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O incidente de resolução de demandas repetitivas e o direito a um processo justo

O objetivo aqui é apenas o de analisar se a extensão conferida a esse instituto - pois que qualquer tribunal local, federal ou estadual, pode aplicá-lo, e a qualquer tema de direito -, se tal extensão, com efeito, é compatível com o direito a um processo justo, garantia enfeixada no princípio do devido processo legal, previsto em nossa Constituição de 1988.

sexta-feira, 15 de setembro de 2017

Atualizado às 10:59

1. Não é intenção, neste breve ensaio, discutir acerca da utilidade do incidente de resolução de demandas repetitivas, instituto que o nosso novo Código de Processo Civil adotou (artigos 976-987). O objetivo aqui é apenas o de analisar se a extensão conferida a esse instituto -  pois que qualquer tribunal local, federal ou estadual, pode aplicá-lo, e a qualquer tema de direito -, se tal extensão, com efeito, é compatível com o direito a um processo justo, garantia enfeixada no princípio do devido processo legal, previsto em nossa Constituição de 1988.

 

"Processo justo" constitui um direito que é reconhecido aos litigantes em geral (autor, réu, litisconsorte, opoente, etc...) e que não se circunscreve a garantir que se faça observar uma determinada forma prevista em lei, que o contraditório seja respeitado, ou que a decisão seja proferida com celeridade. Significa também e principalmente que se faça instalar, em especial no processo de cognição, um ambiente favorável ao debate, dentro  do qual as partes possam, com liberdade, discutir o conteúdo  da causa, levando ao juiz o material sobre o qual ele realizará a atividade de interpretação, que, como afirmava CALAMANDREI,1 nem sempre constitui uma tarefa fácil, por exigir uma análise cuidadosa sobre os argumentos de cada parte, devendo se atender e considerar as consequências jurídicas que nascem de um determinado fato (ainda que de conteúdo exclusivamente jurídico). Portanto, a garantia de acesso aos tribunais deve ser vista pelo que CANOTILHO denomina de "dimensões de natureza prestacional", a dizer, que se considere a garantia de acesso à justiça também sob o enfoque de instrumentos processuais, os quais devem ser adequados à implementação prática dessa garantia.2

 

Como diz DINAMARCO, um "processo justo é o processo que produz soluções justas".3  O direito a um processo justo compreende, assim, não apenas o direito a obter-se uma tutela jurisdicional com presteza, mas que o debate no  processo de cognição seja o adequado à natureza da causa, o que passa  por conceder aos litigantes todas as oportunidades que se revelarem racionalmente justificadas a que possam apresentar seus argumentos, recorrer contra as decisões que lhes forem desfavoráveis, e ainda o tempo necessário a que os tribunais possam construir  sua jurisprudência, cujo objetivo, como se sabe, é o de consolidar um entendimento, buscando com isso a segurança jurídica. Daí que sem uma longa maturação, não pode haver jurisprudência, e quando se sacrifica, sem uma razão justa, o tempo no processo de cognição, encurtando-o, algum considerável prejuízo poderá ocorrer.

 

Vem a propósito lembrar, consoante enfatizava CARNELUTTI, que o processo de cognição é um juízo em câmera lenta, e por isso se deve aceitar que esse tipo de juízo deva ser naturalmente mais demorado, porque se exige que o juiz julgue segundo certas cautelas, diferentemente do que se dá com o pensar e decidir na vida prática, caracterizado por uma rapidez que não deve existir no processo de cognição.4

 

As técnicas processuais devem, pois, buscar a harmonização entre dois importantes valores que estão sempre a colidir no processo de cognição: o da celeridade e o da liberdade de debater, e a arte do legislador está no encontrar um meio de conciliar tais valores, de modo que se consiga tornar mais  célere a atividade jurisdicional, mas sem restringir, além de um determinado limite, o que no processo de cognição é sobremodo importante: o debate de ideias, razões e de posições jurídicas. Importante lembrar, nesse contexto, que o princípio da proporcionalidade, adotado em nossa CF de 1988, não se dirige apenas ao juiz, mas também ao legislador, de modo que este, na elaboração de qualquer lei, deve sempre buscar harmonizar os valores em conflito, ou, quando menos, não sacrificar, sem uma razão justa, um dos valores a ponto de eliminá-lo. 

 

2. Dentro de um fenômeno de alcance mais amplo, que está inserido no que alguns filósofos e sociólogos denominam de um "período de pós-verdade", que se distingue pela instantaneidade nas resoluções que a vida prática exige, instalou-se no campo do processo civil uma tendência à "universalização e coletivização da tutela jurisdicional", que como observa DINAMARCO, caracteriza-se na adoção de técnicas processuais que façam substituir a tutela jurisdicional concedida em um processo individual por uma tutela coletiva que possa abranger a esfera jurídica de um número maior de pessoas, e que faça estender os efeitos de uma decisão a todas as ações nas quais se controverta quanto a um mesmo tema jurídico (uniformização). Temas importantes ao processo civil foram repensados segundo essa tendência, e novas técnicas processuais surgiram com esse objetivo.  

 

Assim é que na emenda constitucional de número 45, que tratou da reforma do Poder Judiciário, introduziu-se uma técnica com o objetivo de uniformização da tutela jurisdicional: a súmula vinculante. Objetivando, conforme a redação que foi dada ao artigo 5º., inciso LXXVIII, da CF de 1988, assegurar uma "razoável duração ao processo", concedeu-se ao Supremo Tribunal Federal o poder de, em face de normas jurídicas acerca das quais se tenha uma controvérsia instalada em inúmeros processos judiciais, editar súmula com efeito vinculante em relação a todos os órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal (CF, artigo 103-A).

 

Dentro dessa mesma tendência de uniformização da tutela jurisdicional, o novo CPC, em vigor desde março de 2016, instituiu o "incidente de resolução de demandas repetitivas", para permitir que qualquer tribunal local de segunda instância da justiça federal ou estadual instaure um incidente no qual lhe caberá decidir uma questão exclusivamente jurídica, com força vinculante a "todos os processos individuais ou coletivos que versem sobre idêntica questão de direito e que tramitem na área de jurisdição do respectivo tribunal, inclusive àqueles que tramitem nos juizados especiais do respectivo Estado ou região", alcançando também os "casos futuros que versem sobre idêntica questão de direito e que venham a tramitar no território de competência do tribunal" (artigo 985). De forma que, fixada a "tese jurídica", como o Código denomina a decisão que é dada nesse tipo de incidente, ela será necessariamente aplicada a todos os processos, individuais ou coletivos, que versem sobre a mesma questão jurídica, dentro da competência do respectivo tribunal.

 

E  conquanto se tenha transcorrido  pouco mais de um ano da entrada em vigor do novo CPC, vários tribunais locais já instauraram esse tipo de incidente, e alguns deles em um número considerável (caso, por exemplo, do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, que atingiu o número de dez incidentes), tratando de diversos temas5, alguns dos quais envolvendo matérias que não  apenas  recentemente passaram a ser questionadas, mas que apresentam um cunho marcadamente constitucional, como é o caso do incidente que tem por objeto decidir se a base de cálculo do ICMS deve ou não ser integrada por tarifas que custeiam os serviços de distribuição e de transmissão de energia elétrica.

 

Apenas a título de comparação, vale observar que, em treze anos de vigência, o STF editou tão somente cinquenta e seis súmulas vinculantes (a última delas, em agosto de 2016), o que significa, aproximadamente, quatro súmulas por ano. 

 

3. Em um regime democrático, a forma é tão importante quanto o conteúdo, o que justifica que uma doutrina mais recente tenha identificado nos direitos fundamentais um acentuado conteúdo jurídico-processual. Assim, as normas processuais sobre como deve ser o processo civil, de que maneira se o pode utilizar, que direitos processuais o litigante possui e quais devem ser os limites do poder do juiz - tais normas processuais devem ser consideradas normas de direito fundamental em nosso ordenamento jurídico em vigor, porque a Constituição da República de 1988, ao garantir o direito a um devido processo legal, obriga o Legislador a ponderar sobre tais direitos e valores ao elaborar uma norma que possa com eles colidir, devendo aplicar, em caso de conflito, a "lei da ponderação", que como afirma ROBERT ALEXY, significa ponderar os interesses contraditórios em presença de uma determinada situação, abstrata ou concreta, para decidir, por um meio racional, qual dos interesses em colisão  deva prevalecer. 

 

É sob esse enfoque, pois, que se deve analisar se a extensão dada pelo novo CPC ao instituto da resolução de demandas repetitivas, ao permitir que tribunais locais decidam com força vinculante  sobre quaisquer matérias de direito submetidas à sua competência, não terá  sacrificado em demasia o direito a um processo justo, na forma como essa garantia está prevista em norma constitucional. 

 

Com efeito, quando se pensa em um processo de cognição acerca de uma questão exclusivamente de direito, é de se considerar a inelutável necessidade de que a jurisprudência vá se formando ao longo de um tempo, a permitir, pois, que a doutrina forneça à jurisprudência dados que lhe permitam um exame mais aprofundado, e que os tribunais recebam dos juízes de primeiro grau as diversas interpretações que se possam extrair de uma questão jurídica. Quando, entretanto, se suprime artificialmente esse tempo, concedendo a um tribunal local o poder de decidir com força vinculante uma questão jurídica há pouco tempo surgida, isso obviamente colide com o direito ao debate no processo de cognição.

 

Dizem os estudiosos do princípio da proporcionalidade, e dentre eles o jurista alemão, ROBERT ALEXY, que há de haver sempre boas razões que justifiquem o sacrífico de um valor em função de outro. Será necessário, pois, ponderar que razões teve o Legislador do novo CPC para sacrificar, como efetivamente sacrificou o valor da liberdade de debater a causa no processo de cognição, para que se possa analisar se tal restrição é justa e proporcional.

 

Ao tempo em que se instituiu entre nós a súmula vinculante, colocou-se em questão se esse instituto  não acabaria por restringir em demasia a liberdade do litigante e a independência do juiz, e a maioria dos processualistas entendeu que a restrição justificava-se, seja pela prevalência do valor da segurança jurídica, seja ainda porque caberia apenas ao Supremo Tribunal Federal editar súmulas vinculantes, o que significava que elas somente surgiriam depois de esgotadas diversas instâncias de nossa justiça. E, de fato, tais argumentos revelaram-se consistentes - e justos.

 

Mas esses mesmos argumentos podem ser invocados quando se adota o instituto da resolução de demandas repetitivas? E a resposta é negativa.

 

Se no caso das súmulas vinculantes a segurança jurídica é efetivamente alcançada porque se trata da adoção por um Tribunal superior (STF) de um entendimento jurisprudencial que se revelou consistente ao longo de um acentuado tempo, e depois de ter passado pela análise de diversas instâncias de nossa Justiça,6  no caso do incidente de resolução de demandas repetitivas julgado por tribunais locais de segunda instância essa mesma segurança jurídica jamais surgirá, sobretudo quando se trate de um tema que tenha matriz constitucional, como se dá com diversas matérias de natureza tributária, pois que cada tribunal local estabelecerá sua "tese jurídica", que coexistirá necessariamente com decisões  proferidas por  outros tribunais locais, também com força vinculante. Em termos de segurança jurídica, que diferença haverá com o que ocorria quando o nosso sistema processual civil não previa o incidente de resolução de demandas repetitivas? Naquele sistema, os juízes de primeiro grau decidiam cada qual segundo seu convencimento, e a diversidade de decisões constituía uma importante fonte na qual os tribunais superiores buscavam o material com base no qual formavam depois a sua jurisprudência, a mesma diversidade que ocorrerá se cada tribunal local tiver o poder de decidir uma questão jurídica, apenas com a diferença de que suas decisões vinculam os juízes sujeitos a esse mesmo tribunal. Não haverá, portanto, nenhum ganho significativo em termos de segurança jurídica, que possa justificar o sacrifício que se está a impor ao valor da liberdade de debater a causa no processo de cognição.

 

Poder-se-ia argumentar que a aplicação do incidente de resolução de demandas repetitivas provocará um reexame de uma questão jurídica em menor tempo pelos tribunais superiores (STF e STJ), pois que segundo o que prevê o artigo 987 do novo CPC, fixada a tese jurídica por um tribunal local, caberá a interposição de recurso extraordinário ou especial, e a "tese jurídica", tal como vier a ser decidida pelo STF ou STJ, terá aplicação em todo o território nacional, alcançando-se assim a segurança jurídica em breve tempo. Mas além de ser necessário considerar que, em havendo incidentes de resolução de demandas repetitivas instaurados em diversos tribunais locais, será necessário que o Supremo Tribunal Federal faça aguardar o julgamento desses vários incidentes, de modo que possa analisar, com completude, com uma mesma questão jurídica foi analisada e decidida pelos diversos tribunais locais, e isso consumirá tempo, também é de ser levado em conta que haverá uma significativa perda de qualidade no material com base na qual a jurisprudência de um tribunal superior deve ser formada, seja porque o contributo dado pelos juízes de primeiro de grau  deixará de existir, seja também porque mesmo no âmbito dos tribunais locais o debate de uma questão jurídica ficará circunscrito ao órgão indicado pelo regimento interno desse mesmo tribunal.7

 

Examinado à luz do princípio constitucional da proporcionalidade, afirma-se que o novo CPC sacrificou em demasia o valor da liberdade de debater no processo de cognição, indo além de uma justa medida, e por isso é materialmente inconstitucional a extensão dada ao instituto de resolução de demandas repetitivas, quando permite a tribunais locais o poder de decidirem com força vinculante questões jurídicas, nomeadamente quando estas apresentam uma natureza constitucional.

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1 Instituciones de Derecho Procesal Civil, traduzido por Santiago Sentís Melendo, p. 81,  Editorial Depalma, Buenos Aires, 1943.

 

2 Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 4ª. edição, p. 488, editora Almedina.

 

3 Instituições de Direito Processual Civil, v. I, prefácio, p. 23, 5ª. edição, Malheiros editores.

 

4 "(...) il giudizio  nella vita comune si forma com tale rapidità, che è sommamente difficile, per non dire impossibile, la sua osservazione; la loro conoscenza pertanto marca quase del tutto di uma base esperimentale." ("Diritto e Processo", Giudice e Giudicando, p. 72).

 

5 Nesses incidentes, discute-se, por exemplo, que direitos devem ser reconhecidos aos policiais temporários, se os servidores públicos de determinado município devem ou não ser enquadrados em um novo regime jurídico-funcional, se é legal a cobrança de determinada taxa (tributo), e se a base de cálculo do ICMS deve ou não ser integrada com tarifas que custeiam serviços de distribuição e transmissão de energia elétrica.

 

6 Considere-se, por exemplo, a Súmula vinculante de número 52, que trata da imunidade do IPTU quando incidente sobre imóvel alugado, mas da propriedade de uma instituição de assistência social. Trata-se de uma matéria jurídica de há muito debatida em nossa jurisprudência, e também em doutrina, como se constata da insuperável obra "Direito Tributário Brasileiro", escrita por Aliomar Baleeiro na década de setenta.  

 

7 De relevo registrar que como não há ainda uma regulação de caráter nacional, cada tribunal local está, por conta própria, a modificar seu regimento interno para adaptá-lo às novas regras do novo CPC quanto ao instituto da resolução de demandas repetitivas, fixando qual o órgão que caberá o julgamento desse tipo de incidente.

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*Valentino Aparecido de Andrade é juiz de Direito/SP e mestre em direito.

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