Também alertei para critérios que devem estar presentes para se identificar a medida processual a ser aplicada pelo juiz contra o executado cafajeste, aquele que não adimple a obrigação no prazo processualmente previsto e, além de não cooperar com a jurisdição, faz de tudo para frustrar a execução, ostentando uma situação processual que não condiz com a vida que leva. No momento em que isso acontece, tem sido comum aplicar sanções processuais punitivas [que precisam de previsão legal], sob o rótulo de medidas processuais executivas coercitivas [que se submetem à atipicidade de meios executivos]. No escrito anterior feito há um ano, arrolei alguns critérios que podem trazer maior segurança para discernir se a medida a ser aplicada é punitiva ou coercitiva: 1) o momento em que é aplicada, 2) a finalidade, 3) a justificativa, 4) a instrumentalidade, 5) a razoabilidade, 6) a necessidade, 7) a correspondência, 8) a referibilidade da medida com o caso concreto, 9) a duração, etc. A análise de cada item destes poderá trazer maior segurança sobre a natureza e finalidade da medida processual a ser aplicada contra o executado.

Como dito, conquanto as medidas punitivas e as coercitivas estejam no mesmo dispositivo do CPC (art. 139) e coladinhas uma na outra (inciso III e IV, respectivamente), há diferenças entre uma e outra que devem ser apreciadas e superadas para que possam ser aplicadas no caso concreto. Como já dissemos, o ''nome'' da medida processual é critério inadequado para saber se é punitiva ou coercitiva, e a multa processual é um bom exemplo disso (arts. 774 e 537).

Assim, para apimentar ainda mais o debate, e, talvez, quem sabe, oferecer uma solução juridicamente viável para as diversas situações processuais onde o executado é um grande cafajeste é que resolvi fazer este novo escrito. Entretanto, decidi seguir o conselho do saudoso e querido professor José Carlos Barbosa Moreira, e então quis correr atrás de estatísticas sobre o quão cafajeste tem sido o executado e o que pode ser feito para se obter a satisfação do direito exequendo e não simplesmente punir este executado miserável.

Enfim, neste ano que separa esta e a anterior publicação, dediquei-me a formar um grupo de pesquisa com dedicados alunos do mestrado e da graduação da UFES que, com a colaboração acadêmica da Dra. Trícia Xavier, juíza titular de uma vara cível de Vitória-ES, conseguimos, neste pequeno universo jurídico, coletar e verificar dados de quase mil execuções para pagamento de quantia [excluídas as execuções especiais]. Eis que os dados são estarrecedores, pois o índice de execuções frutíferas é tragicamente minúsculo, e que, do outro lado, neste gigante grupo de execuções infrutíferas existe uma significativa quantidade de executados cafajestes.

Só quem opera cotidianamente a execução civil [e aqui se incluem os juízes e não apenas o exequente e o executado] pode entender o sentimento de frustração, decepção e desânimo com uma execução infrutífera resultante das condutas praticadas pelo executado cafajeste. A execução civil é um tema que precisa ser vivido para ser compreendido. E vivo isso há pelo menos 20 anos. Posso garantir que uma sociedade que possui em torno de 61 milhões de inadimplentes [4 em cada 10 adultos do país] até admite a execução infrutífera por ausência de patrimônio do executado, mas não aceita, e, eu diria que não tolera mais, que a execução seja infrutífera porque executado oculta o patrimônio para ''se dar bem'' em cima da justiça e do exequente como se a execução civil fosse um circo e os demais atores os palhaços. Esta é mais uma forma de corrupção e improbidade inaceitável realizada numa arena pública, com o fim de fraudar o processo jurisdicional e causar prejuízo à justiça e ao exequente.

Sobre aquilo que eu escrevi ano atrás - acerca das medidas processuais punitivas e coercitivas - eu continuo mantendo a minha opinião, cuja síntese expus no início, ou seja, não é possível trocar punição por coerção, valendo-se da atipicidade dos meios executivos como saída para a aplicação de medidas que são essencialmente punitivas.

Entretanto, após a revelação estatística das execuções infrutíferas, que oportunamente será publicada nos meios acadêmicos, penso que é preciso ''não julgar no escuro'' quem pede ou quem julga a concessão de medidas processuais como apreensão de passaporte, apreensão de carteira de habilitação, proibição de utilização de cartão de crédito, etc, pois, sem fazer uma robusta análise do caso concreto não é possível dizer que ali ou alhures há medida punitiva travestida de coercitiva. Além do mais é necessário encontrar caminhos legítimos para que o executado [cafajeste] não continue a fazer gato e sapato da justiça. Nesse passo trazemos observações que podem colaborar neste sentido, sem misturar coerção com punição e vice-versa.

É preciso relembrar que o inciso IV do art. 139 é límpido ao dizer que ''o juiz dirigirá o processo conforme as disposições deste Código, incumbindo-lhe (...) determinar todas as medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias necessárias para assegurar o cumprimento de ordem judicial, inclusive nas ações que tenham por objeto prestação pecuniária''.

Assim, parece-nos óbvio que, apoiado em título executivo judicial ou extrajudicial, o pronunciamento do juiz endereçado ao executado para pagamento de quantia, tanto no artigo 523, quanto no art. 829, jamais poderiam ser considerados como ''despachos inofensivos'', tal como se fosse um ''por favor, executado, será que, sem incomodá-lo, você poderia cooperar a pagar a quantia devida no título no prazo legal? ''.

Não nos parece que seja assim, ainda mais com a expressa menção do artigo 782 do CPC de que ''não dispondo a lei de modo diverso, o juiz determinará os atos executivos, e o oficial de justiça os cumprirá''. O imperativo da norma é claro. Não me parece que possa ser questionado o fato de que o pronunciamento direcionado ao executado naqueles dispositivos [como regra geral em toda a execução] é uma ordem ou mandamento judicial que deve ser cumprido, sob pena de que, se não atendida a determinação, então, sobre o executado incidirão, imediatamente, todas as medidas executivas típicas e/ou as medidas executivas atípicas descritas na clausula geral da execução prevista no artigo 139, IV do CPC.

E aí, minhas senhoras e meus senhores, frise-se, não havendo o ''adimplemento espontâneo'', como de fato não há, tal como revelou a pesquisa mencionada acima [98,25% das execuções autônomas/cumprimento de sentença não houve o adimplemento no prazo processual], penso que deve o magistrado fazer uso das medidas executivas típicas e/ou atípicas, inclusive quando se tratar de prestação pecuniária, usurpando aqui a expressão do próprio art. 139, IV.

Embora eu reconheça que ainda não estejamos ''maduros o suficiente'' ou ''emocionalmente resolvidos'' para admitir um procedimento atípico imediato [e não subsidiário] para pagamento de quantia, acredito que essa hora está se aproximando muito rápido e o futuro [que futuro? ] não está tão longe assim, como confidenciávamos eu e o querido Prof. Rodrigo Mazzei, em banca de mestrado de seu orientando que compomos recentemente na UFES. Inclusive, concordamos, que imediatamente após o ''inadimplemento espontâneo, a atipicidade da medida executiva a ser imposta pode ser idealizada a partir da contribuição feita [cooperação? ] pelo próprio executado que pode indicar meios que possam satisfazer o direito com a menor onerosidade para seu patrimônio (art. 805). Só porque existe um procedimento típico no artigo 824 e ss., ele não pode ser mesclado com medidas executivas atípicas? Por que a cláusula geral da execução (art. 139, IV) se submete à tipicidade procedimental da execução por expropriação e não o inverso especialmente porque a atipicidade pode ser benéfica ao próprio executado?

Lançada a questão à reflexão e seguindo no tema, a verdade inegável é que as hipóteses de medidas processuais que têm sido aplicadas pelos juízes nesse Brasil afora, das quais a apreensão de passaporte e de CNH apenas são exemplos, pode-se dizer que todas elas têm em comum: a) o fato de que em todos estes casos estamos diante de execução para pagamento de quantia; b) nelas já existe um esgotamento infrutífero do procedimento executivo expropriatório típico, e, ainda por cima, c) depois de todo o procedimento típico por expropriação, o processo releva, direta ou indiretamente, que executado ostenta uma situação processual diferente do mundo real que ele vive. Eis que, por isso mesmo, neste momento processual e diante desse cenário, e às vezes impulsionadas por um vernáculo processual que revelam uma ''raiva'' com o comportamento do executado, estas medidas têm sido tratadas, genericamente, e sem a devida análise em concreto, como medidas processuais punitivas (inciso III) e não como medidas processuais coercitivas (inciso IV) do artigo 139.

Diante desse quadro, e, como eu já disse [apimentando ainda mais o debate na busca da satisfação da tutela jurisdicional satisfativa com a menor onerosidade possível] não vejo nenhum problema, neste momento de encruzilhada processual onde a tipicidade do procedimento expropriatório chegou num beco sem saída, mas ao mesmo tempo existem indícios de ocultação do patrimônio, que o juiz utilize as impopulares ''medidas atípicas'', desde que nelas existam uma finalidade coercitiva para que torne possível uma futura medida sub-rogatória. Explico.

Seria uma espécie de medida coercitiva instrumental para uma futura medida sub-rogatória expropriatória.

Enfim, diante dos modelos legais descritos nos artigos 77, IV e 774 do CPC que tipificam hipótese de incidência de sanções processuais típicas previstas no ordenamento jurídico processual contra o executado cafajeste, é perfeitamente possível que, com os devidos balizamentos e cautelas já mencionados, sejam utilizadas medidas atípicas executivas de natureza coercitiva [como a apreensão de passaporte, de CNH, de proibição de utilização de cartão de crédito, etc.] não propriamente para a partir dela se obter a satisfação do crédito exequendo gerando a discussão se são coercitivas ou punitivas, mas sim para, a partir delas, conseguir pressionar o executado a descortinar o seu patrimônio e assim tornar livre o caminho das medidas sub-rogatórias típicas ou atípicas possam incidir para obter a expropriação.

Ainda que esteja evidente o papel cafajeste e seja possível e recomendável a aplicação de sanções punitivas descritas nos tipos previstos nos arts. 77 ou 774 do CPC, estas ''medidas inusitadas e atípicas'' que têm sido aplicadas por aí, não seriam propriamente uma punição de conduta e nem se eternizaria como tal, mas serviriam apenas, temporariamente e diante de uma situação demonstrada em concreto, para fazer com que o executado desobstruísse a execução e desocultasse o seu patrimônio para que outras medidas sub-rogatórias pudessem incidir levando à expropriação judicial. Tratar-se-ia de servir de medida coercitiva instrumental para a incidência de uma medida sub-rogatória em consonância com os artigos 139, IV, 773 e 797 do CPC.

Não é um jogo de palavras. A ideia é a de que o magistrado possa usar medidas coercitivas atípicas não para punir o cafajeste, por mais que o executado o seja. A intenção é que essas medidas [coercitivas atípicas] possam ser utilizadas como métodos processuais de pressão, cujo fim é apenas obter a desocultação do patrimônio, e, por isso mesmo, devem ser aplicadas com todos aqueles critérios que já mencionamos anteriormente.

É preciso ter em conta que o artigo 139, IV não se limita a prever medidas coercitivas ou sub-rogatórias que levem diretamente ao cumprimento da obrigação, mas permite que sejam utilizadas como instrumento, como uma ferramenta para a incidência de uma outra medida sub-rogatória. Enfim, desde que devidamente fundamentado em critérios já mencionados, a decisão judicial de pressionar o executado para que este descortine o seu patrimônio, permitindo que outras medidas sub-rogatórias, típicas ou atípicas, possam incidir não é punir.

Esse pode ser um caminho, porque dos 97% de execuções infrutíferas que pesquisamos, pasmem, quase 30% são contra executados cafajestes. Imaginem esse número no Brasil.

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*Marcelo Abelha Rodrigues é advogado e sócio do escritório Cheim Jorge & Abelha Rodrigues - Advogados Associados.

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