Ação rescisória e tutela jurisdicional colaborativa
Na realidade, e isso serve como regra geral, pensamos que toda vez que determinada norma for objeto de divergência doutrinária e jurisprudencial, o juiz deve indicar expressamente o seu posicionamento nos mandados de citação/intimação, despachos e decisões, a fim de prevenir prejuízos e consequências processuais decorrentes de eventual interpretação equivocada. Se assim não agir, deve - ao menos em caso de "dúvida razoável" - reconhecer oportunamente a validade do ato, se, nesse ínterim, a matéria vier a ser pacificada em sentido contrário àquele que o praticou.
quinta-feira, 21 de setembro de 2017
Atualizado às 08:23
Todos aqueles que participam do processo devem cooperar entre si para que se obtenha, em tempo razoável, decisão de mérito justa e efetiva (art. 6º do CPC).
No caso do juiz, o dever de cooperação engloba os deveres de a) esclarecimento (agir de modo transparente e pragmático, proferindo comandos claros e objetivos); b) consulta (incentivar o diálogo e fomentar o debate); c) prevenção (alertar riscos e diligenciar para que os atos processuais não sejam praticados de forma viciada ou para que possam ser corrigidos rapidamente - noção intimamente ligada à ideia de primazia de mérito1; e d) auxílio (remover obstáculos impeditivos e reduzir desigualdades).
Ainda sustentamos o dever de comprometimento do juiz, que compreende a ideia de operosidade2 e de máxima dedicação à causa. A ideia é dar todo o rendimento possível a cada processo em si mesmo considerado e garantir o comprometimento do magistrado na entrega da prestação jurisdicional. Em outras palavras, é agir com eficiência e extrair o máximo de produtividade da atividade judicante, com menor dispêndio de tempo e de recursos.3
Em razão das dimensões reduzidas deste texto, analisaremos algumas situações envolvendo a atuação colaborativa do juiz especificamente em sede de ação rescisória.
A primeira delas diz respeito à possibilidade de emenda da petição inicial - embora não haja previsão expressa no capítulo pertinente (arts. 966 a 975 do CPC) -,4 seja por força da aplicação subsidiária do procedimento comum à ação rescisória (arts. 318, parágrafo único, c/c 321 do CPC), seja em razão do dever de cooperação do juiz (art. 6º do CPC).
Sob esse prisma, se o autor propuser a ação rescisória (demanda que possui fundamentação vinculada) sem indicar, por exemplo, a respectiva causa de pedir (um dos incisos do art. 966 do CPC), compete ao magistrado, antes de indeferir a petição inicial, intimar a parte para manifestar-se a respeito, prestigiando o dever de esclarecimento.
Da mesma forma, se o autor não comprovar, no ato de distribuição da ação rescisória, o depósito de 5% sobre o valor da causa (art. 968, § 2º, do CPC),5 cabe ao juiz, antes de indeferir a petição inicial, intimar o demandante para efetuar ou comprovar o aludido depósito. A providência está em linha com a ideia de primazia de mérito e materializa o dever de prevenção.
Uma questão que, vez ou outra, atormenta a vida dos advogados gira em torno do endereçamento da ação rescisória, diante da dificuldade em se identificar a decisão rescindenda. Isso normalmente acontece quando o tribunal "não conhece" do recurso, mas, na verdade, enfrenta o mérito da questão, operando-se, na prática, a substituição da decisão anterior.
Justamente para evitar extinções prematuras de ações rescisórias,6 o legislador, em linha com o modelo colaborativo de processo, estabeleceu expressamente que, uma vez reconhecida a incompetência do tribunal, "o autor será intimado para emendar a petição inicial, a fim de adequar o objeto da ação rescisória, quando a decisão apontada como rescindenda não tiver apreciado o mérito e não se enquadrar na situação prevista no § 2o do art. 966 e tiver sido substituída por decisão posterior" (art. 968, § 5º, I e II, do CPC).7
No que tange à improcedência liminar do pedido (art. 332 do CPC), instituto que também se aplica à ação rescisória (art. 968, 4º, do CPC), não há dispositivo legal determinando que o juiz ouça o demandante antes de fulminar o respectivo pleito, seja com base nos precedentes de observância obrigatória, seja em razão da prescrição ou decadência (art. 487, parágrafo único, do CPC). A percepção é de que, nesse caso específico, o legislador autorizou o juiz a decidir de ofício, sem a prévia oitiva da parte interessada.
Apesar de não nos parecer a melhor orientação, em razão do dever de consulta (art. 6º do CPC)8 e do contraditório-participativo (arts. 9º e 10 do CPC), a sistemática, no procedimento comum, não traz maiores prejuízos, já que o contraditório pode ser exercido na apelação, havendo, inclusive, possibilidade de efeito regressivo. Ou seja, o juiz pode se retratar (art. 332, § 3º, do CPC).
Na ação rescisória, porém, dadas as suas particularidades, existe uma situação na qual o dever de consulta é inegociável: quando a improcedência liminar emana de acórdão de julgamento proferido pelo tribunal. Isso porque, nesse caso, a parte só terá como manejar recurso especial ou recurso extraordinário, recursos com fundamentação vinculada, sem amplo contraditório e que não têm previsão de juízo de retratação.9 Trata-se de questão sensível que demanda cuidado especial por parte dos tribunais.
Por fim, no que toca ao dever de auxílio, o novo diploma processual estabelece que, se os fatos alegados pelas partes dependerem de prova (decisão rescindenda baseada em prova falsa, por exemplo - art. 966, VI, do CPC), o relator poderá delegar a competência ao órgão que proferiu a decisão rescindenda, fixando prazo de 1 (um) a 3 (três) meses para a devolução dos autos. Trata-se de exemplo de delegação de competência e "cooperação transjudicial"10 lastreado no dever de auxílio, cuja finalidade primordial é remover eventuais obstáculos impeditivos,11 assegurar a "paridade de tratamento" (art. 7º do CPC) e garantir a efetividade (art. 8º do CPC).
Um registro final: até que as cortes superiores definam algumas controvérsias relacionadas à ação rescisória, como, por exemplo, o início do prazo decadencial quando a decisão rescindenda for uma interlocutória parcial de mérito (apesar do disposto no art. 975 do CPC, discute-se se o termo a quo deve ser contado da última decisão proferida no processo ou se a partir do trânsito em julgado de cada parcela do pedido), não se pode surpreender o jurisdicionado. A segurança jurídica e a confiança são vetores estruturantes do ordenamento jurídico.
Assim, não deve ser reconhecida eventual decadência, caso o interessado, por algum motivo,12 proponha a ação rescisória 2 anos após o trânsito em julgado de parcela do pedido, mas antes do trânsito em julgado da última decisão proferida no processo. Caso contrário, estar-se-ia violando frontalmente o dever de prevenção.
Na realidade, e isso serve como regra geral, pensamos que toda vez que determinada norma for objeto de divergência doutrinária e jurisprudencial, o juiz deve indicar expressamente o seu posicionamento nos mandados de citação/intimação, despachos e decisões, a fim de prevenir prejuízos e consequências processuais decorrentes de eventual interpretação equivocada. Se assim não agir, deve - ao menos em caso de "dúvida razoável" - reconhecer oportunamente a validade do ato, se, nesse ínterim, a matéria vier a ser pacificada em sentido contrário àquele que o praticou.
Em resumo, o dever de cooperação é norma fundamental do processo civil e deve permear toda a atividade jurisdicional, a fim de garantir maior coesão, integridade e unicidade sistêmica.
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1 A expressão foi difundida por Fredie Didier em textos e palestras (clique aqui), e abordada em DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito Processual Civil. v. 1. 17ª ed. Salvador: Jus Podivm, 2015, p. 136-137. Para o doutrinador, "o órgão deve priorizar a decisão de mérito, tê-la como objetivo e fazer o possível para que ocorra. A demanda deve ser julgada - seja ela a demanda principal (veiculada pela petição inicial), seja um recurso, seja uma demanda incidental".
2 CARNEIRO, Paulo Cezar Pinheiro. Acesso à Justiça: Juizados Especiais Cíveis e Ação Civil Pública. Uma nova sistematização da Teoria Geral do Processo. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003.
3 MAZZOLA, Marcelo. Cooperação e Operosidade. A inobservância do dever de colaboração pelo juiz como fundamento autônomo de impugnação. Dissertação de Mestrado em Direito Processual, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2017.
4 José Rogério Cruz e Tucci assinala que, "embora não haja previsão expressa, o prazo a ser concedido para emenda da inicial [na ação rescisória] deverá ser de 15 dias, por aplicação analógica do artigo 321 (CPC/2015). TUCCI, José Rogerio Cruz e. Novo Código de Processo Civil traz mudanças na ação rescisória.
5 PINHO. Humberto Dalla Bernardina de. Direito Processual Civil Contemporâneo. v. 2. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 837. Vale registrar que o valor não pode ser superior a 1.000 (mil) salários mínimos (art. 968, § 2º, do CPC).
6 Dentro dessa ideia de aproveitamentos dos atos processuais e prestígio à primazia de mérito, vale registrar que o STJ já converteu ação rescisória (inadequadamente proposta) em querela nullitatis, remetendo-se os autos ao juízo competente. STJ, EDcl nos EDcl na AR nº 569/PE, Primeira Seção, Rel. Min. Campbell Marques, DJe 30.08.2011.
7 Nesse caso, após a emenda da petição inicial, o réu tem o direito de complementar os fundamento da defesa, antes da remessa dos autos ao tribunal competente (art. 968, § 6º, CPC).
8 O dever de consulta não subtrai do juiz o poder de eleger a norma jurídica aplicável ao caso, mas o obriga, ao menos, a franquear às partes a oportunidade de influir e de participar da formação de seu convencimento. Até porque, o magistrado pode perfeitamente mudar de opinião depois de ouvir as partes e melhor refletir. Entendemos, ainda, que o dever de consulta é fundamental para garantir a coesão do sistema dos precedentes criado pelo CPC (arts. 926 e 927). A propósito, o parágrafo primeiro do art. 927 dispõe que "os juízes e os tribunais observarão o disposto no art. 10 e no art. 489, § 1o, quando decidirem com fundamento neste artigo". Ou seja, o magistrado deve ouvir as partes antes de aplicar ou afastar o paradigma ao caso concreto.
9 No mesmo sentido defendem Daniel Mitidiero e Luiz Guilherme Marinoni. MITIDIERO, Daniel; MARINONI, Luiz Guilherme. Ação rescisória - do juízo rescindente ao juízo rescisório. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017, p. 303-304.
10 CABRAL, Antonio do Passo. Juiz natural e eficiência processual: flexibilização, delegação e coordenação de competências no processo civil. Tese apresentada no concurso de provas e títulos para provimento do cargo de Professor Titular de Direito Processual Civil da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2017.
11 CARNEIRO, Paulo Cezar Pinheiro. Acesso à Justiça: Juizados Especiais Cíveis e Ação Civil Pública. Uma nova sistematização da Teoria Geral do Processo. Op. cit., p. 67.
12 Pode ocorrer de o exequente resolver dar início ao cumprimento definitivo da parcela do decisum (art. 356, § 3º, do CPC) 2 anos após o respectivo trânsito em julgado.
______________*Marcelo Mazzola é sócio do escritório Dannemann Siemsen Advogados. Mestre em Direito Processo Civil pela UERJ e vice-presidente de Propriedade Intelectual do Centro Brasileiro de Mediação e Arbitragem (CBMA).