Enumerar taxativamente as hipóteses de cabimento do agravo de instrumento é ato autoritário
Ou se franqueia às partes um mandado de segurança eficaz ao desafio das interlocutórias não agraváveis, ou se alteram as disposições do novo Código.
quarta-feira, 11 de outubro de 2017
Atualizado às 14:48
O Código de Processo Civil de 2015 eliminou o agravo retido e enumerou taxativamente as decisões interlocutórias que podem ser impugnadas por meio de agravo de instrumento no art. 1.015 e em hipóteses específicas.
Antes, de acordo com o Código de 1973, o agravo retido tinha o efeito de obstar a preclusão da matéria agravada. Ademais, permitia-se à parte interpor o agravo de instrumento se a decisão pudesse lhe causar lesão grave e de difícil reparação e nos casos de inadmissão da apelação, bem como nos relativos aos efeitos em que a apelação é recebida (arts. 162, § 2º e 522 CPC/73).
Com a técnica da enumeração taxativa das hipóteses que desafiam agravo de instrumento, o legislador pretendeu limitar o cabimento do recurso, ainda que Luiz Guilherme Marinoni, Sérgio Cruz Arenhart e Daniel Mitidiero admitam a aplicação da analogia na interpretação das hipóteses contidas nos textos.
Sustentam os professores que o fato de o rol ser taxativo não elimina a necessidade de interpretação para sua compreensão. Por exemplo, o legislador prescreve que cabe agravo de instrumento contra as decisões que versarem sobre ''tutelas provisórias''. Por óbvio, tanto o deferimento quanto o indeferimento da tutela sumária desafiam agravo de instrumento. Mas não é só, pois também a decisão que posterga a análise do pedido de antecipação de tutela fundada na urgência para depois da contestação versa sobre tutela provisória.1
Milton Paulo de Carvalho, mais cético, afirma que não se pode esperar bons resultados da supressão do agravo retido e da enumeração taxativa das hipóteses de cabimento do agravo de instrumento. Diz que a impossibilidade de utilização desse recurso cerceia a atividade das partes. Explica que, nos termos do art. 5º, incisos XXXV e LIV da Constituição Federal, o agravo desempenha o importante papel de resguardar as garantias constitucionais do acesso à justiça e do devido processo legal.2
O procedimento previsto em lei integra o conceito de devido processo legal. É dizer, o processo só é legal se desenvolvido de acordo com o procedimento previsto em lei. O agravo assegura o cumprimento do devido processo legal porque é manejado contra decisões que desviam o processo deste procedimento. É, pois, o guardião do devido processo legal, contribuindo para o alcance da segurança jurídica.
É justamente para assegurar que o juízo não se afastará do procedimento que as partes são dotadas de liberdade de pleitear, sem a qual não se poderá falar em acesso à justiça. Ora, o acesso à justiça realiza-se mediante a liberdade de litigar assegurada pelo procedimento legal.
A enumeração taxativa das hipóteses de cabimento de agravo de instrumento é oriunda de processo autoritário, no qual o Estado-Juiz controla o procedimento como bem entender. Foi assim no Código de 1939, promulgado no Estado Novo de Getúlio Vargas, onde o art. 851 trazia a enumeração taxativa das decisões interlocutórias impugnáveis por agravo de instrumento.3
Nesse contexto, é de se supor que os operadores do direito, a doutrina e a jurisprudência tomarão um de dois rumos. Ou acatarão a impetração de mandado de segurança contra as decisões interlocutórias não agraváveis, ou resgatarão o ideal de liberdade intrínseco ao acesso à justiça, reescrevendo no art. 1.015 do CPC/2015 a lapidar disposição do art. 522 do Código Buzaid: ''Das decisões interlocutórias caberá agravo''.4
Humberto Theodoro Júnior, por sua vez, defende que as decisões interlocutórias não agraváveis desafiam mandado de segurança. Invoca o art. 5º, II da lei 12.016/09. Diz que, sem recurso disponível neste momento, eis que a apelação é problemática e remota, a parte se vê impossibilitada de suspender os efeitos da decisão que lhe é prejudicial.5
Ainda assim, os tribunais, com severos critérios para aferição de certeza e liquidez do direito, resistem, indeferindo a imensa maioria dos mandados de segurança hoje impetrados contra decisões interlocutórias não agraváveis. A alegação mais recorrente é a de que a questão deve ser levada a preliminar de apelação ou contrarrazões, mormente porque a decisão não é suscetível de causar lesão grave à parte pela demora (TJSP, Mandado de Segurança nº 2225343-24.2016.8.26.0000, da Comarca de São Paulo, Relator: Carlos Alberto de Salles, data de publicação: 01/03/2017; TJSP, Mandado de Segurança nº 2241309-27.2016.8.26.0000, da Comarca de São Carlos, Relator: Salles Vieira, data de publicação: 22/02/2017; TJRS, Mandado de Segurança nº 71006974299, Comarca de Guaporé, Relatora: Ana Cláudia Cachapuz Silva Raabe, data da publicação: 15/09/2017).
Noutro passo, para que não se diga que todos os mandados de segurança impetrados estão fadados ao insucesso, no Mandado de Segurança nº 2158691-25.2016.8.26.0000, da Comarca de São Paulo, Relator: Silvério da Silva, data de publicação: 13/10/16, o qual tratou da determinação de recolhimento do valor da multa, sob pena de inscrição na dívida ativa, entendeu-se haver direito do autor em não ter a dívida lançada em seu nome até final decisão acerca da matéria, pelo que a segurança foi concedida.
É certo que, com a técnica da enumeração taxativa das hipóteses que desafiam agravo de instrumento, o legislador pretendeu limitar o cabimento do recurso. É o que vem acontecendo na prática dos tribunais, embora se argumente que o rol é deveras extenso ou que caiba sua interpretação por analogia.
Em reação, a esmo, a doutrina tem lançado mão de críticas e sugestões ao legislador. Quanto ao mais, defende a impetração do mandado de segurança contra as decisões interlocutórias não contempladas no rol taxativo. As partes, por sua vez, quando necessário, estão valendo se do mandado de segurança para defesa de seus direitos, contudo, quase sempre, sem alcançar seu intento, pois os tribunais resistem e só muito raramente concedem a segurança.
Com efeito, os tribunais receiam que fazer do mandado de segurança remédio eficaz para combater decisões interlocutórias não agraváveis possa desencadear uma corrida desenfreada ao ''writ'', abarrotando, ainda mais, a justiça.
Ante o exposto, concluímos que a enumeração taxativa das hipóteses de cabimento do agravo de instrumento é ato autoritário que limita o uso do recurso e, por conseguinte, o acesso à justiça. Portanto, de duas uma, ou se franqueia às partes um mandado de segurança eficaz ao desafio das interlocutórias não agraváveis, ou se alteram as disposições do novo Código.
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1 MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel, O Novo Processo Civil, Ed. Revista dos Tribunais, São Paulo, 2015, pp. 525-526.
2 CARVALHO, Milton Paulo de, De algumas regras novas no Processo Civil Brasileiro, Cadernos Jurídicos, ano 16, nº 41, São Paulo, Julho-Setembro de 2015, p. 57.
3 Art. 851. Caberá agravo no auto do processo das decisões:
I - que julgarem improcedentes as exeções de litispendência e coisa julgada;
II - que não admitirem a prova requerida ou cercearem, de qualquer forma, a defesa do interessado;
III - que concederem, na pendência da lide, medidas preventivas;
IV - que considerarem, ou não, saneado o processo, ressalvando-se, quanto à última hipótese o disposto no art. 846.
4 CARVALHO, Milton Paulo de, De algumas regras novas no Processo Civil Brasileiro, Cadernos Jurídicos, ano 16, nº 41, São Paulo, Julho-Setembro de 2015, p. 57.
5 THEODORO JÚNIOR, Humberto, Curso de Direito Processual Civil, v. III, 50ª ed., Ed. Forense, Rio de Janeiro, 2017, p. 1051.
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*Reinaldo Marques da Silva é especialista em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Direito Tributário - IBDT; Graduado em Direito e Administração de Empresas. É também Servidor Público em São Paulo.