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A liberdade em xeque e a sociedade em guarda

Carlos Ayres Britto e Eduardo Mendonça

Uma reflexão conjunta sobre os riscos trazidos pela emenda parlamentar que, de última hora, introduzia grave restrição à liberdade de expressão nas eleições.

sábado, 7 de outubro de 2017

Atualizado às 08:19

Animados pela nossa habitual interlocução como estudiosos da Constituição e preocupados com a emenda parlamentar que, de última hora, e a nosso ver, introduziu uma grave restrição à liberdade de expressão nas próximas eleições populares, decidimos fazer uma reflexão conjunta sobre os riscos trazidos pela novidade. Ficamos aliviados com a notícia do veto anunciado pelo Senhor Presidente da República, após elogiável solicitação do próprio Deputado que formulara a proposta. O debate público mostrou sua força. De todo modo, considerando a tramitação legislativa do próprio veto, assim como a existência de projetos similares no Congresso Nacional, temos como importante manter a guarda e a cabeça elevada contra todo tipo de censura ao debate público. Este o sentido desta nossa tentativa de contribuição acadêmica e ao mesmo tempo cívica.

 

I. A centopeia da censura prévia

Carlos Ayres Britto

A torcida do Sport Club Internacional costuma chamá-lo de "campeão de tudo". Isso para dar conta, óbvio, dos títulos de relevância que o time colorado conquistou no Brasil e mundo afora. O contrário, ao que nos parece, dessa rumorosa emenda parlamentar-congressual que tem por objeto obrigar os provedores de aplicativos e redes sociais a suspender a publicação de conteúdo que vier a ser denunciado como "discurso de ódio, disseminação de informações falsas ou ofensa em desfavor de partido ou candidato". Emenda que dá as costas para o que há de mais intrinsecamente civilizado na Constituição quanto aos direitos fundamentais de imprensa e de internet. Sobredireitos, em rigor, porquanto destinados a reforçadamente relançar os bens de personalidade em que se traduz a plenitude da liberdade de "manifestação do pensamento" e de opinião. Este, como decorrência lógica daquele. Mas uma liberdade de pensamento e de opinião a que se agregam o direito de "acesso à informação" (resguardado o sigilo da fonte para preservar o exercício da profissão de jornalista) e da "livre expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independente de censura ou licença").

É como tem reconhecido o Supremo Tribunal Federal, de cujas ementas de acórdãos transcrevemos as seguintes e elucidativas passagens:

I - "CAPÍTULO CONSTITUCIONAL DA COMUNICAÇÃO SOCIAL COMO SEGMENTO PROLONGADOR DE SUPERIORES BENS DE PERSONALIDADE QUE SÃO A MAIS DIRETA EMANAÇÃO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA: A LIVRE MANIFESTAÇÃO DO PENSAMENTO E O DIREITO À INFORMAÇÃO E À EXPRESSÃO ARTÍSTICA, CIENTÍFICA, INTELECTUAL E COMUNICACIONAL. TRANSPASSE DA NATUREZA JURÍDICA DOS DIREITOS PROLONGADOS AO CAPÍTULO CONSTITUCIONAL SOBRE A COMUNICAÇÃO SOCIAL. O art. 220 da Constituição radicaliza e alarga o regime de plena liberdade de atuação da imprensa, porquanto fala: a) que os mencionados direitos de personalidade (liberdade de pensamento, criação, expressão e informação) estão a salvo de qualquer restrição em seu exercício, seja qual for o suporte físico ou tecnológico de sua veiculação; b) que tal exercício não se sujeita a outras disposições que não sejam as figurantes dela própria, Constituição. A liberdade de informação jornalística é versada pela Constituição Federal como expressão sinônima de liberdade de imprensa. Os direitos que dão conteúdo à liberdade de imprensa são bens de personalidade que se qualificam como sobredireitos. Daí que, no limite, as relações de imprensa e as relações de intimidade, vida privada, imagem e honra são de mútua excludência, no sentido de que as primeiras se antecipam, no tempo, às segundas; ou seja, antes de tudo prevalecem as relações de imprensa como superiores bens jurídicos e natural forma de controle social sobre o poder do Estado, sobrevindo as demais relações como eventual responsabilização ou consequência do pleno gozo das primeiras. A expressão constitucional "observado o disposto nesta Constituição" (parte final do art. 220) traduz a incidência dos dispositivos tutelares de outros bens de personalidade, é certo, mas como consequência ou responsabilização pelo desfrute da "plena liberdade de informação jornalística" (§ 1º do mesmo art. 220 da Constituição Federal). Não há liberdade de imprensa pela metade ou sob as tenazes da censura prévia, inclusive a procedente do Poder Judiciário, pena de se resvalar para o espaço inconstitucional da prestidigitação jurídica. Silenciando a Constituição quanto ao regime da internet (rede mundial de computadores), não há como se lhe recusar a qualificação de território virtual livremente veiculador de ideias e opiniões, debates, notícias e tudo o mais que signifique plenitude de comunicação" (ADPF 130);

II - "A liberdade de imprensa assim abrangentemente livre não é de sofrer constrições em período eleitoral. Ela é plena em todo o tempo, lugar e circunstâncias. Tanto em período não-eleitoral, portanto, quanto em período de eleições gerais. Se podem as emissoras de rádio e televisão, fora do período eleitoral, produzir e veicular charges, sátiras e programas humorísticos que envolvam partidos políticos, pré-candidatos e autoridades em geral, também podem fazê-lo no período eleitoral. Processo eleitoral não é estado de sítio (art. 139 da CF), única fase ou momento de vida coletiva que, pela sua excepcional gravidade, a Constituição toma como fato gerador de "restrições à inviolabilidade da correspondência, ao sigilo das comunicações, à prestação de informações e à liberdade de imprensa, radiodifusão e televisão, na forma da lei" (ADIN 4451 (DF).

Não fica por aí essa emenda que se nos afigura anticampeã de tudo, se comparada com outras passagens da Constituição que receberam o qualificativo de "fundamentais". Primeira ilustração? Os princípios da "cidadania" e da " Soberania popular". Este, a ter a sua expressão maior no voto direto e secreto; porém que somente é dado em clima de liberdade e consciência, se precedido de uma cidadania apta a se inteirar das coisas. Tintim por tintim, até para influenciar terceiros. Noutro falar, perquirir, debater, questionar, saber, este o Jurídico espaço da cidadania. Tudo voltado, logicamente, para a vida pregressa de candidatos a cargos eletivos, desempenho dos agentes do Poder, dia-a-dia dos partidos políticos. Donde o STF ajuizar, na referida ADIN 4451, que é justamente em épocas de eleição popular que o cidadão mais necessita se inteirar dos assuntos da polis.

Uma outra ilustração reside no princípio da mais ampla ou aberta publicidade do processo legislativo, tanto para o devido conhecimento dos parlamentares quanto do público em geral. Princípio notoriamente estapeado em cada qual das Casas Legislativas do Congresso Nacional, sabido que "A proposta foi votada na madrugada de quinta (5) pela Câmara e na tarde do mesmo dia pelos senadores. O tema não chegou a ser abordado nas discussões dos senadores - sua aprovação passou despercebida" (Folha de São Paulo, sexta-feira, 6 de outubro de 2017, A4, poder".

Esse acabrunhante recorde em desapreço pela Constituição tem a adensa-lo outros aspectos da emenda em causa. Todavia, para que o presente artigo não se desfigure como tal em número de caracteres de espaço e grafia, contentamo-nos em pontuar que ela, emenda parlamentar congressual, ainda incorre num tipo de impropriedade vernacular que sempre foi signo de absolutismo estatal: valer-se de enunciado normativo demasiadamente abertos em seu núcleo significativo como fórmula de estreitamento do espaço de movimentação jurídica dos particulares. Assunto, contudo, para um novo artigo, pois o fato em que, em boa hora, o Presidente da República vetou a emenda de que tanto estamos a falar mal. De que tanto estamos a falar mal, entenda-se, sob ângulo exclusivamente jurídico e com as vênias de estilo. Que sobrevenha a fase legislativa de apreciação de tal veto presidencial.

II. Reforma política com censura surpresa: não estamos fazendo isso certo

Eduardo Mendonça

Um dos raros consensos da sociedade brasileira era a necessidade urgente de uma reforma política, pela qual se deveria, antes de tudo, encurtar o fosso crescente entre representantes e representados. Em outras palavras: reduzir a percepção, amplamente dominante, de que a política no Brasil tem sido exercida muito mais em proveito dos próprios governantes do que no interesse da coletividade, à margem de controle social efetivo.

Na contramão de tudo isso, de última hora e sem qualquer debate público, a sociedade foi surpreendida pela inclusão de um artigo destinado a cercear a crítica aos candidatos a cargos eletivos. E isso justamente durante o período das eleições, quando a circulação de informações deveria ser especialmente livre e desembaraçada. Segundo a nova regra, bastaria a requisição de qualquer usuário de internet - no que se incluem candidatos e partidos - para que se determinasse a suspensão imediata de publicações, sem a necessidade de ordem judicial. Removido o conteúdo, os provedores teriam de verificar a identificação pessoal do seu autor, supostamente como requisito para o restabelecimento da divulgação. O objetivo declarado seria coibir "discursos de ódio e a disseminação de informações falsas ou ofensa em desfavor de partido ou candidato".

O resultado inevitável, porém, seria a criação de um insólito direito potestativo de exercer censura política por mero ato de vontade, sem qualquer parâmetro externo ou possibilidade real de controle. Do ponto de vista teórico, inverte-se a regra constitucional de vedação à censura, substituída por uma sistemática de cerceamento preventivo, desacompanhado de fundamentação e efetuado segundo a conveniência dos próprios interessados. Já soa insustentável, mas a prática consegue ser ainda mais lúgubre.

Afinal, não é plausível supor que os provedores teriam condições de verificar individualmente a autoria de cada postagem questionada. Aliás, sendo inviável checar a identidade dos próprios denunciantes, não haveria embaraço à criação de perfis artificiais com o objetivo de derrubar, em massa, toda informação desfavorável ou crítica aos atores políticos. A pretexto de depurar o debate público de possíveis abusos, a internet seria transformada em um mural de recados desprovido de qualquer autenticidade, editado livremente por quem se alegue ofendido. Uma autentica distopia informacional, em que os cidadãos perdem a confiança na informação disponível e, por conseguinte, a esperança que ainda resta na transparência da gestão pública.

Se um sistema como esse seria arbitrário em qualquer contexto, a sua aplicação às eleições contraria os fundamentos mais básicos do princípio republicano. Partidos e candidatos colocam-se, voluntariamente, à disposição dos eleitores para disputar mandatos populares. Por isso mesmo, têm um dever reforçado de aceitar o escrutínio da opinião pública. Além disso, têm plenas condições de coibir eventuais discursos ilícitos, combatendo a desinformação com a informação. E isso não apenas no próprio debate público instaurado na campanha, mas também pela provocação da Justiça Eleitoral, que funciona em regime de plantão durante as eleições e tem um histórico favorável à remoção de publicações ofensivas ou mesmo excessivamente ácidas.

A insatisfação com os mecanismos institucionais de controle e contraponto parece sugerir que o problema não é apenas o medo do abuso, mas também o desconforto com a circulação de informações. Nesse sentido, o contexto de aprovação da novidade não deixa de ser emblemático. Após meses de tramitação da reforma política e numerosas audiências públicas, as Casas Legislativas parecem ter considerado natural aprovar tamanha restrição à liberdade de expressão sem nenhum debate público, na véspera do prazo fatal para que a matéria fosse sancionada a tempo de valer nas próximas eleições.

Tratada como estorvo aos projetos políticos pessoais dos postulantes ao poder, a opinião pública expressou sua indignação. E venceu. A vitória do clamor pelo veto à censura é uma mensagem poderosa de afirmação da sociedade civil. Que seja esse o começo da verdadeira reforma política.

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*Carlos Ayres Britto é ex-presidente do Supremo Tribunal Federal, do Conselho Nacional de Justiça e do Tribunal Superior Eleitoral. Doutor em Direito Público pela PUC de São Paulo e membro da Academia Brasileira de Letras Jurídicas. Professor de Direito Constitucional do UNICEUB e Presidente do CEBEC - Centro Brasileiro de Estudos Constitucionais. Advogado no escritório Ayres Britto Consultoria Jurídica e Advocacia.

*Eduardo Mendonça é professor de Direito Constitucional do UNICEUB e Coordenador-Geral do CEBEC - Centro Brasileiro de Estudos Constitucionais. Doutor em Direito Público pela UERJ. Membro da Comissão Nacional de Estudos Constitucionais, do CFOAB. Conselheiro do Instituto UNICEUB de Cidadania. Advogado no escritório Barroso Fontelles, Barcellos, Mendonça & Associados.

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