O infindável ajuste fiscal e a irregular suspensão dos reajustes remuneratórios
O não pagamento dos reajustes salariais pactuados recentemente, seja pela via da desobediência ou da alteração legislativa, é incompatível com o ordenamento jurídico.
quarta-feira, 20 de setembro de 2017
Atualizado em 19 de setembro de 2017 11:36
Recentemente, têm sido veiculados rumores e notícias de que o Poder Executivo federal, em cumprimento à incansável política de ajuste fiscal do atual governo, iria suspender (ou cancelar) os reajustes remuneratórios recentemente concedidos a diversas carreiras da Administração Pública.
Como sabido, nos últimos anos (2015 e 2016), foram firmados inúmeros acordos com uma parcela considerável das categorias de servidores públicos federais. Em sua maioria, os acordos previam a concessão de aumentos remuneratórios superiores a 20% (vinte por cento), que objetivavam recompor o valor real dos vencimentos dos integrantes dessas carreiras.
No entanto, esse acréscimo remuneratório, de acordo com os termos pactuados entre os representantes das entidades classistas e do Poder Executivo federal, não teria seus efeitos financeiros aplicados em um único momento, mas sim parcelados durante os anos subsequentes.
A título exemplificativo, cumpre mencionar os acordos honrados por meio da edição da medida provisória 765, de 29 de dezembro de 2016, posteriormente convertida na lei 13.464, de 10 de julho de 2017, na qual foram concedidos reajustes salariais para diversas carreiras a serem incorporados em 3 (três) parcelas: 1ª parcela em 1º.1.17, 2ª parcela em 1º.1.18 e 3ª parcela em 1º.1.19 (anexos da lei 13.464/17).
Tendo em vista que a primeira parcela do reajuste remuneratório já foi implementada no início do ano corrente, acredita-se que a tentativa do Poder Executivo federal em realizar eventual suspensão (ou cancelamento) do aumento salarial ocorreria apenas em relação às parcelas referentes aos anos de 2018 e de 2019.
Em regra, existem apenas 2 (duas) medidas que o Poder Executivo federal pode adotar para não efetivar o pagamento dessas parcelas futuras, quais sejam: (I) a simples inobservância do comando legal - como ocorrido, por exemplo, no âmbito do Distrito Federal em 2015 - e (II) a edição de medida provisória ou a proposição de projeto de lei que revogue os dispositivos das leis que preveem o acréscimo salarial.
Na primeira hipótese, o mero descumprimento da determinação legislativa importaria flagrante violação ao princípio da legalidade, insculpido no art. 37, caput, da Constituição. Afinal, não é facultado à Administração Pública cumprir ou não a legislação. A obediência aos preceitos legais constitui imperativo do Estado Democrático de Direito, cujo aspecto fundamental visa, como no caso em tela, à proteção ao abuso ou ao desvio de poder estatal.
Eventual omissão na execução das leis que estabelecem os reajustes remuneratórios caracterizaria, inclusive, a prática dos crimes de responsabilidade elencados no art. 7º, item 9, da lei 1.079, de 10 de abril de 1950, que assim estipula:
Art. 7º São crimes de responsabilidade contra o livre exercício dos direitos políticos, individuais e sociais: (...)
9 - violar patentemente qualquer direito ou garantia individual constante do art. 141 e bem assim os direitos sociais assegurados no artigo 157 da Constituição.
No caso em comento, a Constituição vigente à época da edição da lei 1.079/50 era a CR/46, que, em seu art. 141, § 3º, estabelecia que "a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada". A correspondência atual do mencionado dispositivo constitucional é o inciso XXXVI do artigo 5º da CR, que reproduz literalmente a norma garantidora de 1946.
Aliás, nem mesmo suposto respeito ao disposto na Lei de Responsabilidade Fiscal (LC 101/00) poderia justificar o não pagamento das parcelas futuras do reajuste pactuado. Isso porque, nos termos do artigo 22 dessa lei, quando a despesa total com pessoal exceder a 95% (noventa e cinco por cento) do limite prudencial, será vedada a concessão de aumentos/reajustes a servidores públicos, salvo aqueles decorrentes de determinação legal:
Art. 22. A verificação do cumprimento dos limites estabelecidos nos arts. 19 e 20 será realizada ao final de cada quadrimestre. Parágrafo único. Se a despesa total com pessoal exceder a 95% (noventa e cinco por cento) do limite, são vedados ao Poder ou órgão referido no art. 20 que houver incorrido no excesso:
I - concessão de vantagem, aumento, reajuste ou adequação de remuneração a qualquer título, salvo os derivados de sentença judicial ou de determinação legal ou contratual, ressalvada a revisão prevista no inciso X do art. 37 da Constituição;
II - criação de cargo, emprego ou função;
III - alteração de estrutura de carreira que implique aumento de despesa;
IV - provimento de cargo público, admissão ou contratação de pessoal a qualquer título, ressalvada a reposição decorrente de aposentadoria ou falecimento de servidores das áreas de educação, saúde e segurança;
V - contratação de hora extra, salvo no caso do disposto no inciso II do § 6o do art. 57 da Constituição e as situações previstas na lei de diretrizes orçamentárias. (grifos aditados)
De acordo com a exceção estabelecida no dispositivo supramencionado, os reajustes já aprovados não podem ser suprimidos, porquanto derivados de determinação legal. Assim, eventual déficit financeiro deve ser eliminado pelo Poder Executivo federal sem que os aumentos previstos em lei sejam suspensos.
Com relação à eventual edição de medida provisória ou a proposição de projeto de lei que revogue os dispositivos das normas que preveem o acréscimo salarial, cabe destacar o recente posicionamento do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre a inconstitucionalidade desse procedimento.
Em acórdão publicado no dia 19 de abril de 2017, a Suprema Corte, por maioria simples (6 votos favoráveis e 6 votos contrários), conheceu parcialmente da ação direta de inconstitucionalidade (ADI) 4.013/TO e, nessa parte, julgou procedente a medida para declarar inconstitucionais 2 (duas) leis tocantinenses que revogavam aumentos remuneratórios previstos na legislação e ainda não implementados na folha de pagamento dos servidores.
Em razão da similitude entre o caso dos servidores de Tocantins e a situação que se apresenta, faz-se necessária a transcrição da ementa do julgado citado:
AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. ARTIGOS DA LEIS TOCANTINENSES NS. 1.855/2007 E 1.861/2007 REVOGADOS PELAS LEIS TOCANTINENSES NS. 1.866/2007 E 1.868/2007. REAJUSTE DE SUBSÍDIOS DE SERVIDORES PÚBLICOS ESTADUAIS. IRREDUTIBILIDADE DE VENCIMENTOS. DIREITO ADQUIRIDO. ARTS 5º, INC. XXXVI E 37, INC. XV, DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA. AÇÃO JULGADA PROCEDENTE.
1. Ação conhecida quanto ao art. 2º da Lei n. 1.866/2007 e o art. 2º da Lei n. 1.868/2007. Ausência de impugnação específica dos outros dispositivos das leis. Arts. 3º e 4º da Lei n. 9.868/1999.
2. Diferença entre vigência de lei e efeitos financeiros decorrentes de sua disposição. Vigentes as normas concessivas de aumentos de vencimentos dos servidores públicos de Tocantins, os novos valores passaram a compor o patrimônio de bens jurídicos tutelados, na forma legal diferida a ser observada.
3. O aumento de vencimento legalmente concedido e incorporado ao patrimônio dos servidores teve no mês de janeiro de 2008 o prazo inicial para início de sua eficácia financeira. O termo fixado, a que se refere o § 2° do art. 6° da Lei de Introdução ao Código Civil, caracteriza a aquisição do direito e a proteção jurídica que lhe concede a Constituição da República.
4. Ação Direta de Inconstitucionalidade julgada procedente para declarar a inconstitucionalidade do art. 2º da Lei tocantinense n. 1.866/2007 e do art. 2º da Lei tocantinense n. 1.868/2007.
(STF, Tribunal Pleno, ADI 4.013/TO, relator ministro CÁRMEN LÚCIA, DJe de 18/4/17, grifos aditados)
Por ocasião desse julgamento, o STF firmou o entendimento de que, ainda que as datas estabelecidas para o início dos efeitos financeiros dos reajustes sejam em momento futuro, a entrada em vigor da lei configura a aquisição do direito por parte dos servidores.
De acordo com a Suprema Corte, em atenção ao art. 6º, § 2º, da Lei de Introdução ao Direito Brasileiro e ao art. 131 do Código Civil, que serviriam como dispositivos auxiliares à interpretação do art. 5º, XXXVI, da Constituição, o estabelecimento de data futura para a produção de efeitos financeiros não impede a aquisição do direito ao reajuste salarial integral, mas apenas o seu exercício.
Nesse ponto, cumpre frisar trecho do voto proferido pela relatora do acórdão, ministra CÁRMEN LÚCIA:
Não há confusão entre vigência de lei e efeitos financeiros do que nela disposto. Vigentes as normas que concederam os aumentos de vencimentos dos servidores públicos de Tocantins, passaram os novos valores a compor o patrimônio de bens jurídicos tutelados, na forma legal diferida a ser observada. (...)
Posta a norma que conferiu aumentos dos valores remuneratórios, não se há cogitar de expectativa, mas em direito que não mais poderia vir a ser reduzido pelo legislador, como se deu. É que a diminuição dos valores legalmente estatuídos configura redução de vencimentos, em sistema constitucional no qual a irredutibilidade é a regra a ser obedecida. (grifos aditados)
À luz desse posicionamento, a partir da entrada em vigor das normas, o valor global dos reajustes concedidos passa a integrar a esfera de direitos dos servidores, mesmo diante da previsão de parcelamento do acréscimo remuneratório.
Assim, a edição de medida provisória ou a proposição de projeto de lei que revogue os dispositivos de leis normas que preveem o acréscimo salarial representariam nítida violação às garantias constitucionais do direito adquirido (art. 5º, XXXVI) e da irredutibilidade de vencimentos (art. 37, XV).
Ante os elementos expostos, está demonstrado que, independentemente de seu anseio em realizar o ajuste fiscal das contas públicas, o Poder Executivo federal não possui respaldo jurídico para suspender (ou cancelar) os aumentos remuneratórios já concedidos aos servidores públicos.
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*Júlia Mezzomo de Souza é advogada do escritório Torreão Braz Advogados.
*Paulo Vitor Liporaci Giani Barbosa é advogado do escritório Torreão Braz Advogados.