Habeas corpus monetário
D. Hermengarda, a secretária da minha modesta firma de advocacia (que há muito tempo havia sido contabilizada como ativo imobilizado) havia me informado que eu somente teria duas clientes, agendadas para as 15 horas. Seriam elas as senhoras Real e Dólar. Achei um pouco estranho o nome delas, mas já vi tanta coisa nesta vida que me acostumei com tudo.
segunda-feira, 25 de setembro de 2017
Atualizado em 22 de setembro de 2017 11:49
"O amor ao dinheiro é o Pico do Everest de todos os males."
(De um filósofo alpinista)
Aquele prometia ser um dia calmo no meu escritório. D. Hermengarda, a secretária da minha modesta firma de advocacia (que há muito tempo havia sido contabilizada como ativo imobilizado) havia me informado que eu somente teria duas clientes, agendadas para as 15 horas. Seriam elas as senhoras Real e Dólar. Achei um pouco estranho o nome delas, mas já vi tanta coisa nesta vida que me acostumei com tudo. Dessa forma, eu almocei tranquilamente e dei mais uma olhada nos jornais. Tudo a mesma coisa: prisões às seis horas da manhã e justificações e interpretações durante todo o resto do dia. Prende Temer! Solta Temer! Lia-se e e ouvia-se em todos os lugares. Pelo menos no ar havia menas flechas. De outro lado, não me preocupei com os prazos porque estavam todos em ordem.
Precisamente no horário marcado D. Hermengarda me avisou pelo interfone que as clientes haviam chegado, havendo eu pedido que as encaminhasse para a minha sala, enquanto ia ao toilette, a fim de lavar as mãos. Na volta não havia ninguém. Liguei então para a D. Hermengarda e ela me disse que as clientes estavam sentadas nas duas cadeiras bem em frente da minha mesa e que elas eram bem pequenininhas. Então eu me levantei, debrucei-me sobre a mesa e qual não foi o meu espanto quando vi duas figurinhas de cerca de 15 cm de altura, sentadas naquelas cadeiras. Achei que era uma brincadeira da D. Hermengarda, mas ela não era disso, sempre muito circunspecta, tipo mordomo inglês clássico. Antes que pudesse dizer qualquer coisa (devia estar com uma bela cara de espantado), uma vozinha disse bem baixo:
- Boa tarde, Dr. Epaminondas, eu sou a Sra. Real e minha amiga aqui ao lado é a D. Dólar.
- Ma... mas...!
- Não se assuste, doutor, sei que é estranho, mas podemos explicar tudo.
Olhei bem para elas, ainda de pé, meio encurvado por cima da minha mesa. As duas tinham pequenas cabeças, pernas e braços bem finos e mãos e pés diminutos. O tronco da Sra. Real era uma nota de cem reais e o da D. Dólar o de uma nota de cem dólares. Sem qualquer dúvida. Conheço bem como elas são.
- Dr. Epaminondas, deixe-nos explicar.
- Yes, yes, disse a D. Dólar.
- Nós somos duas representantes daquela pequena montanha de dinheiro que foi achada lá em Salvador pela Polícia Federal. Viemos aqui para expor o nosso caso e pedir que nos ajude.
- Ben ditou, disse a Sra. Dólar.
- Esperem um pouco, vocês querem que eu acredite nisso? Deve existir por aqui alguém brincando de marionete e de ventríloquo, querendo me fazer de trouxa. Algumas vezes fui trouxa mesmo, mas não vou cair em outra.
- Não, não, Dr. Epaminondas, nosso problema é tão grande que a Providência, com grande bondade nos deu algumas características humanas para que procurássemos ajuda. Lá onde estamos presas ouvimos falar muito bem do senhor. É um advogado competente e honesto e muito humano com os seus clientes, justamente do que precisamos.
Eu fiquei ali parado, olhando ora para uma, ora para outra. Então me sentei e liguei para a D. Hermengarda para pedir um copo de água gelada e um café bem forte. Quem sabe fora algo que eu havia comido. Depois de alguns minutos ela entrou na sala com as bebidas e perguntou se as visitas também desejavam a mesma coisa, se bem que eu não soubesse como servi-las, a não ser usando um dedal da sua indefectível caixinha de costura, ideia que eu mesmo dei. Quer dizer que D. Hermengarda também as via como eu e não achava nada de mais naquelas duas?
- D. Hermengarda, a senhora viu direitinho quem são essas duas? Não achou tudo isso muito estranho?
- Doutor, depois de tudo o que aconteceu nesta sala, por que eu iria me espantar com alguma coisa? Lembra-se daquele russo que só conversava plantando bananeira e que gostava de roubar pneu de carro só para fazê-los rolar ladeira abaixo? Então, isto aqui não é nada mesmo.
Pensando bem, D. Hemengarda tinha razão. Aquele russo era mesmo muito estranho, sem contar os dois velhinhos que davam tiros de sal colorido nos transeuntes com espingardas de ar comprimido.
Dando uma tossidinha para limpar a garganta eu puxei a minha cadeira para o lado da mesa, de forma a que pudesse ver as duas clientes sem torcer o pescoço.
- Muito bem, minhas senhoras, vamos à sua história. Mas antes precisamos combinar os meus honorários. Se for uma consulta será por hora. Caso tenha de tomar alguma medida judicial eu verei depois de ter conhecimento do caso em quanto ficarão.
- Não tem problema, doutor. Nós nos pagamos em espécie e seja quanto for o que o senhor nos cobre, tem muitas colegas lá no cofre da Federal para completar o preço.
- Yes, rial ou dólar, disse a própria.
- Vou falar por nós duas e como representantes de todas as colegas do bolo dos 51, que foram mesmo uma má ideia. Ela tomou um gole do dedal de água e começou a contar a sua história.
- Nós todas nascemos em épocas diferentes, a maior parte no Brasil e a outra na terra do Tio Sam. Nossa história como moeda remonta ao tempo em que se pagava com sal. Depois de muitos séculos, como o senhor sabe, nós viramos dinheiro de papel e servimos essencialmente para o pagamento de despesas dos nossos donos.
- Isto, todou tipou de despesas, disse a D. Dólar.
- Mas veja, doutor, nós viemos a este mundo para dar alegria às pessoas, para proporcionar que elas comprem coisas para o seu próprio bem, coisas boas e honestas. Nenhuma de nós foi emitida conscientemente pelos nossos criadores para servirmos a propósitos desonestos. Longe disto. A verdadeira riqueza das nações e das famílias implica em que o nosso uso seja produtivo e que circulemos durante todo o tempo, sem nos escondermos.
- Yes, yes e dessa jeitou nós visitamos muitos lugares bonitous, acrescentou D. Dólar.
- Doutor, falou a senhora Real retomando a palavra, o que acontece é que tem gente nos escondendo em malas pretas, em caixas de papelão, em roupas de baixo (algumas não muito bem lavadas), em fundos falsos de carros, de navios e de aviões. Também em muitos outros lugares que não foram feitos para nós e aos quais não fica bem nos referirmos.
- I que falta de arrr, doutor, disse a D. Dólar, me sintia muitou mal.
- Doutor, pelas conversas que ouvimos a gente sabe que esses donos não nos ganharam como fruto do seu trabalho. Poderíamos até fazer uma delação monetária. O único trabalho que eles têm é o de nos carregar escondidas para lugares mais escondidos ainda. E o pior de tudo, ficamos um tempão paradas, sem sair do lugar, sem servir para comprar nada, sem dar alegria a uma criança, a uma esposa, a uma família. Completamente inúteis. E olhe, quantas vezes nós fomos usadas para viagens a Miami, à Disney, à Europa. E nem se fale da compra de casas onde nossos donos iriam morar. Nem precisava que nós ficássemos para lá e para cá. Éramos guardadas direitinho nos caixas dos bancos, e os nossos representantes, os cheques, faziam o nosso trabalho externo. Depois vieram os cartões de crédito e de débito e nos viajávamos pelos olhos da nossa imaginação a cada negócio que era feito.
- Certo, certo, disse a d. Dólar. E não temos nada a ver com aquelas fraudes fantasmas, os bitcoins que alguém inventou por aí. Eu pessoalmentchi não me troco por nenhum delis, ela acrescentou. Alguém perderá muitas de nós com eles. Bitcoins, go home!
- E olhe, doutor, esses donos estranhos não nos usam como as pessoas normais. Estas nos colocam na carteira ou guardam em casa para uma necessidade. Ou depositam no banco quando a quantia é maior. Aqueles outros nos abraçam bem forte junto ao peito, nos acariciam de olhos fechados. E até nos beijam.
- Disgusting, afirmou D. Dólar.
- Deixam em nós impressões digitais e labiais.
- Al right! Digital impressions and labial impressions, repetiu a Sra. Dólar.
- Nos contam e recontam e depois nos guardam de novo, continuou a Sra. Real. Olhe que nós ficamos muitas vezes por meses a fio presas até mesmo em buracos na parede ou em fossos bem fundos, enroladas em sacos de plástico. E agora, na Federal, estamos presas em sacos plásticos, amarrados com um lacre, sem poder respirar. Está um sufoco.
- Bem, disse eu, é tudo muito triste mesmo, mas o que eu poderia fazer por vocês? Não vejo como poderia ajudá-las.
- Soubemos que o senhor impetra uma medida bem eficaz para libertar pessoas que são presas sem motivo.
- Isto mesmo, se chama habeas corpus.
- Então, o doutor faria uma habeas corpus para todas nós, não somente para mim e para a D. Dólar, mas para todas as nossas colegas que estão indevidamente presas naquele canto.
- Há, há! Gracejei eu. Seria um habeas corpus monetário!
- Very well! Gritou D. Dólar.
- Maravilha! Exclamou a Sra. Real.
- Calma, calma! Disse eu. As coisas não funcionam assim. Vocês são muito simpáticas, mas não são pessoas humanas. O habeas corpus é só para elas.
- Não diga isso, doutor, reclamou a Sra. Real. Nós termos um corpus, não está vendo, ou somos transparentes? Então o senhor nos "habeas".
- She's right! Afirmou D. Dólar.
- Isto mesmo. Será que não se pode apoiar nossa pretensão na dignidade cedular, na livre circulação das cédulas, na nossa função social? Redarguiu a Sra. Real. É só usar a analogia, como vocês advogados falam, não é verdade?
- Eu fiquei olhando para as duas. Bem que eu podia fazer bom uso de um par delas, tirando-as daquela prisão insalubre. Afinal de contas, os tempos estão difíceis e o que elas me pedem é perfeitamente justificável. É o direito de uma cédula circular tanto a quanto o de um passarinho voar.
- Caras senhoras, podem deixar comigo. Vou estudar o seu caso com a maior dedicação e muito em breve lhes darei uma resposta, que certamente atenderá os seus interesses e de todas as suas colegas. Palavra de Epaminondas!
- Muito obrigado, doutor, disseram elas.
- E como voltarão para onde vieram?
- Do mesmo jeito como viemos. De Uber. Temos alguma coisa em haver com alguns cartões de crédito. E lembre-se, doutor, nós estamos perto da nossa extinção, tanto quanto os dinossauros que já se foram. Daqui a algum tempo somente existiremos em museus. Mas por enquanto, que possamos gozar a vida realizando livremente a nossa vocação.
Nos cumprimentamos e elas se foram embora. Quanto a mim, eu comecei a matutar em como botar no papel, nos termos da lei, as justificativas que elas me haviam dado. Será que tem algum colega aí com uma boa ideia para me ajudar? Rachamos o preço dos serviços.
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*Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa é sócio do escritório Duclerc Verçosa Advogados Associados. Professor Sênior de Direito Comercial da Faculdade de Direito da USP.