O novo Código de Processo Civil e a primazia do mérito
Por força do princípio da primazia do mérito, o CPC/2015 passou a disponibilizar uma série de mecanismos que visam garantir a prioridade de apreciação das questões meritórias tratadas no processo, contribuindo em grande medida para a obstrução da jurisprudência defensiva que vinha sendo amplamente difundida pelos tribunais brasileiros.
terça-feira, 25 de julho de 2017
Atualizado em 24 de julho de 2017 17:55
O novo Código de Processo Civil, que há poucos meses acaba de completar seu primeiro ano de vigência, simboliza um verdadeiro ponto de inflexão em nosso ordenamento jurídico.
E não afirma-se isto somente pelo fato de ter sido o primeiro código brasileiro concebido sob a égide de um Estado Democrático de Direito, mas principalmente por representar a catálise de uma série de rupturas paradigmáticas, derivadas das inovações previstas em seu texto legal.
Nesta tônica, temos que a concepção de um modelo organizacional de processo pautado no policentrismo e compaticipação dos sujeitos envolvidos em sua dinâmica1, bem como a autêntica possibilidade de adaptação/flexibilização procedimental ao caso concreto2 - ambas recém implementadas pelo CPC/15 - são elementos indispensáveis à equação que visa a obtenção de um provimento jurisdicional democrático e, sobretudo, efetivo.
Ainda durante a vigência do Código Buzaid, não eram raras as ocasiões em que a rigidez das normas procedimentais e o caráter pragmático das linhas decisórias de alguns magistrados se sobrepunham à própria resolução do mérito das questões levadas ao Judiciário.
Explica-se.
À praxe dos Tribunais de Justiça e, em particular, dos Tribunais Superiores como o STF e o STJ, de priorizar a observância de questões meramente técnicas ou excessivamente formais em detrimento do próprio mérito dos processos, deu-se o nome de jurisprudência defensiva.
Relativamente à "clássica" hipótese do recurso de agravo de instrumento, por exemplo, era comum os tribunais brasileiros denegarem sua apreciação pela existência de vícios meramente formais, como a ausência de juntada da cópia da procuração do advogado do agravante, sem que sequer houvesse a oportunidade de posterior correção3.
Não obstante ao fato de que, em decorrência do artigo 525, I do CPC/73 as cópias da procuração ad judicia assinada pelo agravante e agravado consistiam em documentos obrigatórios para a interposição do recurso de agravo de instrumento, tem-se que tal "irregularidade" não deveria ser suficiente para obstar a apreciação do mérito recursal, já que em outras fases processuais, o mesmo código garantia às partes a concessão de prazo razoável para o saneamento de eventual incapacidade processual ou irregularidade de representação4.
Em certas ocasiões, até mesmo em virtude de acontecimentos absolutamente fora do âmbito de controle das partes e de seus respectivos advogados, tal prática continuava a prevalecer, ocasionando danos muitas vezes irreparáveis aos jurisdicionados.
Exemplo disso era o absurdo entendimento de que a ilegibilidade do carimbo de protocolo inviabilizaria a apreciação de um eventual recurso interposto, vez que supostamente ausente um de seus pressupostos formais5.
É evidente que tal prática, por si só, revelava uma incoerência sistêmica considerável, já que além de consistir em verdadeiro atentado à garantia fundamental do acesso à Justiça (art. 5º, XXXV, CF), a jurisprudência defensiva também é absolutamente incompatível com a concepção de processo jurisdicional democrático.
Diante desse contexto, era razoável a necessidade de uma reforma na sistemática processual civil brasileira, com o propósito de se reafirmar as garantias fundamentais estabelecidas por força de nossa Carta Magna.
O legislador optou por dispensar atenção específica à essa dissonância logo no início do CPC/15, reafirmando infraconstitucionalmente em seu artigo 1º que o processo civil brasileiro deve ser "ordenado, disciplinado e interpretado conforme os valores e as normas fundamentais estabelecidas na Constituição Federal".
No primeiro livro do novo CPC também foram expressamente previstas algumas das normas fundamentais que regem o processo civil brasileiro e, mais precisamente, no artigo 4º, restou estabelecido o denominado princípio da primazia do mérito.
Trata-se de preceito fundamental decorrente da garantia constitucional da razoável duração do processo, prevista no artigo 5º, inciso LXXVIII de nossa Carta Magna, que por sua vez, tem o condão de garantir às partes o direito substancial de obter em prazo razoável, tutela jurisdicional efetiva, apta a solucionar de forma integral - sem exclusão da atividade satisfativa - o mérito das questões eventualmente submetidas à análise do Judiciário.
Em contrapartida, na exata proporção em que o referido preceito garante aos jurisdicionados o direito substancial à primazia do mérito, a nova sistemática processual também passa a impô-la como um dever, que deverá ser observado por todos os sujeitos processuais, exatamente como interpreta-se a partir da análise conjunta dos artigos 5, 6 e 7 do novo CPC, que são responsáveis pelo lastreamento normativo do modelo de organização processual pautado na cooperação/comparticipação.
Como previamente exposto, por força do princípio da primazia do mérito, o CPC/15 passou a disponibilizar uma série de mecanismos que visam garantir a prioridade de apreciação das questões meritórias tratadas no processo, contribuindo em grande medida para a obstrução da jurisprudência defensiva que vinha sendo amplamente difundida pelos tribunais brasileiros.
Com o advento do novo CPC, um dos deveres do juiz passou a ser justamente a determinação do suprimento de pressupostos processuais e/ou o saneamento de eventuais vícios formais, como observado em seu artigo 139, IX.
Nos tribunais, tal entendimento também deve ser estendido ao relator, que em face da constatação de vício ou da ausência de documentos exigíveis para a interposição do recurso, deverá conceder o prazo de 5 dias ao recorrente para sanar o vício ou complementar a documentação exigível, conforme preconizado no parágrafo único do artigo 932 do CPC/15.
O mesmo se aplica às Cortes Superiores, haja vista que o artigo 1.029, §3º do novo CPC estabelece que, ambos o STJ e o STF, poderão desconsiderar ou determinar a correção de vício formal existente em recurso especial ou extraordinário interposto tempestivamente, desde que não os repute grave.
Ademais, o novo CPC também consagra expressamente a possibilidade de fungibilidade dos atos processuais e, mais especificamente, dos recursos, já que em razão da alta complexidade do sistema recursal do CPC/73, não eram raras as hipóteses em que as partes acabavam por não se utilizar do meio processual adequado para impugnar as decisões proferidas, o que naturalmente também acarretava em prejuízos.
A hipótese de fungibilidade do Recurso Especial em Extraordinário e vice-versa, está contemplada expressamente nos artigos 1032 e 1033 do CPC/15, que garante às partes a concessão do prazo de 15 dias para a devida adequação das razões e/ou demais pressupostos inerentes ao recurso correto.
De certa forma tal previsão remete ao Código de Processo Civil de 1939, que igualmente previa de forma expressa em seu artigo 8106 a possibilidade do órgão julgador que apreciou um recurso interposto de forma errônea remeter os autos a quem de fato competia julgá-lo.
Nesse sentido, o Fórum Permanente de Processualistas Civis, realizado em Salvador/BA nos dias 8 e 9 de novembro do ano de 2013, determinou pelo seu enunciado 1047 que o princípio da fungibilidade recursal deve alcançar todas espécies de recursos.
É sempre importante ressaltar que, sozinhas, as disposições legais trazidas pelo novo CPC não se revelarão como suficientes para obstar completamente a jurisprudência defensiva, ou mesmo garantir à sociedade que o mérito dos seus litígios seja sempre apreciado de forma célere e satisfativa, haja vista que isso depende, em grande parcela, das práticas empreendidas tanto pelos profissionais do Direito, como os juízes, serventuários da justiça, advogados e membros do Ministério Público, quanto pelos próprios jurisdicionados.
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1 NUNES, Dierle; BAHIA, Alexandre. Processo, jurisdição e processualismo constitucional democrático na América Latina: alguns apontamentos. Revista Brasileira de Estudos Políticos, Belo Horizonte, n. 101, p. 61-96, jul./dez. 2010. Disponível em: (Clique aqui) . (Acesso em: 05 mar. 2017).
2 LEVY, Matheus. Processo e autonomia da vontade. 2017. Disponível em: (Clique aqui). Acesso em: 20 jun. 2017.
3 V.g.: AGR nº 0451922015/MA; AI nº 176844/MG; dentre vários outros Artigo 13, CPC/74:
4 Verificando a incapacidade processual ou a irregularidade da representação das partes, o juiz, suspendendo o processo, marcará prazo razoável para ser sanado o defeito.
5 V.g AgRg no Ag nº 1142421/SP; AI nº 237361 AgR;
6 Art. 810, CPC/39: Salvo a hipótese de má-fé ou erro grosseiro, a parte não será prejudicada pela interposição de um recurso por outro, devendo os autos ser enviados à Câmara, ou turma, a que competir o julgamento.
7 Enunciado n. 104 do Fórum Permanente de Processualistas Civis: (art. 1.024, § 3º) O princípio da fungibilidade recursal é compatível com o CPC e alcança todos os recursos, sendo aplicável de ofício. (Grupo: Ordem dos Processos no Tribunal, Teoria Geral dos Recursos, Apelação e Agravo)
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*Matheus Levy é advogado, pós-graduando em Direito Processual pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais - PUC Minas, bacharel em Direito pela Universidade CEUMA, e membro das Comissões de Jovens Advogados e de Direito do Consumidor da OAB Seccional Maranhão.