Algumas notas sobre o Projeto de Lei de novo Código Brasileiro de Aeronáutica
A amplitude dos debates temáticos no Congresso fortalece a democracia e permite que a legislação espelhe consensualmente os desígnios de seus diversos setores representados.
segunda-feira, 31 de julho de 2017
Atualizado às 12:48
Uma das funções mais nobres e relevantes do legislador é estar atento às mutações socioeconômicas que se verificam diuturnamente no seio da sociedade, de modo a manter o ordenamento jurídico compatível com os objetivos sempre cambiantes da comunidade, viabilizando-lhes a realização.
Por iniciativa recente do Senado Federal, constituiu-se, no fim do ano de 2015, Comissão de Especialistas com o fito exclusivo de formular proposta para elaboração de novo Código Brasileiro de Aeronáutica (atual lei 7.565/86). Com mais de 30 anos, o Código dá sinais de exaustão, sobretudo a partir da ingente e irrefreável dinâmica de seu domínio normativo, que possui traço multidisciplinar e de necessária abertura aos fenômenos da internacionalização do direito em virtude da própria natureza do setor aeronáutico.
O trabalho foi concluído em 2016 pelo esmero da Comissão e trouxe modificações relevantes, que certamente produzirão inúmeros reflexos na sociedade. O texto agora tramita no Senado (PLS 258/16). Registre-se que o árduo trabalho da Comissão produziu inúmeras contribuições positivas para o Direito Aeronáutico nos diversos campos que o diploma pretende regular. Entretanto, há diversos pontos que, por sua natureza, certamente merecem debate mais aprofundado pela sociedade.
No que diz respeito à delegação da exploração dos serviços públicos de transporte aéreo, por exemplo, verificou-se a proposta de substituição da modalidade de concessão pela "autorização vinculada mediante contrato de adesão"1. A doutrina pátria amplamente majoritária rejeita a possibilidade de utilização do instituto da autorização para a delegação de serviços públicos em sentido restrito. Não somente pela força literal do art. 175 da CF/88, mas sobretudo pelos caros valores que tal preceito constitucional pretende proteger.
Para além da essencialidade material do transporte aéreo, que se traduz pela subjacente necessidade pública, e ainda que se reconheça razoável discricionariedade ao legislador para definir o que seja serviço público, é difícil alegar que o transporte aéreo regular não seja serviço público, única hipótese na qual se lograria afastar a inderrogável limitação constitucional do art. 175 da CF/88.
É possível, sim, como nas na lei geral das telecomunicações, proceder-se à dicotomia entre serviços públicos e privados na aviação civil. De fato, isto já ocorre na sistemática do atual CBAer. Mas seguramente isto não é possível em relação ao transporte aéreo regular, cuja natureza da atividade, relevância para a população, essencialidade, necessária continuidade, além da necessária proteção à livre concorrência e aos princípios da legalidade e igualdade demandam a realização de contrato administrativo pela via licitatória. Aliás, é o próprio texto do projeto que confirma tratar-se o transporte aéreo de serviço público (art. 167, 235, passim). E, sendo assim, parece ser indesejável e contrária ao nosso ordenamento constitucional tal proposta.
Noutro giro, nota-se alguma timidez legislativa em outros temas nesta ímpar oportunidade de novel codificação, como no que se refere à segurança da aviação em geral, que mereceu apenas um breve capítulo no texto, incluindo a questão da interferência ilícita em aeronaves e do passageiro indisciplinado, onde importantes avanços poderiam ser feitos, tal qual se tem notícia, por exemplo, do direito Português2. Isto também se faz necessário para que o Brasil possa cumprir seus compromissos internacionais nesta seara, há muito devidos, mormente no que diz respeito às disposições constantes da Convenção de Montreal de 1971 (Convenção para Repressão aos Atos Ilícitos contra a Segurança da Aviação Civil)3, que reclamam a adoção de legislação penal específica, apta a disciplinar adequadamente a prática de infrações penais a bordo ou em instalações aeroportuárias.
Outrossim, no atinente à responsabilidade civil do transportador aéreo, o trabalho produzido pela nobre Comissão reproduziu o texto do atual CBAer4 nos diversos pontos relativos à limitação da responsabilidade do transportador aéreo, tendo sido manifesta a preocupação em se afastar ao máximo de uma possível incidência do sistema compensatório real e efetivo estipulado pelo Código do Consumidor e pelo Código Civil, o que tem sido objeto de enorme grau de judicialização no País há muitos anos. Tal preocupação foi tão acentuada que se chegou a buscar conceituar, no próprio texto, que a lei é "especial" em relação a outras (art. 316, §único), o que é algo inusitado em matéria de técnica legislativa e provavelmente de pouca efetividade, mas capaz de gerar alguma insegurança e litigiosidade.
O equilíbrio entre a devida reparação às vítimas e a limitação da responsabilidade das transportadoras, assim como sua uniformização entre os diversos sistemas jurídicos do mundo são assuntos de enorme complexidade e que acompanham a história da aviação comercial desde seus primórdios5. Em matéria de transporte internacional, é razoável que o Brasil cumpra os compromissos firmados em tratados internacionais sobre o tema (ou os denuncie se os entender contrários ao interesse público nacional). Esta foi, aliás, a tese fixada pelo STF em julgamento recente de dois Recursos Extraordinários, em sede de repercussão geral6.
No que diz respeito ao transporte aéreo doméstico, sob a ótica do direito consumerista, isto poderia representar notável retrocesso, mormente na questão referente aos danos morais, que não foram claramente abordados na supracitada decisão prolatada pelo Pretório Excelso. E, de certo modo, o texto do PLS 258/16 restou confuso no tratamento do transporte aéreo doméstico, ao afirmar que a responsabilidade do transportador "está sujeita aos limites estabelecidos neste Título", sem, todavia, tê-los consignado em relação aos danos a passageiros (arts. 288 c/c 295).
Neste sentido, há excelentes estudos e referências de direito comparado disponíveis, sendo mister fazer referência às regras da União Europeia (EC 889/02; EC 261/04 e EC 1107/06), que parecem ter chegado a normatização equilibrada e razoável acerca da questão, cuja complexidade ultrapassa os breves limites deste texto, mas que certamente poderiam ser levados em consideração nos debates congressuais que doravante seguirão.
Noutro giro, pugna-se pela mudança nos limites de participação de capital estrangeiro em empresas aéreas nacionais, cogitando-se de eventual rompimento com os standards internacionais de limitação ao teto de 49%. E, no mesmo diapasão, o Projeto propõe a eliminação por completo da reserva de mercado de trabalho na aviação a cidadãos brasileiros. São temas de grande sensibilidade econômica, social e jurídica e que, por certo, requerem maior discussão acerca das premissas metodológicas dos estudos de impacto sobre a economia nacional e sobre os serviços públicos de transporte aéreo de um modo geral.
Por último, nota-se, ainda, a falta de um marco regulatório realmente adequado ao setor aéreo. Que, talvez, reclame até mesmo emendas à constituição. A liberalização do setor aéreo, sob a regulação eficiente do Estado gerente, quase total alhures, e parcial e recente entre nós, tem produzido resultados formidáveis em todos os cantos do globo, seja pela universalização do acesso a este modal de transporte, seja pelos reflexos diretos e indiretos que a aviação oferece à economia. Pela ótica do direito econômico, é relevante que a ordem jurídica contribua para superar as dificuldades deste importante setor produtivo, reduzindo os gargalos na infraestrutura aeronáutica, aumentando a atratividade da aviação regional - fator essencial para a ampliação da cobertura geográfica do serviço -, mitigando os obstáculos à entrada de novos competidores e fomentando o aumento da capacidade concorrencial das empresas domésticas no disputadíssimo mercado internacional - sobretudo no âmbito tributário.
O Senado caminhou bem ao tomar a iniciativa de atualizar e adequar a legislação aeronáutica pátria e o trabalho da Comissão tem o mérito de ter levado a cabo o árduo trabalho de pesquisa, compilação dos interesses a jusante da lei, e inovação em diversas áreas desprovidas de normatização própria.
A amplitude dos debates temáticos no Congresso fortalece a democracia e permite que a legislação espelhe consensualmente os desígnios de seus diversos setores representados, assim como o bem-estar da coletividade como um todo.
Isto requer que a sociedade esteja bem informada acerca das questões conjunturais e estruturais relativas ao setor de transporte aéreo, cuja legislação aplicável por certo reclama reforma, de modo que as escolhas públicas possam proporcionar ao País, ao setor produtivo, aos usuários e aos trabalhadores aquilo que é de seu melhor interesse.
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1 Art. 235 do Relatório Final da Comissão
2 Lei 50/03
3 Promulgada no Brasil pelo Decreto 72.383/73
4 Arts. 288 et seq. do Relatório Final da Comissão; note-se, ainda, o art. 289 §2° que inverte o ônus da prova em desfavor do sofredor do dano.
5 O que se iniciou já em 1929, com a Convenção de Varsóvia, mas que foi inúmeras vezes alterada: Protocolo de Haia de 1955; Convenção de Guadalajara de 1961; o Acordo da IATA de Montreal de 1966 aumentou-o para US 75,000 nos voos de/para os EUA; os 4 Protocolos de Montreal de 1975 mudou-o várias vezes; o Acordo entre as empresas da IATA de 1995; a Convenção de Montreal de 1999.
6 "Tese 210 - Limitação de indenizações por danos decorrentes de extravio de bagagem com fundamento na Convenção de Varsóvia. Nos termos do art. 178 da Constituição da República, as normas e os tratados nternacionais limitadores da responsabilidade das transportadoras aéreas de passageiros, especialmente as Convenções de Varsóvia e Montreal, têm prevalência em relação ao Código de Defesa do Consumidor". RE 636331/RJ, rel. Min. Gilmar Mendes, e ARE 766618/SP, rel. Min. Roberto Barroso, DJE 117, 2/6/17 (Repercussão Geral).