A Agenda Brasileira Anticorrupção pós-Janot: balanço e perspectivas do combate à corrupção no país em um contexto de cooperação internacional a partir de 2018
Os últimos anos de foco no combate à corrupção devem ao menos deixar claro que não há receita mágica, ou um Salvador da Pátria, para superarmos esta chaga.
sexta-feira, 4 de agosto de 2017
Atualizado em 3 de agosto de 2017 11:38
Recentemente a capital norte-americana recebeu o Procurador-Geral da República, Rodrigo Janot, para uma série de eventos sobre os novos rumos que o combate à corrupção no Brasil tomou a partir da Operação Lava-Jato, iniciada em 2013. O período praticamente coincide com os dois mandatos consecutivos - que totalizaram quatro anos - de Janot na Chefia do Ministério Público Federal-MPF, o qual finaliza-se agora em setembro de 2017.
Aproveitando agenda profissional em Washington D.C, estive presente no interessante debate promovido pelo Atlantic Council - Adrienne Arsht Latin American Center, no dia 19/7/17, o qual contou com a firme moderação da brasileira Andrea Murta.
Na primeira parte do encontro, participaram Janot e Kenneth Blanco, Acting Assistant Attorney General, da Divisão Criminal do Department of Justice (DOJ) dos Estados Unidos. Da fala de ambos, restaram importantes evidências, as quais traçam não somente o histórico e a relevância da cooperação Estados Unidos-Brasil para o combate à corrupção nos últimos anos em nosso país, mas sinalizam os possíveis caminhos para a permanência e o reforço de uma Agenda Brasileira Anticorrupção em um cenário pós-Janot.
Para mim, restou claro que a cooperação entre os dois países resultou em uma vigorosa transferência de tecnologia norte-americana de combate à corrupção para o MPF, por meio de troca de experiências, capacitação e treinamento dos Procuradores da República, provavelmente estendido às equipes da Polícia Federal. Muito do sucesso alcançado pela Força-Tarefa da Operação Lava-Jato decorre da expertise e das técnicas de investigação franqueadas pelo DOJ, desenvolvidas pelo menos desde a década de 60, quando iniciou-se forte resistência e repressão às fraudes financeiras corporativas nos EUA, trabalho enormemente reforçado a partir da edição em 1977 do famoso Foreign Corrupt Practices Act-FCPA.
Os crimes de lavagem de dinheiro, fraudes corporativas, colarinho-branco e afins ao mesmo tempo alavancam e encontram sua justificativa na corrupção envolvendo o privado e o público, e cada vez mais têm uma abrangência transnacional, ultrapassando as fronteiras nacionais dos países, somente podendo ser eficazmente combatidas e reprimidas a partir dos laços criados por cooperação internacional, conforme bem ressaltou em sua fala o americano Blanco, mas sempre procurando respeitar a soberania e a legislação de cada país.
Uma opinião comum das autoridades americana e brasileira é que de nada adiantaria que esta expertise fosse empregada por órgãos e estruturas de combate à corrupção destituídas de independência e de autonomia, pois o enforcement da legislação e dos institutos de justiça negociada de forte influência anglo-saxônica - p. ex., colaboração premiada, acordos de leniência - somente têm sentido se aplicadas por um órgão independente - DOJ nos EUA, MPF no Brasil - e suficientemente blindados de tentativas de pressões do Executivo e Legislativo e do mundo corporativo para dificultar ou mesmo aniquilar as investigações e seus eventuais resultados condenatórios. Obviamente, um Judiciário forte e resistente a estas mesmas pressões também constitui fator imprescindível para o sucesso das cruzadas anticorrupção, e nisso o Brasil também vem se destacando, felizmente.
Dado o caráter sistêmico e recorrente dos casos de corrupção brasileiros, minha análise é que ações efetivas como as empreendidas pela Força-tarefa da Lava-Jato - e de outras operações similares com configuração a ela aproximada - devem realmente ser capitaneadas, ao menos durante esta triste fase da nossa história em que até o Presidente da República é denunciado por corrupção - pelo próprio MPF, cuja independência assegurada pela Constituição de 1988 o transformou na autêntica Agência Autônoma Anticorrupção-AAA no Brasil.
O sistema anticorrupção brasileiro é a rigor um sistema multiagência, porém indiscutivelmente hoje tem como protagonista o MPF, e disso certamente também resultaram o aumento das condenações dos envolvidos e a diminuição da sensação de impunidade até pouco tempo vigente no país, no tema da corrupção.
Janot defendeu em público de maneira exemplar todas as ações anticorrupção levadas a efeito em seus dois mandatos frente ao MPF, e disse que seria prematuro apontar inconsistências e arrependimentos, pois muitas dessas ações ainda se encontram em curso e o cenário seria demasiadamente recente para uma análise mais aprofundada sobre erros e acertos. Todavia, ressaltou que gostaria que as investigações e os processos judiciais delas decorrentes tivessem se desdobrado de modo muito mais célere do que de fato ocorreram.
Embora compreensível esta avaliação personalíssima, visando uma expectativa de maior rapidez nas investigações como um todo, cabe ressaltar que, conforme inclusive observou Patrick Stokes, advogado americano e ex-Chefe do FCPA Unit do DOJ no segundo painel do evento, nenhum outro país no mundo conseguiu mudanças tão significativas no combate e na repressão à corrupção em tão curto espaço de tempo, como o Brasil. Esta certamente é uma das marcas indeléveis de Janot frente ao MPF, juntamente com o maior protagonismo, especialização e participação ativa na cooperação internacional alcançados pelo órgão ministerial no combate à corrupção no país em seus mandatos de Procurador Geral da República.
No que diz respeito aos novos desafios para vencer a luta contra a corrupção, Blanco destacou que uma das principais apostas do DOJ e do sistema americano anticorrupção está em reprimir com multas e penas severas as práticas e crimes a ela relacionados - como forma de dissuadir que outros agentes públicos e privados venham a também praticá-las - bem como reforçar a prevenção, por meio da implementação de programas de compliance e de integridade nas corporações privadas. Além disso, afirmou que atualmente o maior desafio do sistema norte-americano está em se antecipar ao criminoso, para interromper a rede de corrupção com maior eficácia e anterioridade possíveis. Para Janot, é essencial a atuação do MPF com os demais órgãos de repressão à corrupção - Polícia Federal, Judiciário, TCU - porém é a ação transparente e responsável do MPF junto à imprensa e à sociedade brasileiras que também deve ser privilegiada pelo órgão no seu dia a dia, informando a população sobre o que de fato está acontecendo.
Na segunda parte do encontro, participaram os brasileiros Mauricio Valeixo, da Polícia Federal, Fernando Mello, jornalista, e Alana Rizzo, diretora da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo-ABRAJI, além do advogado americano já referido, Patrick Stokes. A moderação provocativa de Andrea Murta visou extrair dos convidados impressões sobre o atual momento de crise política e econômica no Brasil e sua relação com os escândalos de corrupção, ou seja, uma possível relação de causalidade da atual crise brasileira vinculada à corrupção.
Mello apresentou uma enquete recentíssima promovida junto aos parlamentares do Congresso Nacional, sobre aspectos de apoio político ao Presidente Michel Temer e as medidas atuais anticorrupção, estatísticas que revelam no mínimo certa ambiguidade dos políticos diante de envidar aperfeiçoamentos em uma Agenda Nacional Anticorrupção. Rizzo destacou o importante papel da imprensa, sobretudo no contexto da Lava-Jato, sublinhando que em virtude da profusão de fatos e dados revelados a todo o momento durante a operação, o trabalho dos jornalistas tornou-se absurdamente denso e desafiador. Contudo, disse que esperava que o caráter investigativo do jornalismo brasileiro pudesse ser reforçado, o que nesse momento ficaria um pouco comprometido em vista do grande número de informações gerado pelas diversas Operações Anticorrupção atualmente em curso no país.
O balanço geral do evento indubitavelmente é extremamente positivo. O debate foi oportuno e apresentou-se como um momento internacional propício e qualificado para a exposição e o escrutínio da gestão de Rodrigo Janot frente ao MPF. O auditório estava totalmente tomado, com várias pessoas em pé.
Entendo que a gestão Janot estará para sempre marcada pela ampla e corajosa investigação e repressão aos agentes públicos e privados envolvidos em crimes e infrações de corrupção, comprovadamente perpetrados em caráter sistêmico e em escalada vertiginosa, envolvendo altíssimas e vultosas cifras, as quais, ao final, importaram em prejuízos incalculáveis e em certa medida irreparáveis para a sociedade brasileira.
Tais prejuízos, a meu ver, seriam basicamente de três ordens: (i) socioeconômicos, pois bilhões de reais foram desviados dos cofres públicos para bolsos privados, com danos acentuados à saúde, educação, assistência social, infraestrutura, etc; (ii) políticos, pois a percepção generalizada da sociedade é a de que a classe política brasileira ainda não retornou do isolacionismo demoníaco em que se encontra, demonstrando um ar despreocupado e catatônico porém reiteradamente infringindo regras jurídicas e éticas de trato da coisa pública, e portanto defasada em sua forma de fazer política, por meio do reinante toma-lá-dá-cá e de um capitalismo de laços e de Estado totalmente anacrônico; e com maior severidade, (iii) éticos, pois a sociedade brasileira, atualmente traumatizada e por isso em aparente "modo avião", já não sabe mais indicar com segurança quais seriam seus valores fundantes e mais essenciais, e de que forma podem lutar para assegurá-los, inclusive contra os desvios cometidos nos setores público e privado.
E quais seriam as perspectivas da Agenda Brasileira Anticorrupção pós-Janot? O cenário, embora nebuloso, não me parece desesperançoso na totalidade.
Estamos vivendo um momento de ruptura da lógica patrimonialista ainda dominante na relação público-privada, uma profunda mudança cultural, e que aos poucos vai se desfazer a partir de uma reconstrução da ética pública e privada, a partir de valores que deverão ser reconhecidos e assegurados pelo Estado, pelo mercado e pela própria sociedade.
Para as eleições de 2018, necessitamos urgentemente de um Governo e de um Parlamento éticos, que restaurem a confiança da população na classe política, o que dificilmente vai se concretizar na extensão e intensidade que o momento clama, mas que pode representar um honroso reinício. Estamos vivendo sim um ponto de inflexão, talvez o mais importante da história recente brasileira, com a chance de passar a limpo um país que acostumou-se a ser enganado por seus líderes e governantes, os quais em uma ainda não consolidada vida democrática, são livremente escolhidos por seus cidadãos. Importam realizar inúmeras reformas, sob pena de não conseguirmos sair do atoleiro moral, socioeconômico e político em que fomos jogados por pessoas inescrupulosas, que nada mais fizeram ou fazem a não ser ascender a altos postos para extirpar as riquezas nacionais e transformá-las em lucro pessoal e dos seus mais próximos.
Janot e instituições como o MPF, Polícia Federal e Judiciário fizeram e vem fazendo sua parte nesse processo evolucionista como muita hombridade, sensibilidade e altivez. Mas para que todos consigamos ter um país livre de corrupção, temos de primeiro admitir que o percurso será longo e tortuoso e que, embora dependa de nossas ações e atitudes enquanto empresas, organizações sociais e cidadãos, dependerá necessariamente de quem forem nossos próximos líderes.
Atualmente, estamos desprovidos de um Projeto Nacional de Desenvolvimento, condição indispensável para que toda Nação que se pretenda desenvolvida venha, de fato, a alcançar este desenvolvimento. Os últimos anos de foco no combate à corrupção devem ao menos deixar claro que não há receita mágica, ou um Salvador da Pátria, para superarmos esta chaga. Temos de recobrar a autoestima do país, e por ora, o histórico de Janot e das instituições brasileiras combatentes da corrupção, nesse passado recente, nos serve sim de algum alento.
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*Gustavo Justino de Oliveira é professor doutor de Direito Administrativo na USP. Árbitro, advogado e consultor especializado em Direito Público no escritório Justino de Oliveira Advogados.