A calçada como sujeito
Nesse deserto de amor à cidade desenraizado do chão que testemunhava não só a passagem corrente das pessoas, surge lá em São Paulo, na capital, uma campanha aparentemente inconcebível, na qual sua criatividade concebeu-a como um pontapé inicial para que a mobilidade urbana servisse de rampa de lançamento individual e coletivo para resgatar um sentimento de afeto pela cidade.
quarta-feira, 9 de agosto de 2017
Atualizado às 08:12
As cidades, em regra, depois que a violência urbana ganhou intensidade, adotaram uma unidade sócio urbana para prevenir seus efeitos perversos, optando por condomínios fechados, circundantes das cidades ou dentro delas, onde residem os membros de classe média ou alta.
Essa concepção de autodefesa existe, como se os criminosos fossem a maioria da população, ou como o Estado, detentor do monopólio oficial da violência, em prol da segurança jurídica e pública de cada um, confessasse sua falência. Assim as ruas foram entregues às disponibilidades dos criminosos, que se deparam, às vezes, com veículos policiais, ou guardas particulares que ficam sentados, ali na esquina, ou na sua moto circulante.
De qualquer forma, os condomínios tornaram-se uma forma de sedução de moradia, e por isso as ruas ficaram desertas, como convívio social, e a política pública ligada à mobilidade urbana, ou por outra, que celebra o pedestre, que anda ou andava pelas ruas da cidade, tornou-se mais difícil de ser implantada.
Nessa realidade do convívio do lazer tangido frequentemente a se deslocar para outro lugar, ou shoppings, as ruas cederam mais espaço aos veículos e às políticas protecionistas de seu consumo, forçadas antes pela força irrefreável da produção crescente desse que se constituiu no símbolo da sociedade de consumo, que é o automóvel.
Nesse deserto de amor à cidade desenraizado do chão que testemunhava não só a passagem corrente das pessoas, surge lá em São Paulo, na capital, uma campanha aparentemente inconcebível, na qual sua criatividade concebeu-a como um pontapé inicial para que a mobilidade urbana servisse de rampa de lançamento individual e coletivo para resgatar um sentimento de afeto pela cidade.
Essa campanha que inverte, no seu título, o sujeito por seu objeto, intitula-se MISS CALÇADA SP, lançada pelo ONG Sampapé, dirigida por Leticia Sabino e Ana Carolina Nunes, e que alcança forte incentivo da imprensa e singular receptividade na população. Ela se insere na celebração do DIA DE CAMINHAR.
Essa campanha pede a indicação fotografada da melhor calçada que você conhece, enviando à central a foto e a respectiva descrição daquele pedaço de rua que você sente prazer em nele transitar.
A iniciativa com a denominação invertida do sujeito pelo objeto representa seguramente mais do que um apelo, ansioso e inquieto, pois constitui uma elegante provocação, para que a pessoa desvie seu olhar confiante, dirigindo-o ao que está bom naquele ponto, que a faz orgulhar de seu caminho, na mobilidade fácil que lhe oferece, além da segurança para seus passos, a despreocupação de distribuir sua curiosidade para pessoas, ambiente e coisas.
Se a pessoa olhar para a calçada talvez veja a árvore, sua sombra, sua flor, as folhas sujeitas à chuva e ao vento, o pássaro chilreando ou estático, esperando sua hora e sua vez de encontrar-se com o azul do céu, ou quem sabe, identificar-se pela primeira vez com o seu próximo, aquele que nos ensinaram ser, como cada um de nós, a imagem e a semelhança de nosso Criador.
A Sampapé é co-responsável, como uma representante da sociedade civil, por converter, aos domingos, a Avenida Paulista no espaço lúdico e de prazer do convívio democrático das mesmas etnias que formam a construção histórica do Brasil.
A Sampapé sabe que um simples olhar pode despertar o começo de um grande e sincero amor.
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*Feres Sabino é advogado.